sexta-feira, 30 de julho de 2021

Dois desterros

Histórias e memórias de uns tempos vividos em salvador- IV – Os dois desterros

 

 

Três foram as vezes em que este escrevedor fora forçado a morar em Salvador. As duas primeiras, estavam relacionadas com a necessidade de estudar, visto que à época, ainda não era possível a uma pessoa cega  e que morasse fora da capital do estado, ser inserida no contexto de um processo de formação educacional, sem que precisasse ser desterrada do seu convívio social e do espaço em que houvera nascido, a fim de ser internado em uma instituição de ensino “especializada”, para que ali fosse alfabetizado e, posteriormente, fosse inserido no processo de escolarização regular.

Em agosto de 1967, não tendo ainda completado os sete anos de vida, este escrevedor fora levado para o “presídio dos cegos” pela primeira vez, a fim de ser “alfabetizado” e, claro, preparado para ser “alguém” na vida, quando crescesse.

No entanto, ao voltar em dezembro, apesar de alguns poucos progressos no que tange a apreensão de novos hábitos, pouco fora possível aproveitar, em virtude da realidade social e econômica por ele vivida, estar muito distante daquela que lhe fora apresentada. Mas, o que trouxera de concreto e palpável, fora uma magreza tal, que o seu padrasto comentara, para a fúria da mulher:

- Manda, Jorge está tuberculoso!

E olha que na véspera da volta para casa, por ocasião do encerramento do ano letivo no Instituto, em festejo a sua padroeira,  foram distribuídos inúmeros presentes e guloseimas, ele passou toda a noite que antecedeu a volta para casa, comendo uma caixa de chocolates, iguaria que pela primeira vez lhe era dado a conhecer.

Voltando ao que o menino trouxera de concreto dos seis meses que passara sendo “civilizado”, além de uma cicatriz na testa, produzida por um encontrão em uma das paredes do prédio, enquanto brincava com um outro menino de sua idade, estavam instalados dois hematomas – ou eram furúnculos -, mais ou menos do tamanho de uma laranja de umbigo: uma do lado direito das costas, antes da bunda; o outro na parte posterior da coxa esquerda, logo após a bunda magra do coitado.

Foram aplicados muitos remédios caseiros que ensinaram a dona Amanda: sumo de mastruz, vassourinha, emplastros e “papas de alho”; além de purgantes, “mingau de cachorro” e inúmeras outras beberagens, cujo objetivo era sarar inchaços  e coceiras que acometeram ao moleque.

Diante daquilo, dona Amanda decidiu não fazer o seu filho retornar no ano seguinte, convencida que os maus tratos não compensavam o dito “preparo para o futuro” do menino. Tal decisão acabou por não trazer prejuízos a este escrevente, visto que, no início do ano de 1969, ele fora integrado a uma experiência de “escola para cegos”, implementada por alguns idealistas e, levada a cabo no espaço da Escola Brasilino Viegas. O bom aproveitamento daquela experiência, o conduziria aos passos seguintes, tais como a matrícula no centro Integrado Luís Navarro de Brito (Estadual), para cursar a então quinta série do primeiro grau. Que alegria para este escrevente, foi poder estudar no Estadual, na sua própria cidade, com colegas que residiam, andavam, aprontavam as estrepolias de jovens estudantes, na mesma cidade em que ele também vivia.

Mas, aí veio o segundo desterro. Por conta da interrupção da assistência tiflológica, propiciada como desdobramento da experiência iniciada em 1969, viu-se uma vez mais tendo que aceitar ser, outra vez, interno no mesmo lugar de onde saíra há alguns anos e, que, esperava não mais voltar.

Sob a promessa de que no Instituto de Cegos da Bahia, ele teria maiores condições de alcançar os seus objetivos de estudante, que ainda não completara quinze anos, visto que lá, os recursos tiflológicos eram maiores e de mais fácil acesso: bibliotecas com farto material em braile para ler; locomoção, curso que lhe permitiria andar só – embora ele já houvesse dado os primeiros passo neste sentido, claro, à revelia dos interditos oficiais -, um curso técnico no Senai, que lhe daria uma profissão, por meio da qual poderia prover a si e a sua mãe, deixara uma vez mais o seu espaço de convívio, vivência e convivência com as gentes com as quais crescera e sempre se relacionara, para passar meses a fio trancafiado em um espaço de concreto, que só deixava para ir à escola: primeiro o Complexo Escolar Carneiro Ribeiro Filho; depois, o Instituto Central de Educação Isaías Alves (ICEIA).

Qual nada. Um ano e meio de reclusão: fome, frustrações sem fim, decepções sem conta, fizeram com que o rebelde alagoinhense chutasse o pau da barraca, virasse a mesa e, começasse a forçar o retorno a liberdade, embora isto significasse o aumento exponencial das dificuldades, no que tange a tão precisada formação para a vida.

Muito se aprontou. Chamado a consultar-se com uma psicóloga em quem ninguém confiava, limitou-se a dizer que fora enganado. Levado até a presença da assistente social igualmente desacreditada por quase todos, dissera-lhe que voltara ali para ganhar formação. E o que se teria feito naquela direção? Quase nada. O que tinha, era o que já levara consigo: a formação escolar.

A Assistente Social retrucara que, diante do seu mau comportamento, nada se poderia fazer em seu favor. Prometeu comportar-se melhor. Mas, depois de algum esforço e passadas algumas semanas sem que nada de concreto fosse feito, voltara a carga, com ainda mais força.

Em julho de 1976, por ocasião de um torneio de marcara a comemoração do bicentenário da independência dos Estados Unidos da América do Norte, surrupiou-se um rádio no armário de uma colega, para que por ele, fosse possível ouvir o jogo do Brasil. O dito foi devolvido em mãos, no dormitório das meninas, espaço terminantemente proibido de ser visitado, sobretudo, anoite. Foi um burburinho! A música de Ednardo “Pavão Misterioso”, embora tivesse como tema os “anos de chumbo” que pesavam sobre o brasil de Geisel, foi a trilha sonora do rumoroso episódio

 

https://youtu.be/7GaYn5MnIDI

 

Na mesma semana do pretenso acidente que matara Juscelino Kubitschek, um grande levante de travesseiros se fez ouvir em meio ao silêncio obrigatório. Ao descer para repreender os insurretos, a diretora arrancou a todos da cama, mesmo aqueles que fingiam dormir, como este garatujador. E, o sujeito estava tão magro, mas tão magro, que aquelas cuecas de copinho, não conseguiam ficar no lugar que lhe era destinado. Mesmo assim, quase nu, ele, como todos os participantes ou não da algazarra, fora retirado do quarto e, levado para ouvir a reprimenda que, entrara pelo direito e saíra pelo esquerdo. Depois, como castigo, todos foram distribuídos pelos seis andares do prédio – exceto o quinto onde ficavam as gurias -, tendo de ficar ali, até que fossem chamados a voltar para a cama.

Este garatujador foi mandado para o segundo andar. Lá, procurou um lugar quentinho; lá se deitou no chão e, ali, dormiu. Acordado com os tapas e repreensões da chefe:

- Não mandei você aqui para dormir. Suba!

Em setembro, daquele ano da graça de 1976, como um presente de primavera, este narrador foi solenemente devolvido à liberdade dos pássaros; também lhe foi devolvido o sorriso de quem volta a respirar o ar do lugar que lhe foi berço.

 

José Jorge Andrade Damasceno – 30 de julho de 2021.

  

terça-feira, 27 de julho de 2021

Histórias e Memórias de uns Tempos Vividos em Salvador - III- Uma Travessa só para Edimar.

Histórias e memórias de uns tempos vividos em salvador – III – Duas travessas de lasanha: uma era só para Edimar

 

Não é sem razão a má querência que este escrevedor nutre pela cidade de Salvador. Além de ser uma cidade muito pouco acolhedora para aqueles que não enxergam, e/ou precisam de auxílios mecânicos para se locomoverem, os seus administradores têm pouquíssimas preocupações com a criação e a manutenção de espaços que possam ser usados pelos pedestres que não vejam ou que tenham mobilidade reduzida por algum motivo. Os espaços urbanos da soterópolis tem como premissa básica o automóvel de uso individual. Estes, por sua vez, são colocados sobre os poucos passeios e, mesmo estes, sempre estão esburacados e sujos; são estreitos ou estreitados pela presença de barracas, bancas de camelô, entre outros obstáculos que dificultam a circulação de pessoas cegas e/ou pessoas com dificuldades de mobilidade, indicando a falta de atenção do poder público, bem como da população em geral, com aqueles que não se encontram no padrão social, econômico e físico tido como normal pela elite pensante responsável pelas políticas públicas visando o funcionamento da metrópole. E, como se disse antes, quanto mais os espaços públicos estão afastados do centro da cidade e dos espaços culturais/turísticos; quanto mais estão localizados nas periferias, tanto mais difíceis as condições de passeios, pavimentos, arruamentos, bem como de sua manutenção/organização.

Conforme já se disse, os casais formados por este garatujador e sua consorte e, dona Nair e seu Edimar, se visitavam com regularidade para conversas regadas a boas refeições e prolongadas conversas. O deslocamento do casal Nair e Edimar até a residência do primeiro casal, era facilitado pelo fato de ser feito no mesmo sentido de quem se dirigia para o Centro Administrativo da Bahia. O problema para eles, era o retorno para casa: ou voltavam andando enfrentando passeios irregulares, maltratados, mal construídos, malcuidados, ou atravessariam as pistas da avenida Paralela, aventurando encontrar quem desse informações sobre o ônibus que eles precisariam utilizar para os levar até o Trobogy, que, como já se disse, era onde eles moravam.

Em um agradável domingo de sol na “capital de todos os baiano”, recebeu-se a visita do casal do Trobogy, para mais um memorável almoço, cujo prato seria lasanha.

O grupo foi reforçado por dois amigos dos casais, que, diga-se de passagem, eram exímios “bons de garfo”, conforme se diz em relação a pessoas cujos apetites estão sempre abertos, diante de uma mesa farta.

Enquanto a massa era preparada, os quatro cidadãos conversavam animadamente sobre os assuntos mais diversos e descontraídos, quase sempre concluídos sobre abundantes gargalhares.

Anunciada a conclusão do processo de preparo e cozimento  da lasanha, cujo cheiro abrira ainda mais o apetite dos famintos comensais, este escrevedor dispôs-se imediatamente a servir os pratos de todos.

Duas travessas foram trazidas para a mesa e, claro, seis pratos fundos, como a ocasião exigia. Tendo feito cada prato, este servidor não economizou na distribuição de conteúdo, alertando aos dois visitantes que faria um prato ainda mais generoso para seu Edimar, observando se ele ainda repetiria...

Ah, cabe salientar que uma das duas travessas fora deliberadamente separada para o marido de dona Nair.

Assim, todos comeram o alimento que fora generosamente colocado nos recipientes, bem medidos, sacudidos e recalcados..., inclusive as duas senhôras.

Terminada a rodada, todos foram perguntados se ainda repetiriam. Todos, ou melhor, quase todos responderam negativamente. A exceção de seu edimar.

Diante do que, o “garçom” improvisado, logo o atendeu, colocando no prato do vizinho, a outra metade da travessa a ele destinada. Ele, por sua vez, não se fez de rogado: para o espanto e estupefação de todos que ali se encontravam e, de todos que depois vieram a saber do caso, seu Edimar devorou mais aquele prato cheio, sacudido e recalcado, sem a menor dificuldade.

Talvez seja preciso lembrar aos leitores que aquele comer abundante, também se fez acompanhar dos líquidos indispensáveis àquele tipo de refeição!

 

José Jorge Andrade damasceno  - 27 de julho de 2021.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

"Só as pelancas, a gordura e os ossos"!

Histórias e Memórias de uns tempos vividos em Salvador – Dois casais e um cozido

 

Morar em Salvador é acima de tudo uma arte. E se este morar se dá nas áreas periféricas e por pessoas cegas, aí, crê-se que a arte é mais que uma arte: é um artifício. E, se este morar é tiro curto e a contragosto, passa a ser um sacrifício. Transporte, deslocamento, ajuste aos espaços exíguos das moradias; ajuste aos espaços públicos, disputados aos empurrões com pessoas, automóveis, vendedores de tudo quanto é bugiganga e quinquilharia; esperas pelo ônibus que precisa por tempo indefinido; informações que necessita obter, muitas vezes, relacionadas ao ônibus que o levará ao local de trabalho e/ou moradia; tudo isto somado e multiplicado com a má vontade de toda a ordem que tem de enfrentar dia após dia, leva aquele que já não nutre a menor simpatia pela cidade, a detestá-la cada vez, com mais força e convicção.

Como  já foi dito, este escrevedor e sua consorte, por dois anos mantiveram residência na cidade da Bahia, em um conjunto residencial rebatizado de “Condomínio”, que se situava na Paralela, em um dos acessos ao conjunto “Paralela Parque”.

Em um outro ponto mais acima, situava-se outro conjunto popular, que ostentava o esquisitíssimo nome de “Trobogy”. Ali, residia um outro casal com o qual se estabelecera uma relação amistosa, formado por seu Edimar e dona Nair, a mesma que havia indicado a sua diarista para que pudesse ajudar nos trabalhos domésticos do primeiro casal.

Embora o primeiro casal tivesse mais dificuldades de visitar o segundo, em razão do deslocamento até ao “Trobogy” ser dificultado pela sua localização estar na contramão da trajetória dos ônibus, que, diga-se de passagem, serviam aos dois conjuntos, no sentido Aeroporto Centro, passando primeiro no “Trobogy” e, só depois, passando na frente do dito “Condomínio”, em direção ao Paralela Parque.

Isto significava a dificuldade de se chegar ao “Trobogy”, pois o trajeto tinha que ser feito a pé. Ainda assim, algumas visitas foram trocadas e, claro, ideias e almoços.

Em uma de tais idas até a casa  de Nair e Edimar, as duas senhoras prepararam o famoso “Cozido”, aliás, muito saboroso guisado de carnes e verduras, acompanhado do indispensável pirão de farinha de mandioca.

Concluídos os trabalhos de preparo e cozimento da refeição, os quatro se puseram à mesa para refestelarem-se com aquele cozido, cujo delicioso odor invadia a sala onde os folgados conversavam e riam aos bocados.

As senhoras, dispondo-se a servir o almoço, elaboraram generosos pratos para si mesmas e para os seus consortes, que devoraram o guisado com a voracidade de quem estava há alguns dias em jejum preparatório.

O pitoresco ficou por conta de dona Nair que, a despeito de ter feito o prato a à altura do apetite do seu consorte, informou-lhe:

- Mô, se quiser mais, pode tomar conta das panelas...

E não é que “mô”, após devorar o que fora colocado no prato por dona Nair, visitou as panelas mais algumas vezes, até que só restasse as pelancas, a gordura e os ossos?

 

José Jorge Andrade Damasceno – 23 de julho de 2021.

 

  

quinta-feira, 22 de julho de 2021

"Eu num quero minhas panela preta"!

Histórias e Memórias de uns tempos vividos em Salvador – “Eu Num Quero Minhas panela Preta!”

 

Entre julho de 1998 e junho de 2000, muito a contragosto, este escrevedor residiu em um apartamento – apertamento -,no segundo andar de um conjunto  residencial construído ao longo da avenida Luís Viana Filho, mais conhecida como Avenida Paralela. Os moradores, talvez, para dar um ar de status social, chamava o dito conjunto de “Condomínio”.

Segundo o proprietário do imóvel, era um apartamento de 51 metros quadrados, que mais parecia uma gaiola de concreto, sobretudo, para quem sempre residiu em casa, embora modesta, porém, ampla, arejada e, principalmente, sem quaisquer tipos de vigilância, claro, excetuando-se aquelas exercitadas por vizinhos ávidos de novidades sobre a vida dos outros. Aliás, tal vigilância era potencializada naquele dito condomínio, visto que a entrada e a saída, a comida e a bebida dos moradores, era vigiada, sabida e criticada por quase todos. As janelas de vidro inteiriço, obrigava a posse de cortinas, sob pena de se bisbilhotar, até mesmo o que um casal fazia sob os lençóis de linho!

O piso era do tipo “Paviflex” e, o da cozinha, saliente-se, estava bastante destabocado; enquanto o banheiro, a qualquer descuido, vazava no apartamento de baixo! Imagine-se o transtorno!

Dona Nair, moradora em um conjunto próximo e conhecida do casal recém aportado na cidade da Bahia – aliás, só o tabaréu que era de Alagoinhas -, indicou uma jovem que lhe prestava serviço de diarista, para que também o fizesse àquele casal, visto que era uma jovem senhora, sem maus hábitos e de confiança, embora, cá entre nós, fosse um tanto quanto atrapalhada das faculdades pensantes!

Certa vez, enquanto fazia o seu serviço, a diarista contou que a senhora sua mãe, ganhara de um dos filhos, uma panela “antiaderente” e, ficou encafifada, pois não entendia por que aquela panela, embora nova, já estivesse preta. A jovem explicou que a panela era de “telefone”... Diante das caras interrogativas do casal, ela explicou:

- Aquela que não gruda...

- Ah, sim, teflon! – Disse a dona da casa...

- Isso, “telefone”, repetiu....

Pois bem, disse ela que sua mãe, não conformada com o “defeito” da panela e, vendo infrutíferos os seus esforços de limpar a sujeira persistente, lançou mão de um pedaço de “Bombril” e, esfregou a dita panela, até que ela ficasse alvinha, como deveria ser...

Sendo chamada a atenção pela filha, dizendo que aquela panela era “moda” e as senhoras para quem trabalhava também possuía, a mamãe argumentou :

- “minha fia, eu num quero minhas panela preta”! 


José Jorge Andrade damasceno - 22 de julho de 2021.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Dona Bidôga: "Eu bebo por esporte"!

 

Dona Bidôga – entre o ferro de brasas e a lágrima de amor perdido: uma música

 

 

Justina Santos. Mas, ninguém a procurava por este nome. Bidôga, era como queria ser chamada e, assim, sempre fora chamada, inclusive pelos mais próximos: pela mãe – Dona Maria -, pela única filha – Ana Cristina(neném) -, pelas amigas e vizinhas e, como não poderia deixar de ser, pelos filhos destas últimas.

Conforme era a sua vida, assim o era para uma boa parte das suas vizinhas: lavadeira de ganho, atividade composta de movimentos que as levava à beira do rio, para ali, lavar, quarar e enxugar as roupas que as patroas lhes incumbiam fazer. O penoso trabalho semanal era levado a bom termo, com pouco sabão e, com remuneração insuficiente para atender as necessidades intrínsecas de uma pessoa humana, sobretudo, daquelas que, quase sempre, eram o arrimo da família, fosse ela pequena ou numerosa. Isto as obrigava a ter várias lavagens de roupas, de forma que as possibilitassem a realização dos “arranjos”, expressão por elas usada, querendo significar a obtenção do mínimo que pudesse mitigar as necessidades de alimento, de vestuário, bem como de outras necessidades repentinamente surgidas, como remédios, por exemplo.

A atividade iniciada à beira do rio, era complementada com o “passar” e, em ocasiões especiais ‘engomar”, sempre com ferros de passar, que, nos primeiros tempos e até o fim da década de 1960 – quando elas adquirem os primeiros ferros elétricos (TUPI) -, eles eram de carvão – também eram conhecidos como “ferros de brasa”.

Após completar as etapas de seus labores com as “roupas” das patroas, chegava a hora de fazer a entrega das limpas e trazer as sujas para a semana seguinte, quando retomariam o labutar cotidiano, levado a cabo por anos a fio dos seus existires, com o qual proviam suas vidas e as de todos que tivessem sob o seu encargo.

Mas, havia que se encontrar meios para suportar o peso de tão grande labor e responsabilidade, visto que, qualquer avaria ou extravio de alguma peça, as lavadeiras eram obrigadas a ressarcir as patroas, quer com descontos em seus parcos vencimentos, quer por restituição da peça extraviada ou avariada, o que, saliente-se, era tarefa quase impossível para aquelas mulheres que nada tinham de seu, a não ser a sua força de trabalho.

Elas Também precisavam lidar com os “amores’, que, quase sempre, eram fugazes e fugidios, produzindo melancolias e dores de “amor”, que levava algumas delas a procurar afogar no copo de pinga ou, a consolarem-se em músicas que aliviassem os seus “ais”.

Dona Bidôga, inúmeras vezes, valeu-se dos dois artifícios para prosseguir no seu labor, sem prostrar-se diante da desventura afetiva que lhe abatera com alguma frequência. Boa praticante da arte de “virar copos”, algumas vezes sacrificou tal “esporte”, para não perder o amado; outras vezes, mergulhara fundo no “beber por esporte”, como dizia, a fim de afogar a decepção que um ou outro amor lhe causara.

Mas, Dona Bidôga também cantava. Principalmente quando o amado vinha para os seus braços e, claro, quando alguma alegria enxia aquele peito sofrido de fainas diárias e de labutares constantes.

Ficou na memória deste escrevedor, uma frase que ela cantava, que muitas vezes vinha aos ouvidos, quando dela se rememorava alguma coisa, alguma palavra. Muito amiga de mãe e, muitas vezes brigaram ambas, de modo que a vida de uma e de outra, em vários momentos se imiscuem em tais memórias.

Algumas vezes, se chegou a perguntar se aquela música existia mesmo, sempre adiando uma pesquisa para ver se de algum modo a encontraria por aí.

Assim dizia a única frase – que era cantada, ou que ficou neste rememorar: “A mulher quando chora pelo homem, é mentira pura”.

Hoje pela manhã, decidido a saber se tal música de fato existira, uma grande surpresa para quem escreve estas linhas: a música existe, cantada por Ataulfo Alves, música que certamente ela ouvira, em algum rádio, de algum vizinho mais bem aquinhoado ou, quem sabe, em casa de alguma patroa, no pouco tempo que lá passava, enquanto entregava a roupa limpa, recebia a roupa suja e, se fosse remunerada por semana, receberia o seu minguado dinheiro, para o “arranjo” do sábado.

A música, de fato, tem como título “Mentira Pura”. Mas, a surpresa está por conta da re(leitura feita por Dona Bidôga, talvez por ouvir poucas vezes; talvez por não ter podido compreender a complexidade da letra – complexidade para ela, saliente-se, que além de ter um acesso parcial aos veículos de execução musical, também estava alijada dos processos de leitura e escrita.

A poesia de Ataulfo Alves diz no seu refrão “Mulher que chora/homem que jura/não acreditem não/ é mentira pura”. Na sua simplicidade de lavadeira e passadeira de ganho, ela simplificou a frase, evidentemente, descrevendo aquilo que talvez vivesse ou vivenciasse no seu farfalhar diário.

 

https://youtu.be/oN-HO1DxglI

 

José Jorge Andrade Damasceno

 - 19 de julho de 2021.