Um escrevedor volta a falar de memória musical I com o rádio ao pé do ouvido.
O ano de 1977 chegou e, com ele, iniciou-se a sétima série.
Para tanto, o recém liberto da rotina prisional inerente aos regimes de
internato, precisou aprender novas formas de interlocução com os professores,
para que pudesse avançar para as séries seguintes. Aprender datilografar em
máquinas de escrever comuns, foi uma das tarefas a que se impôs, mas que, por
ter um custo que nem ele nem a sua mãe podiam arcar, fê-lo de modo autodidático,
além de contar com a colaboração de pessoas envolvidas naquela modalidade de curso,
muito em moda à época, como mais tarde, nos anos 1990, foram os cursos de
computação.
De posse de um “manual de dactilografia Braille”, ainda na
biblioteca do Instituto de Cegos, pela primeira vez, ele tomara contato com uma
máquina de escrever comum, uma Olivetti Letera 32, que acabou sendo o instrumento
que desde então, o acompanharia até a prova de seleção para o ingresso no
Mestrado em História da UFBA, no ano da Graça de 1996, já na etapa relacionada
à sua formação superior.
Mas, naquele primeiro momento, evidentemente, ele não
dispunha, nem tinha qualquer possibilidade de dispor de uma máquina de
escrever. Era o manual em Braille, a sua vontade e, sobretudo, a sua
necessidade de dominar aquela técnica de escrita à tinta, que o levara a procurar
as escolas de Dactilografia locais, no sentido de obter acesso a alguma máquina
que não estivesse ocupada em um determinado horário, para nela procurar
exercitar o seu aprendizado, obtido mediante a leitura atenta do mencionado manual.
Tendo enfrentado alguma resistência, não só por razões de
ordem monetária, mas, sobretudo, aquelas relacionadas ao pensamento pragmático,
fundamentado no fato do pleiteante ser uma pessoa cega, razão pela qual não
seria bem-sucedido na prática datilográfica. A tal objeção, o pleiteante
argumentava dizendo tratar-se de uma contradição, visto que, o indivíduo que era
considerado um bom datilógrafo, era aquele que não olharia para o teclado,
enquanto desenvolvesse a sua atividade naquele instrumento de trabalho.
Compreendido ou não, o certo é que, de quando em vez, era-lhe concedido usar
alguma das máquinas que não estivessem ocupadas em um determinado horário.
Desta forma, ele tomara contato com as pesadíssimas Remington, de difícil
manuseio; mas também, tomou contato com a Olivetti Linea 42, um primor de
equipamento, com o qual logo se identificou, devido a sua leveza e a facilidade
de manuseio, no tocante à definição das margens, por exemplo.
Não obstante o fato de não possuir uma máquina portátil –
embora ela já existisse, conforme foi dito acima -, alguns trabalhos e, até
mesmo algumas provas foram “catamilhografadas” por este escrevedor, o que
reduziu um pouco o abismo interposto entre ele e os seus professores, no que
tange à comunicação de sua aprendizagem, para que pudesse ser avaliada por
eles, sem maiores prejuízos do aluno, visto que, o seu modo de leitura e
escrita era o sistema Braille, que, diga-se de passagem – e sendo redundante -,
era inteiramente desconhecido dos docentes de então. Muitos deles, pela
primeira vez em sua carreira, estavam diante de um aluno cego – quiçá de uma
pessoa cega -, nunca tendo visto antes em sua vida, qualquer coisa escrita em
Braille – sequer, sabiam ser aquilo uma modalidade de escrita.
Portanto, assim correu todo aquele ano, bem como os anos
subsequentes, com os dias amanhecendo e convidando para as novas empreitadas
que teriam de ser enfrentadas: idas ao comércio, a fim de encontrar um horário
vago e uma máquina sem uso; voltar para casa e se preparar para a tarde chegar
no horário das aulas; enfrentar com galhardia as explicações de matemática que
não entravam no “bestunto” e, iam pouco além
dos ouvidos...
Mas, para compensar tudo isto e, para repor o ânimo e as
energias despendidas, tinha as idas para boa conversa e bons almoços na casa de
João ou de Edna – sempre aos domingos -, o excelente prosear com dona Ladi, as
visitas à casa de Valter Ramos e o início do aprendizado de violão, com ele e
os seus filhos e, claro, as audições de rádio, parafraseando Chico Buarque, na sua
ontológica “Meu caro Amigo, “que também sem” a música “ninguém segura este rojão””.
Sim, era com o rádio ao pé do ouvido que este escrevedor ouvia as notícias – em edições levadas ao ar na inconfundível voz de Manoel Canário – “O rádio Repórter A4” -, bem como na voz de Reinaldo Moura, Donizete Nascimento, Ary Barros – “o Correspondente Rener” -, entre tantas outras vozes bonitas e marcantes, que, no entanto, acabaram esquecidas no tempo -, as partidas de futebol – sobretudo através de vozes como as de Marco Aurélio, Djalma Costa Lino, Nilton Nogueira, Ney Costa, Fernando José, França Teixeira; bem como as vozes dos comentaristas Edson Almeida, Wilson Lago, Gerson Macêdo, Souza Durão, Genésio Ramos, Virgílio Elísio da Costa Neto, Enaldo Rodrigues, Armando Oliveira; as vozes de plantonistas esportivos como Carmelito Almeida, Gabriel Saraiva, Eurico Tavares e França Almeida; e ainda as vozes de repórteres como as de Adilson Limomge, Jorge San Martin, Martinho Leles, Alvaro Martins. Além disto, também eram ouvidos programas musicais apresentados por Armando Mariane, julho Cezar, Nilda Simon, Tone Cézar, Alberto Lacerda, Valter Costa, Pedro Santiago, Baby Santiago, Ed Carlos, entre tantos outros.
E, o rádio era especialmente colado ao pé do ouvido, para
melhor apreciar as músicas tocadas na programação radiofônica da época, que,
saliente-se, ainda era o meio pelo qual os cantores conseguiam alcançar o
sucesso junto ao público, embora a televisão e as emissoras em “FM”, já estivessem
concorrendo bem de perto com as emissoras “AM”. Só a título de exemplo,
dir-se-ia que, uma dentre aquelas músicas tocadas no rádio “AM”, Abba, as
meninas suecas que passaram a frequentar as “paradas” musicais com suas canções
envolventes, embora suas letras fossem quase inteiramente desconhecidas e
incompreendidas, cada vez mais fazia parte do repertório obrigatório dos
programas de “Discke Jockey”, como se dizia então. Entre elas, a que mais
agradara e enchera este garatujador de vontade de ouvir muitas vezes e, fizera
com que ele apertasse ainda mais o rádio contra o seu “pé de ouvido”, como se
quisesse fazer com que aquela música entrasse no seu cérebro, estava “I Du, I
Du, I du, I Du”.
Aos domingos, algumas
emissoras dedicavam especial atenção àquelas músicas que já haviam sido sucesso
e, tratavam de fazer com que os seus ouvintes as recordassem. Entre elas, é
possível destacar o “Isto foi sucesso”, apresentada por Aristides Oliveira,
através das “ondas médias” da rádio Sociedade de Feira de Santana, levado ao
público, logo após a apresentação do “Consultório veterinário do doutor Machado”,
talvez programa pioneiro no rádio baiano, que levava informação aos produtores
do campo, como dizia o seu apresentador.
Quando se dirigia ao local onde costumeiramente cortava o
cabelo, este garatujador aguardava a sua vez, ouvindo aquele locutor bem-falante,
de voz bonita, que após informar ao ouvinte qual seria o próximo “número
musical”, sempre concluía aquela locução com uma frase chave, que apontava para
o nome do programa:
- “Isto foi sucesso”.
Ou, talvez visando dar um pouco mais de ênfase a uma
determinada “página musical”, acrescentava:
- “Isto também, foi um grande sucesso”!
Como exemplo para os leitores, escolheu-se uma música
cantada por Elizabeth – Não Há Luar Nem Céu Bonito”, gravada em um compacto
simples em 1969, tocada inúmeras vezes no programa acima aludido, e que foi
um “grande sucesso”!
José Jorge Andrade Damasceno – 30 de Agosto de 2021.