2 de julho de 1954 – memórias de uma de suas moradoras
A rua/bairro dois de julho é um daqueles “lugares “em que as
“memórias” se fazem presentes em toda a sua extensão. Dividida em duas partes
pela linha férrea que foi o traço a partir do qual toda a urbe alagoinhense
conformou a sua paisagem urbana, a rua 2 de julho, se inicia ao atravessar a “linha”
para a direita, deixando para trás a rua Moreira Rêgo e, se estende até as
margens do rio Aramari, por onde histórias e memórias se misturam desde os
finais do século XIX. Pouco a pouco chácaras, sítios e fazendas vão dando lugar
a loteamentos e habitações modestas, ganhando caráter urbano quando dotado de
calçamento feito com paralelepípedos, energia elétrica, iluminação pública e,
por fim, esgotamento sanitário. Mas, não se deve perder de vista que o
desenvolvimento urbano produzido pela implantação de tais melhorias, fez-se
lento e pleno de soluções de continuidade. Enquanto tal se dava, a marca
indelével do espaço urbano em apreço era, sem sombra de dúvidas, a linha
férrea, e as oficinas a ela ligadas, a estação São Francisco e os concomitantes
ires e vires dos trens de cargas e de passageiros.
Lília Schwarcz ao concluir a sua monumental biografia de
Lima Barreto, evocando Pierre Nora, constrói uma interessante leitura acerca da
noção de “lugares de memória”, que aqui parece pertinente inserir. Diz
SCHWARCZ:
"Lugares de memória" nascem e vivem, [...], a
partir do sentimento e da emoção, e é possível dizer que nunca surgem
espontaneamente. Ou seja, acabamos por ritualizar algumas memórias, não todas.
Aliás, se tentássemos guardar todas as nossas lembranças, elas seriam
basicamente inúteis. Somos nós que damos sentido às recordações e, em geral, é
a história que se apodera delas, as seleciona, e assim lhes confere certo
significado de perenidade. Não só lembramos, como fazemos questão de esquecer,
também. Por isso, os “lugares de memória" vigoram quando o simples
registro passageiro cessa de existir; ou seja, quando suspendemos a lembrança
do dia a dia e resolvemos dar a ela um lugar mais fixo e estabelecido. Nesse
momento, ela deixa de ser mera reminiscência, para ganhar um valor simbólico e
sentimental”. (SCHWARCZ, 2017, 508-509).
É neste sentido que a professora Iraci Gama Santa Luzia, ao escrever
um texto acerca do falecimento da sempre decantada Marta Rocha, acaba por
evocar uma memória, cujo momento lembrado está lastreado em um episódio
localizado nos tempos da efervescência da “era das ferrovias” em Alagoinhas.
Ali, a rua 2 de julho se constituía em um “lugar de memória”, visto que, como
que representada pelos seus moradores, estava testemunhando um momento
apoteótico que ficou gravado na memória daquela que ainda era uma “menina” que
cursava o ginásio.
Procurando desenvolver um escrito que homenageasse a
personagem que lhe povoava as lembranças, Iraci também acaba por rememorar as
influências exercidas por duas de suas tias –Nininha e Minicute -, no seu
processo de formação como pessoa que se envolveria na educação e na cultura da
cidade, bem como no seu desenvolvimento intelectual, fazendo com que ela viesse
a ser alguém que se apaixonaria pela memória
e pelas letras. A professora, ao autorizar o uso do seu escrito por parte deste
escrevente, diz para ele que “[...], gostaria de dedicar este texto a duas das
minhas tias, Nininha e Minicute. Elas eram as leitoras e provocadoras dos
diálogos que nos levaram (eu e meus irmãos) para o mundo fora de casa”.,
Por sua vez, Pierre Nora, no seu já clássico “Entre Histórias
e Memórias: a problemática dos lugares”, sustenta que:
“[...], se é verdade que a razão fundamental de
ser de um lugar de memória é parar o
tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar
o imaterial para – [...] - prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é
claro, e é isso que os torna
apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante
ressaltar de seus significados e no silvado
imprevisível de suas ramificações” (Nora, 1993,P. 21).
Portanto, é possível inscrever o arrazoado produzido
pela professora Iraci Gama Santa Luzia, nos aspectos indicados na passagem acima,
uma vez que o seu “rememorar” está diretamente relacionado com um dos “lugares
de memória” da cidade em que nasceu e, mais ainda: da rua em que cresceu, viveu
todos os momentos mais marcantes da formação do seu caráter, bem como do acúmulo
das “camadas” de memória que configuram a sua história pessoal, profissional, enquanto
ser “indivíduo” e “coletivo”.
Nas próximas linhas, a palavra pertence a ela; ela que
no dia 9, deste mesmo julho, insere a septuagésima sétima laranja no bocapio da
existência; ela que tem a palavra por “dom”, mas também por desenvolvimento e
aprimoramento, desde as primeiras letras aprendidas em casa e na escola da professora
Lourdes Sabac de Azevedo, reforçado pelas leituras feitas por Nininha e
Minicute, fortalecido nos tempos ginasiais, passando pelos tempos colegiais,
chegando aos momentos em que atuou como mestre de muitos na Faculdade de
Formação de Professores e na vida pública como um todo.
“Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss
Brasil” – Iraci Gama Santa Luzia.
Já passou de meia noite, mas preciso usar essa data para
falar de um fato que é do nosso cotidiano, mas, se reveste de circunstâncias
que o tornam especial. E, seis de julho, tornou-se um dia diferente, porque
marca, em 2020, a morte de uma baiana singular - MARTA ROCHA. Singular e Plural
ao mesmo tempo. Caraterísticas físicas definidoras de um corpo escultural,
natural, ou seja, sem os arranjos das horas de Academia, e sem os consertos dos
bisturis. Era uma beleza autêntica, com pouca maquiagem, porque, na época, isso
era um dos critérios. Dona de uma simpatia contagiante e envolvente. E cativou
a Bahia, o Brasil e o mundo.
Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss Brasil. Foi um
fenômeno de aceitação. Aquela mulher extraordinariamente bela era amada por
todos que desejavam o seu sucesso.
Até mesmo quem era criança, como eu, que não entendia,
direito o que estava acontecendo, mas ouvia as explicações das minhas tias, que
liam as matérias publicadas na Revista "O Cruzeiro". As duas
candidatas juntas, na foto, e a nossa, muito mais bonita que a americana. E
David Nasser, jornalista responsável pela matéria, escrevia frases lindas,
sobre elas, e a leitura das minhas tias, dava um significado todo especial
àquelas palavras. Passados tantos anos, lembro de uma comparação
maravilhosamente feita: " era um plácido lago contra um mar revolto".
Que poesia nesse jornalista! A nossa Marta era o mar revolto. Uma figura que se
mostrava, por inteiro, trazendo a alma baiana, de alegria, de emoção, de
vivacidade, de encantamento, de prazer na vida e naquela atividade, pelo
sorriso estampado no rosto, com jovialidade e descontração de quem vive na Bahia,
com a liberdade para ser feliz. E era feliz. E fez muita gente feliz, naquele
tempo. Marcas da sua singularidade.
E como foi plural? Sabendo perder, sem ter perdido.
Percebendo que havia outros critérios além da beleza, mas sabendo contornar a
situação. Ficou mais bonita ainda, na passarela. Nunca fez queixas. Sorria da
situação. Anos mais tarde, organizaram um Concurso entre Miss Brasil de
diferentes anos e, na competição, ela acabou ganhando. Uma outra Marta, baiana,
Marta Vasconcelos, sagrou-se Miss Bahia e depois Brasil, e a família contava
que aquela moça foi preparada, de pequena, para repetir Marta Rocha. Aí, já era
Marta, sendo professora.
Uma outra marca de sua pluralidade, foi a transferência da
beleza. Tudo que era bonito, era Marta Rocha. Assim, no dia Dois de Julho de
1954, passou pelas linhas daqui da Rua Dois de julho, vindo de Salvador, um
belíssimo TREM, que brilhava, faiscava ao sol. Todo mundo na porta, gritando de
emoção. E eu, parece que me vejo, em pé, no portão de casa, ouvindo o apito da
locomotiva, para chamar atenção de todos para a composição de alumínio que foi
preparada nas Oficinas de Aramari, que naquele tempo, ainda era distrito de
Alagoinhas.
Tanta beleza assim, merecia um nome. E teve. Passou a ser
chamado " O Marta Rocha". Êta, trem bonito danado. No mesmo dia em
que a Rádio Emissora de Alagoinhas foi inaugurada. Muita alegria para esse dia,
para essa data, para essa comunidade, pela alegria e beleza de uma mulher que
passou tantas dificuldades na vida, mas nunca entregou-se ao desencanto e à
tristeza.
Siga em paz, Marta. Que a sua lembrança entre nós, será de
uma mulher que soube ser SINGULAR e PLURAL.
Professor Jorge Damasceno