TODOS OS PECADOS DO
MUNDO
Expresso: - Achei este livro difícil. E muito duro. Trata-se
de uma alegoria. Toda esta gente cega representa a humanidade? Que projecto é o
do livro?
José Saramago: - Espero que o leitor sofra tanto como eu
sofri. Bom, quero dizer, este livro fez-me sofrer muito, não pelas dificuldades
da narrativa, que as teve, mas pelo tema. De todos os outros livros que escrevi
só um me produziu um mal-estar físico assim, mas numa única passagem. Foi o
_Levante do Chão_, na parte que descrevi a tortura e a morte do Fernando
Vidigal. Este livro nasceu como os outros, e parece que já não tenho outra
maneira de os escrever de forma inesperada. Foi em setembro de 1991, no meio
tempo entre o acabar-se e o publicar-se o Evangelho segundo Jesus Cristo,
quando me apeteceu a ideia, estava eu no restaurante, na Varina da Madragoa,
pensando em coisas vagas. Apresentasse-me o título “Ensaio sobre a cegueira”,
com o embrião do que podia ser: toda a gente cega.
Exp. - Não há uma relação entre o título do livro e o teu
episódio de desprendimento de retina, em Roma, o medo súbito da cegueira?
J. S.: - É impossível dizer que não tem nada que ver, mas
não vem daí.
Exp. - Pensei mesmo que o mar de leite de que falas no livro
reflectisse a tua experiência de cegueira momentânea.
J.S.: - Não, não! Essa ideia aparece em quem tem
conhecimento desse episódio do desprendimento da retina e da operação que se
seguiu, mais nada. Não tem que ver.
Exp. - A minúcia com que descreves certas maleitas da especialidade
da oftalmologia, no livro, pensei que também vinha daí, a amaurosem, e por aí a
fora.
J.S.: - Fui às enciclopédias, está tudo nas enciclopédias.
Exp.: - Imaginei-te a arguir como um hipocondríaco, como o
teu médico. Eu nunca tinha ouvido falar na “amaurose”. Como é que partiste do título
para o resto do livro?
J.S.: - Não cheguei a tento. E nem eu tinha ouvido falar de amaurose.
Quando o título me veio, ele já contemplava a situação em que todas as pessoas
seriam cegas. Quando se passa ao concreto, começam as dificuldades. A minha foi
- e fez-me parar e destruir folhas, que reutilizei noutro contexto - sustentar
o tema. Desenvolver uma espécie de processo acumulativo de consequências até
chegar às consequências finais. Mas isso não chegava, e tive de parar, parar
num estado de perplexidade. Saí disso quando compreendi que tinha que
transformar esse macrocosmo num microcosmo, onde seria mais fácil analisar as transformações
decorrentes da cegueira geral. Esse lugar é o manicómio onde toda a gente cega
- na primeira fase da epidemia, chamemos assim, - é encerrada, para ver se é
possível controlar o mal. Quando os que estão dentro passam para fora,
encontram um mundo onde todo o mesmo processo se desenvolveu, mas sem
encerramento.
Exp.: - Anda por aí “A Peste”, de Camus?
J.S.: - Não, não existe paralelo. Situações destas de
"HUIS-clos", aparecem na literatura. Trata-se de uma alegoria,
transparente, e trata-se da humanidade. Se me falares em ética, digo-te que é
um livro frontalmente ético. Sendo nós uns animais racionais
,
é duvidoso se estamos a usar, desde sempre, a razão que nos é dada.
Exp. - Que nos é dada? Por Deus?
J.S. - Não, a expressão não tem sentido, a razão que se
construiu ao longo de uma evolução biológica e cultural. Não temos um comportamento
racional, e isto vem na continuação de um livro que é praticamente
contemporâneo de todas estas preocupações: “In Nomine Dei”. Não me parece que o
modo como tudo isto funciona seja conduzido pela razão. E o modo que encontrei
de tornar isto visível foi o declarar que somos cegos
e encontrar uma situação em que é inevitável que a razão deixe de funcionar e
todos os instintos, a começar pelo de sobrevivência, despertam. Por que que a
cegueira é branca? Talvez para dizer que aquela cegueira não é cegueira.
Exp. - Pretendes dizer que basta uma ruptura, uma coisa
muito simples, como o medo, para o animal tomar conta do homem?
J.S.- Onde vamos
parar? Em que direcção vamos? Este livro não deterá a humanidade ou as pessoas
da minha rua numa direcção supostamente errada, mas a coisa apresentou-se-me
porque andava a preocupar-me.
Exp. - A barbárie?
J.S. - A barbárie. Como, ao fim de séculos de civilizações, estamos
perto da barbárie. Apesar da beleza e do pensamento, a tentação da barbárie.
Não é preciso ir aos campos nazis ou ao "gulag", a barbárie está aí,
no Ruanda, na ex-Jugoslávia... E são apenas does exemplos que ocupam mais
espaço nos telejornais. Todos os horrores que descrevo e que deixarão o leitor
desconcertado - dirá: "este não parece ser o autor que eu conhecia" -
estão neste momento a acontecer: no prédio ao lado, na rua ao lado, em qualquer
lugar. Roubos, violações, mortes, são o pão nosso de cada dia.
Exp.- A violência sempre existiu. Por que que te apeteceu
escrever um livro violento sobre a violência? Por que é que te apeteceu meter
nas palavras esta violência concentrada? Perdeste por completo uma confiança na
natureza humana que tinhas nos teus princípios como escritor? Deixaste de vera
poesia na natureza humana? Que descrença é esta?
J.S.- Não creio que se possa dizer que há nos meus livros anteriores
esta confiança na natureza humana. Há um certo cepticismo irónico misturado com
uma atitude de paixão; tudo isto envolvido numa certa poesia.
Exp.- Não digo que há muita confiança; há, pelos menos,
alguma. Substituída pelo pessimismo puro?
J.S.- Talvez eu tenha achado que a ironia não chega, só roça
a superfície das coisas. Era necessário ir mais longe, não porque eu tivesse decidido
depois de ter escolhido o tema, mas porque o tema impunha. Este livro foi escrito
com um rigor, uma lógica inatacável. Considera muitas das consequências que resultaria
se a humanidade cegasse. É um livro onde não há imaginação. Só análise fria
.
Exp.- É um livro muito gráfico. E que não solta o leitor,
sem pausas, num crescendo.
J.S.- Não quis soltar, não há tempos mortos, há um crescendo
até ao momento em que saem, quando a tensão se torna mais ampla, menos concentrada.
Quando eles saem do manicômio, o livro caminha para o seu fim.
Exp.- Eles recuperam a vista. Como autor, por que é que escolheste
este caminho? Uma lágrima de optimismo? É possível recuperar a visão?
J.S.- Quis que eles
saíssem daquilo como quem sai de uma experiência. Eu acho que sim, que é
possível recuperar a visão. E o fim do livro aponta para aí.
Exp.- A mulher do médico, uma personagem que conduz o livro,
vai cegar, ou melhor, pensa que vai cegar quando todos veem. Quem é esta personagem,
qual o seu papel?
J.S.- Ela é irmã gémea da Blimunda. A outra vê o que não se
vê, vê através da pele, e esta vê o mundo que os outros não veriam se não fossem
cegos
.
E é uma mulher dotada de uma certa sabedoria, não tão misteriosa como a
Blimunda, mas é a sabedoria da mulher madura que é a única que vê e que sabe
que a todo momento pode também cegar. E pode desejar cegar, por não aguentar os
horrores que tem de ver. A mulher, que não foi tão premeditada assim, aparece
quando eu tenho necessidade de uma personagem que conserve a visão. Preciso,
como estímulo gramático, que a mulher vá dizer que também cegou para poder
acompanhar o marido, o médico. A mulher não estava na minha cabeça no princípio
do libro, e só a fui buscar quando precisei dela.
Exp.- Quando ela aparece, não me pareceu que se tornasse uma
personagem fundamental e que fechasses o livro com ela. Pensava que fecharias o
ciclo como homem do princípio do livro, o que cega no semáforo.
J.S.- O livro passou por duas hipóteses de remate, e esta
era uma delas. Pu-la de parte quando a figura feminina já tinha uma função,
para mim era claro que ela cegaria quando todos recuperassem a vista. Mas era um remate muito pessimista.
Exp.- A solução foi a ambiguidade?
J.S.- Perguntei: por que é que ela haveria de cegar quando
toda a gente recuperasse a vista? Ela olha o céu e vê-o todo branco, mas baixa
os olhos e verifica que a cidade ainda lá está. É esta a frincha de esperança
que eu abro.
Exp.- A tal lágrima de optimismo? Como leitora, achei que a cidade
estava, mas podia desaparecer; estava ali, mas pela última vez. Achei que ela ainda
podia cegar.
J.S.- Não lhe chamaria optimismo, simples esperança. A tua leitura
é uma leitura, mas eu acho que não, que a cidade não desaparece. E que o mundo
vai mudar. O que o autor quereria é que o mundo fosse mudado. Se este livro
aparece nesta altura da minha vida, que é de idade avançada...
Exp.- Mas que é uma altura de felicidade e de plenitude.
J.S.- É, de facto,
de plenitude pessoal e profissional, de felicidade familiar e afectiva, a saúde
não posso desejar melhor... Estou em paz, mas se me perguntarem, de uma forma
directa, você que é feliz como é que vem escrever um livro destes? A minha
resposta é simples: eu sou feliz, mas o mundo não é. Senti que este livro tinha
de ser escrito. Nunca nenhum livro se me apresentou tão imperiosamente como este
e me fez sofrer como este.
Exp.- A violência
verbal do livro, que é controlada pela mestria narrativa, encerra uma revolta,
uma rebelião total. Como é que encaras, já que falas em idade avançada, a tua
morte? Sabendo que alguma imortalidade está assegurada pelos livros? O homem
está pacificado, mas o escritor não está, ou é o contrário? Quem fala aqui com
esta violência?
J.S.- Quem fala com essa violência sou eu, a pessoa que eu sou.
O José Saramago sentiu a necessidade de dizer estas coisas. A morte é uma
injustiça. A morte vem sempre cedo demais. Mas quando olho para as idades
anteriores e vejo com que facilidade se morre e com que variedade de causas,
verifico como é fácil morrer. Há um morrer de cegueira
,
que é um morrer de quem não usa a razão* para viver. Usamos a razão para
destruir, matar, diminuir a nossa franja de vida. E é essa espécie de
indecência do comportamento humano, orientada pela exploração do outro, da sede
do lucro, da ambição do poder, que conduz à indiferença e ao alheamento
.
Ao desprezo do outro. Se a ética não governa a razão, a razão está-se nas tintas.
Exp.- Nos domínios
da abjecção causada pela pobreza, a ignorância, a violência física, é possível
falar de ética? Como aceder a um comportamento ético quando se vive no bairro
da lata, na miséria? A ética está vedada aos desmunidos, ou representa para
eles um esforço maior. E a vida fica muito semelhante ao teu manicómio de
cegos.
J.S.- Pois está. Eu não vou ao bairro da lata pedir que se comportem
eticamente.
Exp.- Essa é a injustiça do mundo? Ou é a dos que podendo
ver, resolvem ficar cegos
?
A dos ricos e poderosos?
J.S.- A injustiça do mundo é a dos que, podendo ver, cegam
os outros
,
retirando ao ser humano a possibilidade de se desenvolver
.
Não compreendo que uma sociedade que dispõe de meios científicos e tecnológicos
de toda a ordem, não resolva certos problemas. A minha forma de me insurgir é
este livro, e eu não seria capaz de o fazer de uma forma directa, porque a isso
assisto todos os dias na televisão, isso posso ler nos jornais e revistas. Há
no livro uma passagem no livro em que, falando de qualquer coisa que é horrível,
digo isto: - “porquê a palavra [horrível]?” Não deveríamos precisar do
adjectivo. Bastaria enunciar o horror, e a sua percepção seria total. Às vezes,
as palavras que usamos para compreender certas coisas acabam por ocultar essas coisas.
Talvez por isso eu tenha recorrido à alegoria: o leitor sentirá mais a situação
desta forma transposta. Este livro é um livro indignado.
Exp.- A escrita
deste livro é extrema. Como é que se escreve um pesadelo? Disciplinado como és,
saías de escrever este livro e ias jantar, passear ou ouvir música? O que escrevias
não ia ficando dentro da cabeça, sem conseguir sair de lá?
J.S.- O tempo da escrita, sobretudo nos últimos tempos, foi
de sofrimento, de momentos em que me sentia incapaz de aguentar aquilo que estava
a escrever. Metade do livro foi escrito entre junho e agosto, embora o livro
tenha sido de gestação lenta. E foi um livro que sofreu as vicissitudes da
minha vida nos últimos anos, a segunda operação ao olho esquerdo e a mudança
para Lanzarote. Quando fui para Lanzarote, levava comigo quinze páginas. Estou
lá desde fevereiro de 93, e o livro foi-se acumulando lentamente, com viagens e
interrupções. E foi terminado em estado de convulsão. É um livro que eu vivi. Habitualmente,
eu trabalhava da parte da tarde, mas compreendi que não podia trabalhar até às
oito ou nove da noite. ficava exausto e sem dormir. E passei a trabalhar de
manhã. Sentava-me à mesa do almoço num estado miserável, tendo que lutar para
comer. A certa altura, cheguei a dizer: não sei se consigo sobreviver a este
livro. Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse
que sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim.
Exp.- Que nome darias a esta coisa feia? Desespero?
J.S.- Gostaria de dizer, mas uma só palavra não dá. Não sei.
Não compreendo mundo. Descobri que existe a palavra moral, que existe a palavra
imoral e a palavra amoral. Existe a palavra racional, irracional, mas parece
que não existe a palavra a-racional. Nós somos seres a-racionais.
Exp.- Sem hipótese de redenção?
J.S.- Esta palavra está tão carregada.
Exp.- De significado religioso. Já que falamos de Deus, o
livro convoca-o muitas vezes, nomeia-o, e paira sobre o romance a sombra de Deus.
Uma sombra conhecida.
J.S.- Levamos vida rodeados da palavra Deus.
Exp.- Não existe no ser racional e não crente uma nostalgia
de Deus?
J.S.- Este ser que é racional e não crente, eu, nunca teve qualquer
nostalgia de um Deus que nunca teve e nunca foi seu. Mas tenho a consciência da
negatividade do conceito de Deus na relação entre os seres humanos. Ele é um empecilho.
Ainda agora fomos ao Zambujal, e a Pilar quis passar por Fátima, onde não ia há
muitos anos. E lá estavam as mesmas pessoas de joelhos, pagando alguma promessa.
É completamente absurdo que uma Igreja - Cónegos, Bispos, Cardeais, papa -
permita que alguém se arraste de joelhos para pagar uma promessa. A primeira
coisa que Cristo faria, com certeza, seria levantar aquelas pessoas do chão.
Exp.- Se a religião rouba a dignidade à pessoa humana, o que
é que lhe pode restituir dignidade? O comunismo é uma forma de restituição da
dignidade à pessoa humana?
J.S.- Podia ser.
Exp.- Ou podia ter sido?
J.S.- Podia ter sido, não foi. E a prova é que o homem novo
que nos foi anunciado não se encontrou facilmente. Esse homem novo não nasceu e
provavelmente não nasceria. Não é possível transformar o ser humano.
Exp.- Para ti foi uma desilusão?
J.S.- Posso chamar-lhe uma desilusão, que mostra até que
ponto a minha _e a de muita gente_ ingenuidade.
O homem não pode viver fora de uma sociedade, e, contudo, tudo o que
fazemos tende a destruir a relação interna da sociedade. Queremos a sociedade
como uma abstracção que funcione e que facilite a nossa vida, considerando
todos os outros como adversários, inimigos ou competidores.
Exp.- Essa visão não é demasiado estreita?
J.S.- O mundo está
aí diante dos olhos.
Exp.- Mas não existe uma tensão entre a bondade intrínseca
do ser humano e a sua maldade, uma tensão que equilibra as coisas? Não há, no
mar encapelado do mundo, ilhas de serenidade, lugares de esperança?
J. S.- O ser humano não é intrinsecamente bom nem mau. O que verifico é que a bondade é mais difícil
de alcançar e de exercer. E bem e mal são conceitos demasiado amplos. É mais fácil
ser mau, mau nas suas formas menores, mau em tudo aquilo que nos afasta do outro,
do que ser bom. A sabedoria popular, que cito muitas vezes, inventou essa frase
egoísta: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Toda a ética
está contida nesta frase; ela é uma regra de conduta suficiente. Claro que tudo
isto é uma utopia e o autor é um tonto.
Exp.- O livro seria o contrário de uma utopia. O que temos
nele é uma distopia.
J.S.- Cansei-me de
entregar a resolução dos problemas da humanidade a um futuro qualquer, a uma
utopia. A um futuro ao qual não chegarei. Um dia o homem será irmão do homem,
um dia, um dia... Não! Eu creio que temos de começar a pôr a questão ao
contrário.
Exp.- O facto de não
acreditares num futuro ou na esperança que ele obtenha pelo facto de a ele não
chegares também é um propósito egoísta.
J.S.- Seria bom que fosse possível, mas não acredito. Por
causa do estado actual do mundo. No fim do século XX, é obsceno que se possa morrer
de fome.
Exp.- Antes desta entrevista contaste-me que viste perto do Zambujal
pegadas de dinossauro.
J.S.- Com 175 milhões de anos.
Exp.- ora bem, a passagem do homem sobre a terra _e vamos falar
darwianamente e não religiosamente_ corresponde em tempo, ao piscar de olhos de
um dinossauro. Ela é menos que precária. E quando destruirmos tudo,
provavelmente nem a pegada deixaremos atrás, para o que vier depois, se vier.
Já observaste a tua indignação a uma luz um pouco mais, digamos assim, cómica?
J.S.- Não sei até quando duraremos, mas, então, o que dá vontade
de dizer é que nada valeu a pena.
Exp.- Mas isso equivale a pôr nos braços do homem toda a
esperança do mundo, uma esperança impossível. Ele tem de saber, ao contrário
das outras espécies que dominaram a Terra, que não pode desaparecer, o que é
irrelevante para a evolução biológica e relevante para a religião. Esse ponto
de vista ainda é religioso.
J.S.- Eu gostaria que o homem conhecesse um estado de
felicidade, mas não consigo imaginá-la no plano colectivo.
Exp.- A felicidade não é um dado biológico.
J.S.- Gostaria de acreditar que à humanidade se ofereceram,
ao longo da sua história, diversos caminhos. E que, se em lugar de termos tomado
um, tivéssemos tomado o outro, quem sabe se não viveríamos melhor? Melhor uns com
os outros. Criámos relações determinadas pelo poder. E pelo dinheiro.
Exp.- Que mundo é este, o do fim do milénio?
J.S.- Um mundo com duas tendências contraditórias: a globalização e a fragmentação. Um homem
está em sua casa, afastado de todo o contacto humano, podendo chegar com o
computador, o modem, o fax, a todos os lugares. Cada vez mais perto de tudo e
mais longe de tudo. A tecnologia permite-nos ter tudo em casa sem sair dela. E
se eu não estiver satisfeito com a realidade, posso viver noutra realidade, a virtual.
Exp.- Mas enquanto uma parte da humanidade avança
triunfalmente para o novo milénio, outra parte da humanidade, maior, é excluída
para sempre do novo conhecimento. A distinção do futuro não será entre os que têm
o conhecimento e os que não têm? As novas hordas de ignorantes estão a ser
criadas.
J.S. - Nunca o fosso entre os ricos e os pobres, e entre o saber
e o não saber foi tão grande. Isto é assustador. Há poucos dias tivemos a
revelação da nossa ignorância com o relatório sobre a literacia.
Exp.- Surpreendeu-te, a ti, que cresceste no país de
Salazar?
J.S.-
Surpreenderam-me os números. E que vinte anos depois isto esteja na
mesma. Cinco milhões e setecentos mil analfabetos funcionais, mais de metade da
população.
Exp.- E o facto de muitas pessoas não poderem estudar por
não terem dinheiro?
J.S.- A minha vida não é para aqui chamada, mas eu sou um
desses casos. Tive de sair do liceu Gil Vicente, porque não havia dinheiro, e ir
para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde só se pagava cinquenta escudos
por ano. E quando chegou ao fim do curso, acabou-se. Não se continuou. Em vinte
anos de democracia, o que é que mudou? E o inquérito pára nos vinte e quatro
anos, abrindo perspectivas aterradoras para o que vem depois. Eu pergunto: como
é que estão os instrumentos de comunicação entre esta sociedade? Como é que os
cidadãos comunicam uns com os outros, quando mais de metade da população é
assim? O que é que os informa?
Exp.- O grande meio de comunicação é a televisão. Tens visto
televisão portuguesa?
J.S.-É qualquer coisa de definitivamente repugnante. Talvez
seja necessário dizer em voz muito alta que a televisão não e, nem pode ser, a
reger-se pelo lucro e as audiências, aquilo que dela se esperava. E lá fora já
o tínhamos visto.
Exp.- Somos o país europeu que menos gasta com a cultura e o
lazer, e um dos que mais veem mais horas de televisão.
J.S.- Se a televisão é a janela para o mundo, e se a janela
é como é, as conseqüências estão tiradas. Como é que este povo de analfabetos
vai viver sem se tornar, em relação à Europa, um país de dependentes? Toda esta
glória pseudodesenvolvimentista com que se adornou o cavaquismo, com a
cumplicidade da maior parte das restantes forças políticas... Eu quero ver
agora para além das diferenças estéticas entre o modo de governar P.S. e o modo
de P.S.D, que outras haverá. Se as houver.
Exp.- Há indignação em Portugal? Ou conformismo?
J.S.- Perdemos a capacidade de nos indignar. Este é um livro
indignado.
Exp.- Mas há quem se indigne com tua indignação,
considerando-a deslocada.
J.S.- Aos meus inimigos eu diria que há muitos mais motivos
de indignação para que eles se entretenham a indignar-se sem ter de indignar-se
comigo. Li há bem pouco tempo {O Conde d'Abrunhos} e disse para mim mesmo: é o
meu país em 1995. Os escritores não podem salvar a pátria, pobres de nós, mas
como portugueses não podemos estar calados. Julgámos que a democracia resolvia
tudo. Um deserto onde clama uma voz já não é um deserto. Nunca atingimos, mesmo
nos tempos negros
,
um grau de conformismo como aqueles em que estamos hoje. Deixou de haver inquietação
e, pior, contestação. Só há contestação parcial: os estudantes contra as
propinas, os ambientalistas contra não sei quê...
Exp.- O teu "exílio" em Lanzarote não te fez
perder a benevolência para com o país? Um certo azedume...
J.S- Não há azedume nem ressentimento. E não tenho que ter benevolência
para como país que é o meu.
Exp.- Que país vês da tua ilha?
J.S.- Eu poderia voltar a este país, e poderia nele viver e escrever,
mas não tenho motivo para regressar. Estou bem onde moro. Se há ressentimento e
azedume, tenho projectos claros e definidos. Como o que me levou a dizer há
dias que, se o Sr. Cavaco e Silva fosse eleito Presidente da República, a primeira
coisa que eu faria seria escrever para os serviços da Presidência para fazerem
o favor de retirar o meu nome dos ficheiros. Porque ele foi primeiro ministro
de um Governo que censurou um libro. Mas não será presidente, não será.
Exp. Onde é que está, para ti, a esquerda em Portugal?
J.S.- Está onde está o Partido Comunista. E alguns
grupúsculos, como o “PSR”. O resto, se quiserem chamar-lhe centro, chamem-lhe
centro.
Exp.- O que quer dizer que as pessoas votam no centro.
J.S. - Exacto. E que a travessia da esquerda continua, e se calhar
continuará, e continuará.
Exp.- Falando dos {Cadernos de Lanzarote}, o segundo volume
teve uma recepção crítica negativa. Eu mesma, por causa do que escrevi sobre o
primeiro volume, sou referida com acidez. És acusado de não ver o mundo que te
rodeia, de seres cego
para ele, e só te veres a te mesmo como centro do mundo. No entanto, o {ENSAIO
SOBRE A CEGUEIRA} reporta-se ao estado do mundo, e tu mesmo só falas do mundo.
J.S.- Se este livro não estivesse na cabeça há quatro anos,
talvez dissessem agora que eu corri a escrevê-lo para não dizerem que não
reparo no mundo. Mas é-me completamente indiferente que o vejam e que o reconheçam.
É fácil dizer que os {Cadernos de Lanzarote} são inferiores aos meus livros.
Exp.- É uma evidência...
J.S.- É uma evidência. Mas é muito mais fácil; isolar o que
é mundano e social numa escrita daquelas do que escrever o que escrevo. O volume
três há de sair, e está prometido que será inferior ao {Ensaio sobre a
Cegueira}.
Exp.- A tua escrita nos {Cadernos} é seca, porque tu és seco
e avesso a efeitos dramáticos. Mas este livro tem uma enorme carga dramática,
deliberada.
J.S.- Exacto, ele é o reflexo do dramático estado do mundo
.
Eu sei que há auroras resplandecentes e passarinhos que cantam, mas este é o
estado do mundo. Ele é assim.
Fim da
entrevista.
Toda a gente cega. Eis a proposição do romance de José
Saramago. A cegueira traz consigo a desordem social, como se pela porta aberta pelo
medo, entrassem os animais soltos que vivem em nós acorrentados pela razão
.
“Ensaio sobre a Cegueira” é um livro duro, de uma violência verbal
que vai desorganizando o mundo até o reduzir a um lugar de escuridão
,
onde entra com timidez, aqui e além, um raiozinho de sol
.
É como se o autor não ousasse escrever a felicidade ou a sua hipótese
.
Por que um livro assim? José Saramago escolta o livro numa indignação
e num projecto ético
.
A necessidade de transcendência, que se inscreve numa linha de coerência
anterior e pessoalíssima _ lutas que ele vai entretendo com o Homem e a sua
ideia de Deus,
ou com Deus
na sua ausência de Deus, que faz cair nos
magros ombros do Homem a responsabilidade final pelo seu destino _ leva-o agora
à negação do humano depois de ter negado o divino. Não é uma ideia nova, mas é
uma ideia concretizada com um desespero desconhecido.
Trata-se do juízo final da razão
,
que deixa de governar racionalmente _ e sustenta-se o paradoxo _ para
desgovernar com os instintos da besta
.
Neste sentido, o livro é um livro negro
,
uma travessia do pesadelo que leva o leitor pela mão, sem desfalecimento ou
pausa, até o lançar no último círculo do inferno. José Saramago, como Virgílio
guiando Dante, leva-nos pela mão através dos caminhos da humana comédia, que a
"epidemia" de cegueira transforma em tragédia
.
A alegoria é eficaz, sem se confundir com
fantasia ou excesso metafórico. A narração, apertada nas malhas de uma técnica
que não se autoriza uma desatenção ou um erro, avança em crescendo, até o
desenlace que começa onde termina a concentração dos primeiros cegos no
manicómio.
O horror da vida em clausura é um horror que os escritores apreciam
e do qual sabem extrair efeitos dramáticos, sobretudo os escritores do século
XX. Camus e a sua {Peste}, em forma colectiva, Kafka e o seu {Processo}, em
forma singular. O que estes livros nos dizem é que o homem é o animal do homem,
coisa que suspeitávamos antes e depois de Auschwitz.
Pergunta-se:
donde vem, no escritor José Saramago em fase de plenitude, tanta inquietação? "Eu
sou feliz, mas o mundo não o é", responde.
Depois de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” - o romance que prefiro
- José Saramago tem caminhado sobre as rosas do sucesso e evitado o tapete dos infortúnios.
E queira-se ou não, um escritor precisa para escrever de alguma infelicidade e
sofrimento. Nem toda a mestria técnica salva a falta de visão
.
A visão quando aparece vem carregada de nuvens.
Vezes me interroguei sobre a
possibilidade de escrever sendo feliz, completamente feliz. Nunca acreditei
nela, na militância que põe palavras no papel como outros põem dinheiro a
render. O que é que sobra ao fim de tantos caracteres por dia, cama, mesa e
roupa lavada? Livros inúteis de que está o mundo cheio. Deem-me um grande escritor,
ou pelo menos um sério escritor, que seja feliz o tempo todo.
Um só. O Bach da literatura. Na esquina do
caminho aparece, na vida do autor _ que nunca se escusa enquanto tal _ este
{Ensaio} sobre os pecados do mundo sem o cordeiro de Deus que tem piedade de
nós.
É tentador associar a esta teoria uma outra, a da derrocada
do comunismo como momento de desilusão para um comunista de convicção. Ou a do
avanço da morte sobre uma existência mais cheia do que nunca, uma morte que
fazendo sentido _ ele mesmo o diz _ não deixa de ser {sempre} prematura e
injusta. Mas, não reconheço nestas duas preocupações do egocentrismo a matriz
de “Ensaio sobre a Cegueira”. No romance
vejo a génese de uma indignação que muitos acharão desnecessária e absurda, e
que se entende à luz do evangelho segundo José Saramago. Dir-se-á que o livro é
denso, que é difícil, ou que é mais ou menos legível. A legibilidade não é uma
categoria literária, no sentido em que não condiciona as empatias do leitor.
Quem gosta de José nuca o achará ilegível. {Ensaio sobre a Cegueira} é denso, e
a sua dificuldade é uma dificuldade de acompanhamento do ritmo e de mimetismo. Quem
não gosta do estilo e da voz de José Saramago, e abomina as constantes
interjeições da voz narrativa, não é por este livro que vai começar a
gostar.
Um romance não é um entretenimento, é uma prova da língua
portuguesa. Ao contrário de tanto que se publica para aí, adjectivo e rasteiro
e a que se dá o nome de romance, o {Ensaio} oferece substância. Uma língua
cheia de ressonâncias e imagens, uma língua que já não se fala e pouco se
escreve.
No estado em que anda a língua portuguesa
_ não sejamos cegos
_ é bom saber que ele, como a cidade do romance,
ainda ali está.
CLARA
FERREIRA ALVES
Artigo transcrito da revista “Poliedro”, n.o412, novembro de 1995, Pp. 31/62,
edição em braile. O texto original em tinta da entrevista de José Saramago,
concedida a Clara Ferreira Alves, foi publicado na revista EXPRESSO de Lisboa,
Portugal, em
, 28 de outubro de 1995.
é
preciso ter atenção para o que o autor enfatiza, o fato de serem os homens
"animais
racionais". Isto é,
aqueles que devem ver, que veem, mas sobretudo,que pensam...
"[...] vê através da pele o que os
outros veriam se não fossem cegos “. José Saramago começa a mostrar sua teoria
de cegueira como sendo sinônimo de “irracionalidade” e como sendo a falta de
percepção do que está ao seu redor, diante do seu nariz, o que, convenhamos, é
uma posição equivocada e estereotipada.
Aqui ele deixa cada vez mais claro seu conceito de cegueira, relacionando-a com
a falta da raz
ão". "Morrer de
cegueira" seria uma forma de dizer que por ser "cego “o homem se
digladia consigo mesmo e com aqueles que lhe rodeiam. Na verdade, não é por ser
"cego" que o homem se destrói a si e aos outros, mas sim, por ser
egoísta. Será que José Saramago também considera a cegueira como sinônimo de
egoísmo? Aí o equívoco torna-se maior.
Ele continua na mesma linha de raciocínio, ligando desta vez a cegueira à falta
de ética, agora mais explicitamente ao egocentrismo da pessoa humana. Qual
seria a razão cultural que teria levado José Saramago a escolher esta palavra
para ilustrar tanta coisa diferente? Qual seria o seu real conceito de
cegueira???
Cego aqui tem o sentido de indiferente, insensível. Desde quando o ser cego,
significa ser indiferente, insensível? Qual a razão desta ideia? Como todo o
ser humano, obviamente, existem indivíduos cegos que são indiferentes,
apáticos, insensíveis..., mas e aqueles que vêm que possuem uma ou mais destas
características, como rotulá-los?
Sendo indiferentes e insensíveis, tornam os outros indiferentes e insensíveis.
Portanto, persiste a mesma ideia.
Obscuros, fechados, difíceis. Se se pode encontrar tantas palavras para
expressar esta situação, porque então usar-se "negro" para
retratá-la???
O
sentido aí é de percepção, usado pela jornalista, como sendo a forma como os
críticos analisam Saramago.
“O "estado do mundo“ é o estado de "cegueira", compreendida em
todos os sentidos utilizados por José Saramago: a-racional, a moral, egoísta,
insensível, indiferente.
Agora é a jornalista quem fala. Mantém o mesmo modo de compreender a cegueira.
"ver para querer" remete ao jargão popular que diz "o que os
olhos não veem, o coração não sente", para alguns e "[...], o coração
não deseja", para outros. Assim se fala, se pensa e se age, como se o
sentir ou o querer, dependesse única e exclusivamente do ver. É como se toda a
percepção humana fosse possível e factível apenas a partir da visão, ou se
restringisse a este único sentido. Note-se que esta não é uma forma particular,
individual de pensar; trata-se de uma forma socialmente construída, fortemente
arraigada e vigorosamente implantada na sociedade, sobretudo, na cultura
ocidental. Esta visão de mundo, esta construção “milenar”, não tem fronteiras,
sejam elas geográficas, culturais, econômicas, sociais, ou geracionais.
Atrever-se-ia a chamá-la de "estrutura de longuíssima duração",
conforme postulou Fernand Braudel (1902-1985).
Aparece mais uma vez a oposição entre a "cegueira como sendo a
"desordem social “e a razão, como aquela que dá o equilíbrio, como quem
regula a sociedade, ou seja, como sendo a maior das virtudes, dos que não são
"cegos".
Sinônimo de cegueira. Por quê?
Sinônimo de cegueira. Por quê?
Sinônimo de visão. Por quê???
Uma nova e mais contundente acepção para "cegueira": infelicidade.
Este é um conceito muito arraigado nos meios populares. Quantas vezes já não se
ouviu falar que "a pior coisa do mundo é ser cego”? Ou então: “É melhor
ser aleijado, pelo menos vê..."?
Cegueira como sendo falta de ética, ou causada pela sua falta? Quem não é ético
é cego? Ou o seu contrário: quem é cego não é ético?
Outra vez a ideia de cegueira como falta de razão.
Cegueira aqui, bem como em toda a obra agora analisada pela jornalista
portuguesa, aparece como doença contagiosa, epidêmica, conservando o sentido
social da expressão.
Visão aqui, aparentemente, quer dizer percepção. O que,conforme tanto o
escritor apresenta em sua obra, quanto a analista entende daquela obra, é uma
“ferramenta” que o cego não possue.
Não insistamos em não perceber; ou não insistamos em não querer ver.