quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Histórias e Memórias de uns tempos vividos em Salvador XII – Dez pães e dez ovos!

Histórias e Memórias de uns tempos vividos em Salvador XII – Dez pães e dez ovos!

 

Conforme foi dito no início desta série de textos, morar em Salvador é mesmo uma experiência muitíssimo diversificada no que tange às marcas deixadas na vida e/ou na memória daqueles que a tenham vivenciado. Lugares, cheiros, paladares e, até mesmo sons – sejam os que agradam (como a música), sejam aqueles que desagradam (barulhos de carros e de outros tipos de sons que violentam os ouvidos humanos -, são marcas que ficam armazenadas no rememorar da pessoa que os vivenciou, podendo a qualquer momento ser acionado por algum daqueles “detonadores de memórias”, fazendo emergir um corolário de lembrares, com várias consequências sobre quem lembra, dependendo de cada indivíduo, possibilitando algumas reconstruções parciais do vivido. Como se sabe, Salvador é uma cidade prenhe de sons. Tanto os sons do vozerio das pessoas; quanto os sons dos seus automóveis, vendedores ambulantes, dos seus meninos indo ou vindo das escolas, dos parques ou dos shoppings; é uma cidade marcada pelos quase incessantes ruídos que não conhecem hora ou dia; desde os produzidos pelas fábricas, transportes coletivos, bem como aqueles característicos dos “bêbados da cidade”, como diria a música de Chico Buarque. Mas, nela também persistem os sons dos pássaros, do farfalhar das folhas nas árvores, ainda que quase abafados pela fúria dos outros sons.

Outrossim, sua complexa e diversificada paisagem social e cultural, é uma das marcas do sua polifonia, acrescentado ao seu rico conjunto arquitetônico, plantado em um amplo espaço geomorfológico que a faz ostentar o epíteto de “Cidade de dois andares”, que se mistura com os bolsões de miséria, marcados pelas habitações tão precárias quanto frágeis que abrigam a grande maioria de sua população – as eufemisticamente chamadas de “invasões’ -, ladeados por encraves de riqueza e opulência de sua elite política, econômica e social, que contrasta com a luxuriosa paisagem natural da baía de Todos os Santos, tão fartamente cantada e decantada pelos trovadores, poetas e cantores os mais diversos, em todo o tempo de sua existência como a “Primeira capital” da dominação portuguesa.

Também já se disse que foram três, as vezes que este garatujador vivenciou aquela experiência, em iguais três momentos distintos de sua vida. As duas primeiras, foram vivenciadas involuntariamente, independentemente de sua escolha ou desejo. As circunstâncias e algumas das situações que lhe foram impostas, foram sumariadas neste espaço, mediante algumas reflexões em forma de crônicas, que os leitores desta série já  puderam imaginar, para além daquilo que foi possível fazer emergir da memória, através das letras aqui dispostas.

Assim é que, voltando ao terceiro período que este escrevente residiu  em Salvador, se procurará retomar o fio da narrativa, iniciada com rememorares relacionados ao período que se inicia em um sábado, 04 de julho de 1998 e, se conclui em um domingo, 04 de junho de 2000. Nele, este escrevedor acabou se deparando com a premência de fixar residência em salvador, o que se deu em um conjunto de prédios situado em uma transversal da avenida Paralela, conforme já fora dito no primeiro texto desta série. Tendo iniciado a ocupação do apartamento  no fim daquela tarde de sábado, a noite acabou não sendo dormida. Entre a arrumação das coisas, a passagem no supermercado para ter alguma coisa para comer no domingo e as conversas e risadas entre os consortes, a manhã seguinte os surpreendeu com algum chilrear de pássaros, o que chamou a atenção dele, visto não acreditar que aquela cidade ainda abrigasse algum tipo de pássaro, mesmo que uns poucos.

 Dito isto, pretende-se concluir estas crônicas sobre uns tempos que foram vividos em Salvador, com duas passagens, dentre as várias vividas naqueles quase dois anos de permanência naquela gaiola de concreto.

Havia entre os cegos, sobretudo, aqueles egressos do seu Instituto, o nefasto hábito de chegar de surpresa na casa de algum conhecido, colega ou parente, em horas quase sempre inoportunas e/ou inconvenientes – pouco depois do almoço, ou mesmo um pouco antes; depois de todos os da casa já terem jantado -, não raro levando alguém consigo. Isto, como não poderia deixar de ser, provocava constrangimentos e punha os “visitados” em sérios apuros, visto que os visitantes ali chegados, invariavelmente, estavam com fome – algumas vezes, chegavam de alguma viagem. Não foram poucas as vezes que este que vos escreve recebeu tais visitas, inesperadamente, nos horários acima apontados. Dona Manda ficava indignada, pois, muitas vezes, o que fora colocado para o almoço, fora a conta daqueles que se sabia que almoçaria.

Era final de janeiro de 1999, com geladeira e armários esperando reabastecimento, que, no final da tarde, ao acordar de sua costumeira soneca, este narrador ouviu voz masculina, conversando com a sua consorte, que acabara de chegar da Associação. Ela vai até o quarto e anuncia:

- Cardeal está aí.

Lembrando imediatamente de quem se tratava – ele era ainda criança quando este cronista fora interno entre 1975 e 1976 -, saiu-lhe ao encontro e, após umas boas conversas  regadas a farofa e café, ele fora acompanhado pelos anfitriões até o ponto de ônibus.

Ao retornar para o apartamento, notou-se que o visitante teria esquecido uma pasta, que logo foi guardada, na expectativa que lhe fosse entregue, assim que ela voltasse à Associação.

No dia seguinte, se fez uma última varredura na geladeira e, com o resultado, foi feita a refeição da única criatura que almoçaria naquela casa, naquele dia. Acabado o repasto, o apartamento ainda cheirando a fritura, eis que alguém toca a campainha. Ao atender, este garatujador se depara com Cardeal, mulher e filha, que ainda era criança.

E o constrangimento?

- Eu esqueci minha pasta aqui e, nela estão as contas para pagar.

Tendo lhe sido entregue a pasta, cardeal pediu água e, também as duas foram servidas com aquele líquido, que, talvez, lhes tenha sido alimento ao menos, naquela hora.

Comentando o fato com a consorte e a diarista, esta última contou a maior de todas.

Já se disse que aquela senhora prestava serviço tanto ao casal do Flamboyant, quanto ao casal do trobogy. Disse ela que:

- Ah, ainda bem que não foi seu Edimar.

Depois de larguíssimas gargalhadas, se perguntou a razão daquela observação.

- Eu num sei como dona Nair aguenta. Só ela trabalha e paga tudo em casa.

Sim, disto a gente sabe. Ponderou-se.

- Não, dona Dri. Né isso não. Seu edimar come dez pão e dez ovos!

Novo rebentar de gargalhadas.... Como é?

- É! Ele toma café com dez pão e dez ovos! Todo dia!

Para não dizer que não se falou de música, o período que se passou morando naquele apartamento também teve músicas. Uma delas era Palpite, com Vanessa Rangel, que aos sábados, a gente ouvia uma mulher, bastante alta pelo álcool, alterar substantivamente a letra da canção. Ela, invariavelmente substituía “Palpite” por “palmito”, o que fazia os consortes explodirem na gargalhada, como se também estivessem embriagados pela embriaguez da intérprete sui gêneris.

 

https://youtu.be/-J0CMgqu_5o

 

Uma segunda música que aqui poderia ser evocada como tendo marcado o período ali vivido, seria uma das tantas interpretações de cantores italianos que fazia grande sucesso à época. Uma dentre elas, era Laura Pausini, que era utilizada pelos que gostam de conquistar seus amores por meio de ofertas de músicas pelo rádio; ou pelo presentear com discos.

Mas, a que se quer trazer aqui é a belíssima interpretação de Andréa bocelli, “Com te Partiró”  , que conheceu inúmeros oferecimentos nos programas românticos de então, como por exemplo, o “Toque de amor”, apresentado por Cezar Versiani, ou o “Relax”, apresentado pelo excelente locutor Oton Carlos (1958-2020).

 

https://youtu.be/-_B4A2yym8k

 

José Jorge Andrade Damasceno – 25 de Agosto de 2021.

 

Ano LX da renúncia de Jânio da Silva Quadros – O Brevíssimo: “Fi-lo, porque qui-lo”! 

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