Um Escrevedor Fala de Memória Musical – V - O que tocava no
rádio – 1972.
Esta é já a quinta incursão na memória musical daquele que
escreve estas linhas. O ano de 1972 era o ano em que completaria 12 anos;
naquele ano ele fora reprovado sem ter sido avaliado; também fora naquele ano
que tivera o primeiro contato com a fé protestante, ao ser levado para ouvir
uma “conferência evangelística”, realizada na antiga Primeira Igreja Batista de
Alagoinhas, então presidida pelo pastor Jamim Nascimento. Tal conferência fora
proferida pelo pastor Edivaldo Santiago – salvo engano da grafia do seu nome -,
em data que não é possível precisar, sabendo-se apenas tratar-se de período
escolar. Daquele ano brotam da memória deste garatujador, inúmeras
reminiscências, algumas delas confusas e desconexas. Mas há algumas que são
impressionantemente claras, consistindo em cheiros, paladares e, claro: sons.
O Brasil vivia o seu oitavo ano de “Regime Militar” e discutia
com o mundo ocidental, questões relacionadas ao uso do “Espaço Marítimo”, não
só para a pesca, como também para a prospecção de petróleo. Fincava pé no que
chamava direito às “200 milhas” das “águas territoriais”, que se limitava às “100
milhas”. Com o “ame-o ou deixe-o” do governo Médici, também o ufanismo de uma
parte da elite brasileira, resultou em campanhas nos jornais e revistas de
grande circulação nacional – devidamente chancelada pela “censura federal” -, encetada
no sentido de obter êxito no pleito às tais “100 milhas marítimas” adicionais. Como
grande parte da população permanecia analfabeta, o rádio e a música seriam convocadas
para entrar naquela querela, que, saliente-se, nada ou pouco traria de
benefício à população como um todo, pois, ao que parece, tratava de disputa
levada a termo, com base em interesses militares.
Para tanto, Eliana Pittman interpretou uma música com o
título bem sugestivo de “Das 200 para lá”, rebatizada de “Este Mar é Meu”. Em
um ano eleitoral em que o “regime dos generais” intentava manter sob seu máximo
controle o espectro político nacional, aquela campanha serviria – acreditavam –
para levantar o “patriotismo” dos eleitores que, como consequência, elegeriam
os candidatos preferidos pelo generalato, às prefeituras e às câmaras municipais.
Aquele também era um tempo em que a teledramaturgia começava
a moldar o modo de agir e de pensar de grande parte dos brasileiros que, antes
tivera o rádio como formador de uma certa “opinião pública”, sobretudo, aquela que
possuía pouca ou nenhuma escolaridade. Desde então, passava a contar com a
televisão e com a sua programação, para o processo de construção da maneira de
perceber e conceber o mundo, daquilo que se conheceria como “brasileiro médio”.
A influência da televisão naquele processo de criação de um outro conjunto de
elementos formadores de uma dada “opinião pública”, se dera tanto através do
seu jornalismo enviesado, quanto através da produção e exibição de dramaturgias
romanescas, marcadamente no tocante ao gosto musical que passava a ser
determinado a partir das músicas tocadas nas novelas, majoritariamente, as músicas
ligadas aos personagens mais “amados” pelos telespectadores. Estas, por sua
vez, em grande medida, eram compostas e interpretadas por artistas e/ou grupos
musicais internacionais.
O grande sucesso da televisão brasileira de 1972, que
acabava de ganhar a sua versão “a cores”, fora “Selva de Pedra”, escrita pela
dramaturga Janete Clair, que, no seu bojo, ao menos duas músicas de sua trilha
internacional, estiveram entre as cem mais tocadas naquele ano. Aqui, o link
para elas.
Enquanto o mundo de então se encantava com o poema
interpretado por John Lennon, que apontava para o desejo de um mundo de utopias
e anseios de paz e harmonia entre os terráqueos – https://youtu.be/5MV_x5Y3zzk - , a
televisão brasileira continuava o seu processo de despolitização do povo, negando-lhes
informações importantes do seu cotidiano marcado pelas torturas e
desaparições daqueles que ousaram não se
submeter à sanguinolência dos que mandavam e desmandavam no país, deixando de
municiar a população de elementos que a fizessem pensar no voto que
depositariam nas urnas em 15 de novembro, como sendo instrumento de
transformação da história, e não com maneira de reforçar a letargia social e política em que estava
mergulhada a sociedade civil, regida por um “anticomunismo” estéril e histérico
que levara o o regime a endurecer-se ainda mais contra estudantes, professores,
advogados, alguns jornalistas, como bem demonstraria mais tarde o assassinato
de Vladimir Herzog (1937-1975).
Mas, o rádio ainda era a maior força da comunicação no
Brasil daqueles “anos de chumbo”. Por ele era levado aos brasileiros a “música”,
o “esporte” e a “notícia”, conforme bordão brandido por muitos anos pela rádio
Globo do Rio de Janeiro. Não obstante a televisão interferir de modo cada vez
mais profundamente no gosto estético e artístico das pessoas, o rádio AM tinha
a versatilidade e a maior capacidade de penetração nos estratos sociais mais diversos
da população, sem falar no fato de que poderia ser ouvido em espaços urbanos e
rurais mais longínquos do território nacional. Portanto, é no rádio que a
música “esperanças Perdidas”, interpretada pelos “originais do Samba”, chega a
um público ouvinte politicamente inserido no contexto construído pelos versos
de sua composição.
Mesmo a composição de Vinícius de Morais e interpretada por
ele e Toquinho, cheia de suubliminaridades e de conteúdo fortemente marcado
pela genialidade do seu autor, conseguira chegar aos rincões mais remotos do
Brasil, pela força do rádio.
E o que dizer da letra excepcionalmente construída de forma
a fazer brotar uma poesia erudita, da lavra de Antônio Carlos Jobim,
magistralmente interpretada por Elis Regina “Águas de março”? Pois é: o rádio
levou aos ouvidos de indistintos ouvintes pelo chão do Brasil a fora.
Em um disco bastante executado nos rádios de grande parte
dos brasileiros, Roberto Carlos, deixando a “jovem guarda” cada vez no passado,
interpretando uma bela composição de Antônio Marcos – que mais tarde também a
interpretara -, pergunta:
E por fim, naquele mesmo ano de 1972, já quase no seu
término, este escrevedor e o seu irmão mais velho, “In Memoriam” (1954-1974), caindo
a tarde e principiando a noite, ouviam a rádio Globo do Rio de Janeiro, que
executava as músicas mais pedidas durante a programação da emissora. Aquelas
audições eram aguardadas com ansiedade pelos dois irmãos, visto que as músicas
ali tocadas muito aguçavam o gosto melódico de ambos. Duas delas marcaram indelevelmente
a memória deste escrevedor, pois naquele ano Antônio Carlos completara dezoito
anos e, cumprira o seu dever e exercera o seu direito de votar. As músicas
nunca saíram da lembrança deste que vos escreve, uma vez que ainda hoje são
executadas nas rádios e, ao ser ouvida, ainda desperta as mesmas lembranças e
as muitas saudades daquele ano. Não se imaginava que menos de um ano e meio
depois, não o tinha mais como companhia para ouvir as “mais pedidas”, que tanto
marcaram a programação do rádio, por mais alguns anos.
Professor Jorge Damasceno – 28 de outubro de 2020.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente; quero saber o que você pensa!