terça-feira, 7 de julho de 2020

Alagoinhas, julho de 1954 - "Êta, trem bonito danado": uma memória da professora Iraci Gama.


2 de julho de 1954 – memórias de uma de suas moradoras

A rua/bairro dois de julho é um daqueles “lugares “em que as “memórias” se fazem presentes em toda a sua extensão. Dividida em duas partes pela linha férrea que foi o traço a partir do qual toda a urbe alagoinhense conformou a sua paisagem urbana, a rua 2 de julho, se inicia ao atravessar a “linha” para a direita, deixando para trás a rua Moreira Rêgo e, se estende até as margens do rio Aramari, por onde histórias e memórias se misturam desde os finais do século XIX. Pouco a pouco chácaras, sítios e fazendas vão dando lugar a loteamentos e habitações modestas, ganhando caráter urbano quando dotado de calçamento feito com paralelepípedos, energia elétrica, iluminação pública e, por fim, esgotamento sanitário. Mas, não se deve perder de vista que o desenvolvimento urbano produzido pela implantação de tais melhorias, fez-se lento e pleno de soluções de continuidade. Enquanto tal se dava, a marca indelével do espaço urbano em apreço era, sem sombra de dúvidas, a linha férrea, e as oficinas a ela ligadas, a estação São Francisco e os concomitantes ires e vires dos trens de cargas e de passageiros.
Lília Schwarcz ao concluir a sua monumental biografia de Lima Barreto, evocando Pierre Nora, constrói uma interessante leitura acerca da noção de “lugares de memória”, que aqui parece pertinente inserir. Diz SCHWARCZ:

"Lugares de memória" nascem e vivem, [...], a partir do sentimento e da emoção, e é possível dizer que nunca surgem espontaneamente. Ou seja, acabamos por ritualizar algumas memórias, não todas. Aliás, se tentássemos guardar todas as nossas lembranças, elas seriam basicamente inúteis. Somos nós que damos sentido às recordações e, em geral, é a história que se apodera delas, as seleciona, e assim lhes confere certo significado de perenidade. Não só lembramos, como fazemos questão de esquecer, também. Por isso, os “lugares de memória" vigoram quando o simples registro passageiro cessa de existir; ou seja, quando suspendemos a lembrança do dia a dia e resolvemos dar a ela um lugar mais fixo e estabelecido. Nesse momento, ela deixa de ser mera reminiscência, para ganhar um valor simbólico e sentimental”. (SCHWARCZ, 2017, 508-509).

É neste sentido que a professora Iraci Gama Santa Luzia, ao escrever um texto acerca do falecimento da sempre decantada Marta Rocha, acaba por evocar uma memória, cujo momento lembrado está lastreado em um episódio localizado nos tempos da efervescência da “era das ferrovias” em Alagoinhas. Ali, a rua 2 de julho se constituía em um “lugar de memória”, visto que, como que representada pelos seus moradores, estava testemunhando um momento apoteótico que ficou gravado na memória daquela que ainda era uma “menina” que cursava o ginásio.
Procurando desenvolver um escrito que homenageasse a personagem que lhe povoava as lembranças, Iraci também acaba por rememorar as influências exercidas por duas de suas tias –Nininha e Minicute -, no seu processo de formação como pessoa que se envolveria na educação e na cultura da cidade, bem como no seu desenvolvimento intelectual, fazendo com que ela viesse a ser  alguém que se apaixonaria pela memória e pelas letras. A professora, ao autorizar o uso do seu escrito por parte deste escrevente, diz para ele que “[...], gostaria de dedicar este texto a duas das minhas tias, Nininha e Minicute. Elas eram as leitoras e provocadoras dos diálogos que nos levaram (eu e meus irmãos) para o mundo fora de casa”.,
Por sua vez, Pierre Nora, no seu já clássico “Entre Histórias e Memórias: a problemática dos lugares”, sustenta que:

“[...], se é verdade que a razão fundamental de ser de um lugar  de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado  de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para – [...] - prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro,  e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua  aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado  imprevisível de suas ramificações” (Nora, 1993,P. 21). 

Portanto, é possível inscrever o arrazoado produzido pela professora Iraci Gama Santa Luzia, nos aspectos indicados na passagem acima, uma vez que o seu “rememorar” está diretamente relacionado com um dos “lugares de memória” da cidade em que nasceu e, mais ainda: da rua em que cresceu, viveu todos os momentos mais marcantes da formação do seu caráter, bem como do acúmulo das “camadas” de memória que configuram a sua história pessoal, profissional, enquanto ser “indivíduo” e “coletivo”.
Nas próximas linhas, a palavra pertence a ela; ela que no dia 9, deste mesmo julho, insere a septuagésima sétima laranja no bocapio da existência; ela que tem a palavra por “dom”, mas também por desenvolvimento e aprimoramento, desde as primeiras letras aprendidas em casa e na escola da professora Lourdes Sabac de Azevedo, reforçado pelas leituras feitas por Nininha e Minicute, fortalecido nos tempos ginasiais, passando pelos tempos colegiais, chegando aos momentos em que atuou como mestre de muitos na Faculdade de Formação de Professores e na vida pública como um todo.

Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss Brasil” – Iraci Gama Santa Luzia.

Já passou de meia noite, mas preciso usar essa data para falar de um fato que é do nosso cotidiano, mas, se reveste de circunstâncias que o tornam especial. E, seis de julho, tornou-se um dia diferente, porque marca, em 2020, a morte de uma baiana singular - MARTA ROCHA. Singular e Plural ao mesmo tempo. Caraterísticas físicas definidoras de um corpo escultural, natural, ou seja, sem os arranjos das horas de Academia, e sem os consertos dos bisturis. Era uma beleza autêntica, com pouca maquiagem, porque, na época, isso era um dos critérios. Dona de uma simpatia contagiante e envolvente. E cativou a Bahia, o Brasil e o mundo.
Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss Brasil. Foi um fenômeno de aceitação. Aquela mulher extraordinariamente bela era amada por todos que desejavam o seu sucesso.
Até mesmo quem era criança, como eu, que não entendia, direito o que estava acontecendo, mas ouvia as explicações das minhas tias, que liam as matérias publicadas na Revista "O Cruzeiro". As duas candidatas juntas, na foto, e a nossa, muito mais bonita que a americana. E David Nasser, jornalista responsável pela matéria, escrevia frases lindas, sobre elas, e a leitura das minhas tias, dava um significado todo especial àquelas palavras. Passados tantos anos, lembro de uma comparação maravilhosamente feita: " era um plácido lago contra um mar revolto". Que poesia nesse jornalista! A nossa Marta era o mar revolto. Uma figura que se mostrava, por inteiro, trazendo a alma baiana, de alegria, de emoção, de vivacidade, de encantamento, de prazer na vida e naquela atividade, pelo sorriso estampado no rosto, com jovialidade e descontração de quem vive na Bahia, com a liberdade para ser feliz. E era feliz. E fez muita gente feliz, naquele tempo. Marcas da sua singularidade.
E como foi plural? Sabendo perder, sem ter perdido. Percebendo que havia outros critérios além da beleza, mas sabendo contornar a situação. Ficou mais bonita ainda, na passarela. Nunca fez queixas. Sorria da situação. Anos mais tarde, organizaram um Concurso entre Miss Brasil de diferentes anos e, na competição, ela acabou ganhando. Uma outra Marta, baiana, Marta Vasconcelos, sagrou-se Miss Bahia e depois Brasil, e a família contava que aquela moça foi preparada, de pequena, para repetir Marta Rocha. Aí, já era Marta, sendo professora.
Uma outra marca de sua pluralidade, foi a transferência da beleza. Tudo que era bonito, era Marta Rocha. Assim, no dia Dois de Julho de 1954, passou pelas linhas daqui da Rua Dois de julho, vindo de Salvador, um belíssimo TREM, que brilhava, faiscava ao sol. Todo mundo na porta, gritando de emoção. E eu, parece que me vejo, em pé, no portão de casa, ouvindo o apito da locomotiva, para chamar atenção de todos para a composição de alumínio que foi preparada nas Oficinas de Aramari, que naquele tempo, ainda era distrito de Alagoinhas.
Tanta beleza assim, merecia um nome. E teve. Passou a ser chamado " O Marta Rocha". Êta, trem bonito danado. No mesmo dia em que a Rádio Emissora de Alagoinhas foi inaugurada. Muita alegria para esse dia, para essa data, para essa comunidade, pela alegria e beleza de uma mulher que passou tantas dificuldades na vida, mas nunca entregou-se ao desencanto e à tristeza.
Siga em paz, Marta. Que a sua lembrança entre nós, será de uma mulher que soube ser SINGULAR e PLURAL.

Professor Jorge Damasceno

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Quando a Feira era do "Pau" - algumas notas memorialísticas


Quando a Feira era “do pau”” e o café era servido com liberalidade – Alagoinhas 1969-1981: algumas notas memorialísticas.

Tendo acabado de completar cento e sessenta e oito anos de emancipação político-administrativa, em sua trajetória histórica, Alagoinhas construiu marcas indeléveis no imaginário dos seus moradores, que teimam em se manter vivas a despeito dos anos e das mudanças na configuração espacial da cidade. Esclareça-se que, a data aqui considerada é a aquela em que se deu a publicação do decreto provincial que eleva a freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas à categoria de vila, emancipando-a da jurisdição de Inhambupe: 16 de junho de 1852.
Mas, é preciso que se diga, que  esta “teimosia” se deve em grande medida, ao esforço feito por pesquisadores que se tem debruçado sobre escassa, dispersa e muitíssimo mal conservada  documentação quase sempre em condições extremas de insalubridade, na busca de elementos que lhes permitam desenvolver a construção analítica do caminhar da sociedade, da economia e da política alagoinhense. Neste costurar de elementos geoespaciais, personagens, estruturas sociais e econômicas, se poderia citar, apenas à guisa de exemplos, pesquisadores do quilate de Keite Lima, Raimundo Nonato Pereira Moreira, Moisés Leal, Ede Ricardo, Eliana Batista, - mesmo este escrevedor que arriscou alguns textos ensaísticos acerca de Maria Feijó, sua mais decantada literata e personagem que ainda habita vivamente no imaginário de muitos alagoinhenses -, entre tantos que desenvolveram trabalhos historiográficos cujo objeto era algum “devir histórico” da urbe que já avança no terceiro quartel do seu segundo século.
E, como já se disse, isto também se deve ao trabalho de memorialistas que descreveram e cantaram a “cidade da laranja”, trouxeram ao público com leveza e elegância, muitos elementos espaciais que ficaram entranhados no seu rememorar, que, em grande parte dos casos, não reste mais do que alguns vestígios em forma de fotografias e imagens descritas por gente da estirpe de Salomão Barros, Naylor Bastos, Joanita Cunha, Maria Feijó de Souza Neves, Iraci Gama Santa Luzia, José Olívio Paranhos, Lázaro Zacariades, Antônio Mário dos Santos, dentre outros alagoinhenses que se deram ao trabalho de divagar sobre os “lugares de memória” que tanto os impressionara e influenciara em seus “rememorares”.
A formulação “Lugares de memória”, aqui é entendida de acordo com a formulação do historiador francês Pierre Nora, em uma obra já clássica que organizou em sete alentados volumes entre 1984 e 1987 Intitulado “Les Lieux de Memoire. Para o presente texto, será utilizado um fragmento publicado no Brasil em 1993, na revista Projeto História – Entre História e memória: a problemática dos Lugares. Nele, Pierre Nora, entre outras coisas, afirma que:

“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. [...]. Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade. Daí o aspecto nostálgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São os rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio; sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos”. (Nora,1993, p. 12).

Mais adiante, para os fins que aqui interessam, o autor assegura que

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. [...] (Nora, 1993, P. 13).

Alagoinhas  é uma cidade prenhe destes “lugares de memória”, embora em grande parte, muitíssimo mal preservados, visto que, apesar de se ter feito alguns esforços no sentido de chamar a atenção dos poderes públicos para a conservação deles, não tem havido, independentemente da pessoa e/ou grupo político à frente dos destinos do município, grande preocupação que resulte em medidas efetivas para que sejam reduzidos os efeitos deletérios do tempo e das condições ambientais – para além do “vandalismo” e da especulação imobiliária, que aceleram o processo de descaracterização daqueles “lugares de memória”.
Uma boa parte de tais “lugares de memória” sofre a ação dos agentes econômicos e imobiliários que, sem qualquer interesse em algum tipo de conservação, fazem alterações e, quase sempre, reconstruções de prédios, espaços de sociabilidade e de “rememoração”, sem quaisquer escrúpulos, a não ser aqueles que os movem: a grana, que no dizer de Caetano Veloso “ergue e destrói coisas belas”. Ao que parece, neste aspecto específico que envolve a luta pela conservação dos “lugares de memória “da urbe alagoinhense, é o lucro a qualquer custo que preside o agir daqueles que se apresentam como os “agentes do progresso”, ou como os “atores do desenvolvimento e da modernização” da cidade.
Como exemplos da diversidade dos “lugares de memória” encontráveis na paisagem urbana de Alagoinhas,  além da já mencionada “imponente estação São Francisco, em cujas dependências se encontra o rico acervo da Fundação Iraci Gama” e, na perspectiva apontada nos trechos de Pierre Nora transcritos acima, pode-se apontar o “Cemitério da Praça da Saudade”, o bem conhecido “Pau Pintado”, o “mercado do artesão” (que por algum tempo foi o “mercado da carne”), a “Praça Castro Leal” onde por algum tempo funcionou o terminal dos transportes coletivos – que, sofreu um processo que os gestores chamam de “requalificação”, o “Tênis Clube” e o “Clube Acra” – que, entre outros como a Euterpe e a Siciliana, foram os espaços privilegiados de sociabilidade da “elite” alagoinhense -, a também conhecida  “Igreja Inacabada”, que tem sido  alvo de vários estudos em diversas áreas do saber, o prédio onde hoje funciona a “biblioteca Maria Feijó”, que, para este escrevedor, é um “lugar de memória” par Excelence, pois lá funcionou por mais de vinte anos a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas. Ali este aprendiz de escrevedor fez a formação em história, que o permitiu estar a “garatujar” aqui e agora.
Ainda se poderia mencionar o local onde se desenrolava o processo de torrefação e de comercialização do café “O Barão” – o seu cheiro podia ser sentido em toda aquela área e, de acordo com os ventos, avançava para outros pontos da cidade (por muito tempo, este café maníaco sorveu aquele delicioso cheiro de café torrando, a partir do Brasilino Viegas, escola onde estudara). Em um prédio localizado na rua Francisco Batista (em dois lugares daquela mesma rua: a loja inicial era um pouco abaixo da última), por muitas e muitas tardes, este escrevinhador apreciara incontáveis xícaras de bom café, ainda quando a cortesia da casa era disputada com outros degustadores daquela apreciável infusão. O local era frequentado por feirantes, comerciantes, políticos e outras autoridades da cidade, o que dava um caráter “democrático “àquele “lugar de memória” e de sociabilidade, pouco encontrável em outros espaços da cidade. Talvez, um dos lugares de memória de Alagoinhas que tenha experimentado um tal grau de sociabilidade, fora o estádio municipal Antônio Carneiro, onde memoráveis partidas de futebol se desennrolaram, envolvendo os principais times da capital baiana – Bahia e Vitória -, em apoteóticos enfrentamentos com o Atlético de Alagoinhas – que ora já se tornou praticamente um dos “lugares de memória” -, além de pelejas envolvendo grandes clubes brasileiros, como o Flamengo carioca e o Coríntians Paulista.
E, enfim de contas, o que dizer do “Estadual”, da “Senege/Senec”, do “Ginásio de Alagoinhas”, do “Santíssimo Sacramento”, da “Farda Branca”, da “agência” – lugar de onde se chegou e se partiu por um bom par de anos, fazendo as vezes de rodoviária da cidade -,entre vários outros cantos e recantos da urbe alagoinhense, segundo os “lembrares” de cada um dos que leem estes “garatujes” eletrônicos?
Entretanto, para chegar ao que foi proposto no título deste arrazoado, seria preciso incorporar ao seleto grupo em que, por meio da “memória”, as pessoas se reencontram com um momento de sua vida ou muitos dentre eles. Está se falando aqui, dos espaços e imóveis encontrados ao longo dos quarteirões para onde a feira foi transferida, juntamente com o conjunto urbano daquela Alagoinhas recém elevada a Vila, para se encontrar com “os trilhos” da ferrovia que tanto desejara a sua liderança. É evidente que os imóveis e espaços que este escrevedor conheceu e/ou frequentou nos marcos temporais estabelecidos na primeira linha deste arrazoado, já estavam bem diferentes daqueles existentes quando os feirantes foram obrigados a descer ao aludido encontro dos trilhos. O que aqui será apontado se relaciona diretamente com a memória  construída a partir dos ires e vires deste autor àquelas paragens, entre os anos de 1969, quando iniciou o seu processo de escolarização e o ano de 1981, quando interrompeu o seu cotidiano de frequência semanal aos cultos na então Primeira Igreja Batista de Alagoinhas, quando dela se desligara.
Portanto, aqui se quer falar do conjunto de açougues que se encontravam desde a esquina da rua Pedro Pondé com a Castro Leal e chegavam até ao armazém de Jorge Campos, intermediado pelo espaço ocupado por um lugar de drinques  e lanches, ali estabelecido, onde este então jovem rapaz, tomara solitariamente algumas “cubas”; atravessando a rua e transitando na calçada onde funcionara por muito tempo a “casa da Revista” e o seu cheiro característico, sentido ao passar diante das suas portas, até chegar a esquina onde funcionara a agência do “banco do nordeste” – lugar onde por muitos anos esmolara um velho cego que procurava amolecer o coração dos passantes com a sua ladainha verbalizada em voz rouca e sentida “o cego lhe pede uma esmola, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo!”; como não falar do supermercado “Paradellla”, com os cheiros e os ruídos vindos do seu interior; já na última calçada que se precisava vencer para chegar ao Brasilino Viegas onde este autor estudou e ao prédio da Primeira Igreja Batista onde ele congregou, precisaria passar por um outro conjunto de açougues, sendo que, ao lado esquerdo deles, eram colocadas algumas capoeiras com aves em constante reboliço e, mais adiante, naquele mesmo passeio, havia um depósito de bebidas, cujo cheiro que exalava não deixava dúvidas de qual era o objeto de sua atividade comercial, além de uma farmácia e um outro depósito, desta vez, o cheiro que vinha do seu interior era o de querosene, combustível ainda bastante utilizado na iluminação de muitos lugares de habitação, inclusive, é provável, nas casas de lona e madeira que se erguiam teimosamente ali, nos fundos do Brasilino e adjacências.
Como é fácil depreender, muitos homens e mulheres passaram por aqueles espaços, imóveis e barracas, ao longo de mais de cem anos, nos seus diversos afazeres e labores: compradores e vendedores, carregadores, fiscais e prepostos “da lei”, todos os tipos de gente, oriundas dos mais diversos pontos da cidade, ou mesmo dos muitos vagares pela cidade. Eram homens e mulheres que, por vezes, pareciam “trapos humanos”, “farrapos” de existências quase sem sentido. Naquele grande espaço de sociabilidade, os comerciantes instalados nos seus “armazéns”, os alunos e os professores em duas escolas que fizeram parte daquele ambiente humano, os crentes e pastores daquela Igreja protestante, encravada em meio a um espaço de circulação de “almas enfermas” – para as quais deveria atuar como “a luz na escuridão - e, até mesmo “o Alagoinhas jornal” - cujo prédio era instalado ali ao lado - e seus jornalistas, cruzavam e/ou conviviam diariamente e/ou semanalmente com “os vivos quase mortos” que gravitavam por ali.
Dois leitores em comentários – uma no próprio blog e outro em off -, chamaram a atenção deste garatujador, com relação à maneira como aquele espaço ficou gravado na memória coletiva do alagoinhense, relacionado ao epíteto “do pau”, que era acrescentado ao lugar “feira”. Os atentos leitores apontaram a necessidade de se informar ao leitor a razão “histórica” de tal denominação do espaço. Ele perguntou se “o nome feira do pau não se derivaria do fato daquele lugar ter sido construído todo com madeira”; o garatujador argumentou que, poderia ter algum sentido; mas seria um dentre tantos. Ela, por sua vez, disse ter sentido falta de uma explicação que justificasse a escolha do título da postagem. Em um comentário bastante lúcido ela discorreu sobre o nome popularmente dado ao lugar: “Na verdade, eram duas feiras. A "Feira do Pau" tinha sua característica própria: comércio de Madeiras (popularmente chamadas de paus) bem como, a concentração de marginalizados da sociedade (moradores de ruas, prostitutas, deficientes mentais e outros...) Que ali eram acolhidos. Com esse tipo de coletivo era comum os desentendimentos e de vez em quando "O pau comia".
Preferiu-se trazer para este arrazoado o comentário da própria autora, para salientar ao leitor as várias inferências que podem ser feitas ao epíteto “pau”, o que confere uma riqueza analítica que pode ser de grande valia, no sentido de permitir a feitura de excelentes estudos que podem ser desenvolvidos nos vários campos do saber e, sobretudo, na  pesquisa histórica. Ela inicia as suas observações com a afirmação de que “As lembranças vieram à minha mente com sua descrição. [...]”. Tal observação remete ao trabalho do pesquisador que tem uma de suas bases teóricas fincadas nas proposições desenvolvidas por aqueles cuja massa a partir da qual realiza o seu trabalho de pesquisa é a “memória”.
Em um dos pontos do comentário da leitora, ela aponta para o fato de que aquele espaço era um lugar de convivência, como sugeriu-se linhas acima, de uma quase infinita gama de gentes marginalizadas, tanto do ponto de vista econômico, quanto e, sobretudo, do ponto de vista social. A “feira do pau” abrigava “doidos” folclóricos, como “Maria Café Quente”; também alguns deles por lá circulavam, como era o caso de “Jairo” e, o tão temido “Zé Paulo”. A propósito deste último, a aludida leitora se reportou ao episódio em que ela mesma fora atacada por “Zé Paulo”, quando voltava de cumprir uma tarefa que lhe fora atribuída por sua genitora: fora na “feira do pau” comprar cachaça para que, com ela, fosse preparado o “licor de São João”. Voltando já com a dita cachaça, fora atacada por “Zé Paulo” com um “pau” que lhe quebrou a garrafa e, claro, também se foi o seu conteúdo.
Também este escrevedor lembra de um episódio, dentre outros tantos, protagonizado por aquele morador da “feira do Pau”. Havia uma forma de provocar-lhe a ira, que era gritar o seu nome, de maneira alongada... “Zé Pauloooooooo”. Um dia, os responsáveis pelo portão da escola Brasilino Viegas não os fecharam e, de dentro da escola, alguém gritou o nome dele, do modo que o enfurecia! O dito partiu para dentro da escola, com o objetivo de pegar aquele ou aqueles que o “arreliavam” .... Foi uma correria! Salas trancadas/escoradas como se pôde; direção e portas centrais fechadas há muito custo... Até que o enfurecido “ZéPaulo”  foi contido e o gaiato zombador foi identificado e punido...

Professor José Jorge Damasceno

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Rádio Emissora de Alagoinhas: algumas notas memorialísticas II.


Quando a rádio era “emissora” e as ondas eram “médias” – 1974-1979.

O “trabalho da memória” está sempre em consonância com as escolhas realizadas por quem se dispõe a lembrar e, sobretudo, quando o que é lembrado sai do silêncio dos anos e salta no presente de quem lembra. Este lembrar, saliente-se, é marcado pelas escolhas de quem lembra e pelas ressignificações do presente, o que equivale dizer que, a memória trazida por quem lembra, o é, de acordo com os escavares das camadas do passado que se quer lembrar, não deixando de observar o esquecimento como sendo parte do rememorar que é trazido à superfície, mediante a “reconstrução” de um passado cujo presente se apresenta como elemento subjacente ao lembrado. Assim é que o “esquecimento” aparece como o fio por onde se pretende conduzir o “rememorar”, uma vez que o esquecer é parte intrínseca do esforço de lembrar.
A Rádio Emissora de Alagoinhas é o tipo de memória que sempre vem a lume, quando se quer falar de um tempo em que o rádio era quase o único meio de comunicação popular, na medida em que se tornava a companhia daqueles que permaneciam em casa, grande parte do tempo, em um “tempo” em que as oportunidades de entreter-se era muitíssimo escassa. A audição de músicas, possibilitadas pelas emissões radiofônicas, portanto, era o que mais facilmente chegaria a grande parte das residências dos alagoinhenses. Afinal, os toca-discos – fossem portáteis ou móveis instalados em algum espaço da casa – eram caros e, fazia-se necessária uma constante renovação dos acervos de discos, o que encareceria um pouco mais o processo de atualização deles, uma vez que, já naquela época, era grande o volume de  gravações e ainda pouco organizada a distribuição discográfica no Brasil dos anos 1970, dificultando o acompanhamento daquela já larga e variada produção, com o fito de adquirir pessoalmente as muitas opções que eram apresentadas ao consumidor fonográfico.
Neste sentido, era a audição de rádio que permitia o contato com um maior número de, diga-se, lançamentos. No caso da Rádio Emissora de Alagoinhas, parte de seus ouvintes acreditava que assim era: as músicas que lhes chegava aos ouvidos através da sua programação, eram aquelas que estariam em evidência no instante mesmo que eram levadas ao ar e chegavam aos seus receptores. Com o passar do tempo e com a inclusão de outras emissoras radiofônicas ao escopo de sua “arte de ouvir rádio”, constatou-se que as coisas não eram bem assim. Ficava cada vez mais nítido o descompasso entre a produção discográfica e a composição do acervo da discoteca da rádio Emissora de Alagoinhas.
O distanciamento entre o que se ouvia nas emissoras de Salvador, por exemplo, e o que era ouvido por cá, foi ficando mais evidente, com a posterior percepção de que, grande parte dos discos tocados na Rádio Emissora, sobretudo aqueles que estavam mais em evidência no momento de sua execução, pertencia aos seus apresentadores. Não eram raras as vezes que “pedidos musicais” não podiam ser atendidos, porque a “peça” em causa não fazia parte da discoteca da emissora. Também não eram raras as vezes em que os “pedidos musicais” envolvendo gravações mais pretéritas, eram mais facilmente encontráveis, do que outras que estavam no mercado há pouco tempo.
Neste sentido, é possível arriscar aqui uma premissa de que há uma relação estreita entre a emissora e os seus ouvintes, sobretudo aqueles que ouvia apenas ela, no sentido de uma espécie de “manipulação de um determinado público”, com o objetivo de que ele seja forjado de acordo com as possibilidades e limites da programação da rádio., Assim, é muito provável que o “programador” induzia os seus ouvintes no sentido de “ter” um determinado “gosto musical”, sempre de acordo com o material que ele dispunha na “discoteca” da emissora ou no seu acervo pessoal. É, igualmente claro que, o ouvinte que não possuía contato com a programação de outras emissoras, desconhecia a existência de outras músicas, que não aquelas tocadas na única rádio de sua audição, a Emissora de Alagoinhas.
Isto ficou bem evidenciado, pelo fato de que por um grande período de tempo, a Rádio Emissora de Alagoinhas fez uso de programas “enlatados”, que eram produzidos quase sempre no Rio de Janeiro ou em São Paulo e eram distribuídos para todo o Brasil. Tais programas podiam ser “novelas radiofonizadas”, ou outras adaptações no campo da dramaturgia, que eram patrocinados por marcas como “Gessy Lever”, bem como por produtos mais específicos, como era o caso das lavadoras, dos refrigeradores e dos fogões “Frigidaire”; ou poderiam ser os musicais que trariam aos ouvintes os mais recentes “sucessos” do disco.
Se apresentam bem nítidos na memória deste escrevente, programas como o “Nissei Musical”, apresentado pela voz inconfundível de Oliveira Neto, bem como  um outro, o programa patrocinado por um dos produtos de higiene bucal, “Música e Alegria Kolynos”, apresentado por Estevam Sangirardi, gravado nos estúdios da gravadora Odeon e, reafirme-se, distribuído para inúmeras emissoras de todo o País. Mesmo assim, certamente havia um grande hiato entre a produção de tais programas e o momento em que eram distribuídos e executados nas diversas emissoras das várias cidades brasileiras, uma vez que a sua veiculação estava sujeita a uma logística envolvendo grande variedade de elementos, caminhos e descaminhos a serem percorridos, até chegarem ao seu destino final: às rádios e aos seus ouvintes.
Este panorama muda substantivamente, a partir da chegada de dois novos apresentadores de programação musical, cujo perfil era mais aproximado do público composto por aqueles ouvintes que estavam na faixa dos quinze aos  vinte e cinco, trinta anos, cognominados de “jovens”., Os apresentadores em questão, trouxeram um formato de programação já bem avaliado em outras emissoras do Brasil, sobretudo, aquelas estabelecidas no eixo Rio/São Paulo, além das suas congêneres de Salvador.
Está se falando de locutores que aparecem desenvolvendo novos programas na rádio Emissora de Alagoinhas entre 1978 e 1979, trazendo novidades no modo de conduzir os programas, abrindo para a participação dos ouvintes através do telefone, que aliás, era uma das grandes novidades da cidade àquela época, uma vez que a urbe alagoinhense fora alcançada pela expansão dos serviços telefônicos propiciados pela Telebahia. Além de mudanças que permitiam a realização de chamadas interurbanas, também colocava à disposição dos cidadãos, um grande número de telefones públicos, conhecidos popularmente como “orelhões”, com uma distribuição pelos bairros adjacentes aos centro da cidade, o que permitira a implantação da novidade trazidas para o campo da participação dos ouvintes, agora de forma direta, na programação musical da emissora.
Conforme entende este escrevinhador, este foi o grande legado dos locutores e “Disc Jóckey”  Jorge Oliveira E Aloísio Santana, visto que a passagem daqueles dois apresentadores pela Rádio Emissora de Alagoinhas, indicava uma mudança substantiva no modo de fazer rádio com a interação direta com a audiência, que deixava de ser passiva, ainda que em parte, para se tornarem mais próximos dos seus programadores. Grande parte das vezes, o trabalho deles no sentido de renovar o acervo musical da programação, só era possível mediante os seus investimentos pessoais na compra de discos, sobretudo, aqueles de lançamento mais recentes e, parece que era o caso de Aloísio Santana, a posse de grande variedade de discos de todos “os tempos”, talvez em maior quantidade do que os existentes na própria discoteca da emissora.
Este escrevedor gostaria de construir um arrazoado mais demorado para tratar de Jorge Oliveira e Aloísio Santana, no que tange ao legado que ambos deixaram na radiofonia de Alagoinhas, uma vez que, embora tivessem tido grande êxito em levantar a audiência da Rádio Emissora de Alagoinhas, hoje são figuras relegadas ao completo esquecimento, exceto na memória daqueles que o ouviram e, daqueles que privaram do contato e/ou do convívio pessoal/profissional com eles.

Professor Jorge Damasceno