domingo, 10 de outubro de 2010

MÍDIA & ABORTO - Debate farisáico

Tomo a liberdade de reproduzir aqui, sem acréscimos e/ou retoques, o excelente texto de Alberto Dines, dado a sua pertinência e à sobriedade do arrazoado nele exposto.

MÍDIA & ABORTO
Debate farisaico

Por Alberto Dines em 10/10/2010

Reproduzido do Diário de S.Paulo, 10/10/2010

Este debate sobre o aborto é falso, dissimulado, hipócrita. Mascara uma questão de grande relevância e encobre um problema institucional que está no cerne da nossa fragilidade republicana. Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva manifestaram-se sobre a interrupção da gravidez de forma semelhante ao longo do primeiro turno e todos na esfera do "respeito à vida" que tanto agrada ao feixe de confissões religiosas cristãs.

O problema do aborto diz respeito à saúde pública, sobretudo em países dominados pela corrupção e pelo desapego às leis onde vale o "vale tudo". Descriminalizado ou não, o aborto continua sendo praticado aberta e impunemente na vasta rede informal de atendimento médico.

O que deve sair imediatamente do debate eleitoral é esta fingida religiosidade que leva Deus aos palanques, macula as mais íntimas opções espirituais do eleitor e abala gravemente os fundamentos da nossa democracia – teoricamente isonômica, tolerante, aberta, inclusive aos agnósticos, descrentes e ateus.

Teocracia cega

O secularismo, intrinsecamente ligado ao ideal democrático e republicano, foi seriamente comprometido quando em 2009 o presidente Lula, acompanhado pela candidata in pectore Dilma Rousseff, encontrou-se com o Papa Bento 16 na Santa Sé e assinou uma Concordata que tentou manter secreta, depois minimizou e, em seguida, foi obrigado formalizar. Este foi o pecado original aceito pelas confissões da cepa luterana, certas de que teriam suas compensações. E tiveram: a enxurrada de concessões de emissoras de rádio e TV que distorcem e comprometem o equilíbrio do sistema brasileiro de radiodifusão.

Não obstante, a sociedade brasileira novamente avança em direção ao espírito de Guerra Santa justo às vésperas do feriado nacional de 12 de outubro, data da padroeira do Brasil. Em outras ocasiões produziram-se confrontos que não honram nossa temperança e capacidade de convivência.

Diante do explosivo coquetel composto por altas doses de fanatismo político-eleitoral e igual quantidade de fervor religioso, não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao Estado laico. Esta é questão que deveria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.

Religião é assunto de foro íntimo, tirá-la desta condição superior para colocá-la no horário eleitoral é desrespeitá-la no que tem de mais elevado. Quando a crença converte-se em clericalismo, a etapa seguinte é a teocracia avassaladora, cega, tirânica. Não há outra opção, o mundo islâmico está aí para comprová-lo, apesar das exceções na Turquia e Líbano.

Grande demais

Israel vai na mesma direção, a despeito da ojeriza inicial da maioria dos religiosos judeus em aceitar um Estado que não fosse criado por ação do Messias. Cercado de inimigos, isolado pela intransigência em admitir a convivência com um Estado palestino, Israel enfrenta neste momento uma grave crise doméstica produzida pela coalizão da direita com os religiosos que pretende obrigar os que desejam obter a cidadania israelense a jurar fidelidade a um "Estado judaico e democrático".

Se judaísmo for definido como cultura ou civilização, tudo bem, mas no caso é religião e um estado religioso não pode ser democrático.

O "parceiro estratégico" do governo brasileiro, Nicolas Sarkozy, pretendendo ser fiel às tradições seculares do republicanismo francês, não vacilou e proibiu o uso pessoal de símbolos religiosos em locais públicos (burka islâmica, kipá judaica e crucifixos ostensivos).

Medida extrema, antipática, incontornável. Deus é grande demais para ser enfiado num míssil nuclear. Ou enlatado pelo marketing político.


José Jorge Andrade Damasceno - Professor adjunto na Universidade do Estado da Bahia

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Boatarias deletérias que escorrem Como avalanche de "lama tóxica".

Boatarias deletérias que escorrem Como avalanche de "lama tóxica".
Por Jorge Damasceno
A volumosa onda de boatos e fofocas que nas últimas semanas da campanha eleitoral irromperam nas redes sociais, impressionam pela capacidade de seus mentores e difusores, em transformar mentiras absurdas em verdades absolutas e irrefutáveis.
Como tática de contrapropaganda das mais sórdidas, a boataria foi despejada na internet e, como uma avalanche, tal se transportou pelo éter e se apresentou diante de milhares de usuários do twitter, orkut, facebooke e outras tantas redes capilares da comunicação virtual.
Escorrendo como uma "lama tóxica", a tática de disseminar boatos contra pessoas e instituições que se pretendia taxar como satanistas, iníquas, contrárias a vida, a moral sexual, aos "bons" costumes e, que se eleitos, aprovarão práticas que atentam contra a "liberdade", a "fé" e o viver cristão, mostrou ter uma eficácia estonteante, apelando fundamentalmente para a religiosidade mística de grande parte dos que professam a fé, seja esta de caráter evangélico e/ou católico.
Tendo como objeto o voto do eleitor vulnerável aos apelos dos sermões e/ou às exortações das homilias, a avalanche de "lama tóxica" foi lançada sobre pessoas, partido e candidaturas, contaminou milhares de consciências doentes e crédulas, na medida em que mudou a tendência eleitoral que até três semanas antes das urnas, se mostrava amplamente favorável à candidatura diretamente submetida ao processo difamatório, acabando por ser ferida pelo germe da "desconfiança".
O logro daquela empreitada virtual foi o resultado do implacável esforço perpetrado por alguns indivíduos investidos de poder de liderança e/ou grupos conservadores, ávidos por promover uma "virada", que a campanha da candidatura de sua preferência não conseguia fazer, em sua propaganda de rua, ou de mídia.
Mas, onde estariam localizadas as nascentes destas fontes, a partir das quais pôde se produzir tão violenta avalanche? Quais eram os elementos motivadores de tanta ferocidade nos ataques ao processo eleitoral, visto que se fazia uso de meios extremamente espúrios para atingir o que se pretendia com a divulgação de boatos, mentiras e, até mesmo colocando nos lábios da candidata do PT um discurso expressando “desafio a Deus”, que ela não fizera?
Maria Inês Nassif, em excelente texto publicado em Carta Capital, apresenta algumas respostas a estas questões, que aqui, toma-se a liberdade de reproduzir na íntegra. Diz-se parte, porque ainda tem muita coisa por saber-se neste episódio, já que a campanha ainda vai ser retomada e, muito provavelmente, lances de grande sordidez, podem estar guardados para talvez serem utilizados, como "último tiro" na guerra contra a eleição da candidata do Partido dos Trabalhadores, explicitamente travada pelos que nunca se conformaram em terem perdido a hegemonia ostentada por um longo período.
Voltando ao referido texto de Carta Capital, a começar pelo título que dá ao seu arrazoado, atente-se para o que diz a autora, a quem passar-se-á a palavra:
"O voto do pecado e o poder satânico Maria Inês Nassif
"A campanha religiosa contra a candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, estava em andamento e foi subestimada pelo comitê petista. O staff serrista prestou mais atenção nisso. No dia 14 de setembro, a mulher de José Serra, Mônica Serra, em campanha para o marido no município de Nova Iguaçu, no Rio, falou a um eleitor evangélico, para convencê-lo a não votar em Dilma: “Ela é a favor de matar criancinhas”, disse, segundo relato do jornal “O Estado de S. Paulo”. Mônica quis dizer, usando cores muito, muito fortes, que Dilma era a favor do aborto, e portanto não merecia o voto de um evangélico. Não deve ter sido da cabeça dela – falou porque as pesquisas qualitativas do PSDB já deviam mostrar que a onda “antiabortista” estava pegando, embalada por bispos e padres da Igreja Católica e pastores evangélicos.
"Da parte da ala conservadora da Igreja Católica, a articulação foi feita com alarde, de forma a induzir os fiéis de que a recomendação de não votar em Dilma, ou em qualquer outro candidato do PT, veio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CNBB reagiu timidamente a essa ofensiva, com uma carta que foi também instrumentalizada pelos conservadores, que hoje não são poucos. “Falam em nome da CNBB somente a Assembleia Geral, o Conselho Permanente e a Presidência”, diz a nota, para em seguida lembrar que o documento oficial sobre as eleições, tirado na 48ª Assembléia Geral, foi a “Declaração sobre o Momento Político Nacional”, que não faz referência direta a candidatos ou partidos. Um trecho da carta oficial, todavia, foi apresentado aos fiéis paulistanos como prova de que a Igreja, como instituição, vetava o voto aos petistas. “(…) incentivamos a todos que participem (…), procurando eleger pessoas comprometidas com o respeito incondicional à vida, à família, à liberdade religiosa e à dignidade humana”.
"A campanha da Igreja conservadora contra Dilma está usando um sofisma: o “respeito incondicional à vida” torna a igreja antiabortista; o PT defendeu o aborto; logo, o voto em Dilma é pecado. É esse sofisma que foi colocado aos padres de São Paulo pela Regional Sul da CNBB como uma ordem. A secção da CNBB no Estado está impondo a campanha política nas igrejas como obrigação de hierarquia: há uma determinação para que os padres falem na homilia que o voto ao PT é pecado. Os padres estão obrigados também a distribuir jornais de suas dioceses na porta das igrejas, que não raro colocam o veto ao voto no PT como uma determinação da “CNBB”, sem especificar que é da CNBB da Regional Sul 1.
A articulista segue sua análise, afirmando que "Com ajuda da Igreja, Serra chega aos pobres via medo". Segundo Maria Inês Nassif:
Guarulhos é o grande foco, mas não o único. O bispo Luiz Gonzaga Bergonzini declara publicamente “ódio ao PT”. Sua diocese foi uma das formuladoras, na Comissão da Vida da Região Sul, do documento que deu “subsídios” para o manifesto anti-PT que está sendo distribuído nas paróquias como posição oficial da Igreja Católica. Um padre de Guarulhos conta que Dom Luiz Gonzaga vai se aposentar em sete meses, e tem aproveitado seus últimos momentos como bispo para militar ativamente contra o partido de Lula. Para isso, tem usado seu poder de “mordaça” – a autoridade máxima da paróquia é a diocese, e o bispo pode impor suspensões a padres que não seguirem as suas ordens, ou criticarem publicamente suas posições.
"Segundo uma senhora que é católica militante, bem longe de Guarulhos, no bairro de Campo Limpo, os bispos levaram ao pé da letra a orientação da regional da CNBB. A senhora ouviu do padre da sua paróquia, durante a pregação do sermão, que os católicos que votassem em Dilma Rousseff deveriam se confessar depois, porque teriam cometido um pecado. Preferiu o discurso da corrupção ao discurso do aborto. E garantiu que recomendava o voto contra o PT por ordem do bispo.
"O vereador Chico Macena (PT), da capital paulista, que é ligadíssimo à Igreja, conta que várias paróquias da região de São Lucas falaram contra o PT na homilia. Ele acredita que esse movimento da igreja conservadora paulista influenciou o voto contra Dilma em algumas regiões.
"Na campanha de Dilma, soou o alarme apenas na semana anterior às eleições. Foi quando a candidata se reuniu com líderes religiosos e garantiu a eles que não havia defendido o aborto.
"A guerra religiosa não se limitou a sermões de padres ou pregações de pastores evangélicos. Espalhou-se como um rastilho pela internet uma “denúncia” de envolvimento do candidato a vice de Dilma, o deputado Michel Temer (SP), com o “satanismo”. O site Hospital da Alma, ligado à Associação dos Blogueiros Evangélicos, diz que Dilma, se vencer a disputa, morrerá por obra de Satã, para que o sacerdote Temer assuma a Presidência.
"As versões religiosas sobre a candidatura governista são inventivas e, no conjunto, ajudam a formar um clima de pânico que, em algum momento, pode resultar numa explosão em que a racionalidade da escolha do candidato ao segundo turno escorra pelo ralo.
"Não deixa de ser irônico. A Igreja progressista esteve na base da formação do PT, embora limitada a regras da não militância política dentro das paróquias.
"Teve um papel fundamental em São Paulo. É aqui no Estado, que deu uma guinada conservadora durante e após os governos de Fernando Henrique Cardoso, que a Igreja Católica tem imposto os maiores prejuízos à candidata petista. Dois papados conservadores reduziram os progressistas católicos de São Paulo a um rebanho desorganizado e destituído de poder na hierarquia da Igreja.
""A outra ironia da história é que, no momento em que perdem significativamente a força os chefes de política locais, em função dos programas de transferência de renda do governo, e o PT passa a ser o interlocutor preferencial junto aos pobres, os seus adversários tenham arrumado um “atalho” para chegar a esse eleitor humilde, via o temor religioso. O voto colocado como “pecado”, e a eleição como obra de um “poder satânico”, recolocam o eleitorado mais pobre e menos escolarizado nas mãos de líderes conservadores, mas pela força do medo."
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
E-mail maria.inesnassif@valor.com.br
Pelo exposto, conclui-se que faltou ao comando do Partido dos Trabalhadores e à Coordenação da campanha presidencial, maior atenção ao papel jogado pela internet no que respeita à sua capacidade de persuasão e ao seu raio de alcance, cada vez mais alargado, na medida em que não detectou o problema ou, se o fez, negligenciou e/ou subestimou sua gravidade e complexidade.
José Jorge Andrade Damasceno é professor Adjunto na Universidade do Estado da Bahia. Mestre em História Social pela UFBA e Doutor em História Social pela UFF-mail: historiadorbaiano@gmail.com
WWW.twitter.com/JorgeDamasceno1

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

OUTRA VEZ: SEGUNDO TURNO!

Outra vez: Segundo turno!
Jorge Damasceno
Uma vez fechadas as urnas e findas as apurações, surge como resultado a necessidade de um novo escrutínio, para definir quem assumirá a presidência da República Federativa do Brasil.
Pela terceira vez, desde 2002, a tendência para que as coisas se resolvam logo no primeiro turno, perde força nas últimas semanas de campanha e, obriga partidos e candidatos a mais algumas semanas de campanha eleitoral no rádio, na televisão e nas ruas.
Aproximações e reaproximações político-partidárias, reconfigurações de toda ordem são necessárias para que se chegue a uma definição, sobre qual ou tal apoio, qual ou tal reforço, sobre tal ou qual novo rumo dar ao processo de conquista dos votos dos candidatos derrotados e/ou daqueles eleitores que acabaram não se decidindo por qualquer um dos postulantes.
Em todos estes momentos históricos, o partido /candidato que sai na frente para a segunda rodada de conquista e/ou reconquista de votos, é vítima de suas próprias dificuldades em lidar com questões difíceis de serem discutidas em uma campanha eleitoral, sem que resvalem em barreiras sociais e religiosas, cujas bases estão centenariamente concretadas e que o processo de "politização" da sociedade brasileira não foi capaz de minimizar os seus efeitos, no momento de se confrontar com a fatia da sociedade que está menos predisposta a discutir desapaixonadamente, questões como a descriminalização do aborto, para mencionar apenas este exemplo, que parece ter sido a peça chave de uma campanha multidenominacional, movida por pastores e padres, escudados em um pretenso "direito à vida".
Ao que parece, o problema crucial a se colocar aqui,ainda que apartir de uma observação sem a profundidade que o momento requer, é o fato de que o PT, apesar de ser um partido nascido a partir de relações com os movimentos sociais, não sabe lidar com as questões que calam fundo na fatia "conservadora" do eleitorado brasileiro! Ele as subestima e, por isto mesmo, não deixa clara a sua posição a respeito de temas, relevantes e, sobretudo, aqueles de cunho moral, que envolvem ao mesmo tempo sexo e religião.
Assim, na medida em que a sociedade não é chamada ao debate sobre temas como o aborto, ou a utilização de células troncos para fins terapêuticos, para citar apenas estes que têm grande repercussão nos espíritos de teólogos e leigos; na medida em que a sociedade não é satisfatoriamente esclarecida, por exemplo, sobre qual é a diferença entre a "descriminalização" do aborto, que é o que preconiza a possibilidade de permitir que o processo se dê em condições minimas e saúde publica, e a "liberação do aborto", que dizem estar no programa do PT e, por extensão, no programa de governo de sua candidata ao Palácio do Planalto, o eleitor vai sendo jogado de um lado para outro, ao sabor das “ondas”, que fluem e refluem,deixando no entanto os rrastros dos seus efeitos, nos resultados que força a realização de nova rodada eleitoral.
Esta absoluta falta de esclarecimento público de como o Partido dos Trabalhadores pensa esta e outras questões, oferece farta munição aos detratores da candidatura Dilma e do PT, para concitarem os seus fiéis a evitar dar o voto a quem, "tão logo assuma o governo", "aprovará" o casamento entre homossexuais e o morticínio de "vidas" inocentes, ainda no processo de gestação.
Neste sentido, é prudente ter mais atenção na condução da campanha eleitoral, neste segundo turno, procurando enfrentar as questões de moral de costumes, atentando para a sensibilidade do eleitor mais vulnerável às pregações evangélicas e prédicas católicas. Caso a cúpula partidária e a coordenação de campanha não se disponham a dar a devida importância a este tipo de eleitor, que majoritariamente votou em Marina Silva, o PT e sua candidata ao Planalto, pode pagar com a derrota o modo indiferente como trata a religiosidade do setor conservador da sociedade, embora tal religiosidade seja, em grande parte, plena de hipocrisia e vivida "para inglês ver".
José Jorge Andrade Damasceno, é professor adjunto da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Dr. em História Social Pela Universidade Federal
Fluminense.
e-mail: historiadorbaiano@gmail.com
Twitter: @JorgeDamasceno1