sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira"

Morre o autor de "Ensaio sobre a Cegueira"
Lembro-me que o primeiro contato que tive com livros escaneados para se ler no computador, foi justamente um dos livros que mais custei a ler e mais detestei quando li. Nas primeiras tentativas de leitura, o que me fazia recuar era a dificuldade de compreender o texto, seu contexto e seu autor.
Precisei de dez longos anos, várias outras leituras e, sobretudo, a leitura de uma reportagem publicada no periódico português "O Expresso - a revista", onde a repórter, apresenta um longo ensaio sobre a obra e, após ele, uma excelente entrevista com o próprio Saramago, na qual ele procurava explicar a obra, seu contexto e as circunstâncias que o levara a escrevê-la. Tanto pior, pois detestei ainda mais o "Ensaio sobre a cegueira", mesmo sem  ter conseguido ler mais de dez, das suas mais de trezentas páginas.
Finalmente, em uma quase interminável noite de insônia, fui além de minha rejeição à obra e a li, de uma só vez, como quem toma um remédio amargo. E, continuei detestando-a, pois nela, o autor põe a nu todo o seu modo pessoal e social de pensar o cego e a cegueira, visto que, não se pode dissociar o escritor da sociedade na qual ele está inserido. Ele não só influencia o todo social com seus conceitos, opiniões e formulações de uma determinada visão de mundo, quanto por ele é influenciado, atuando como "caixa de ressonância" do meio em que vive.
Assim, em sua obra, Saramago deixa bem claro o modo como ele vê o cego e a cegueira, ao mesmo tempo em que reflete o modo como a sociedade pensa e age em relação a este tipo de circunstância, quer seja ela levada ao nível do ser individual, humano (o cego, homem ou mulher), quanto ao trazer para o nível abstrato da sociedade, como ele dizia na mencionada entrevista, que quando escrevia a obra em questão, "pensava em Hitler" e em seu intento de impor ao mundo sua proposta de sociedade arianizada. Ali ele via uma sociedade adoecida por uma cegueira coletiva e endêmica.
Ora, não é difícil para a opinião pública, transferir esta e outras proposições conceituais encontradas no "Ensaio Sobre a Cegueira", para o âmbito do ser humano, e/ou grupo formado por seres humanos desprovido das capacidades visuais, associando tal falta, à impossibilidade de racionalizar, de elaborar pensamento crítico, bem como a uma permanente impossibilidade de perceber, entender e agir com o que se encontra ao seu redor e com as vicissitudes que se lhes apresenta no cootidiano.
Alienar, segregar os doentes e proteger a população "sã", deles e do seu contágio, é o grande esforço que se faz no transcurso de toda a obra. No entanto, ele apresenta o ser cego, aquele que naturalmente o era, como alguém mais vil e capaz de gestos, atitudes e práticas de maior repugnância social, na medida em que aquele grupo por eles formado, submete e sujeita os cegos "temporários", às maiores vilezas e situações de degradação, em um nível de abjeção inimagináveis.
Então, com tanta contradição no modo de ver e pensar o cego e a cegueira, apresentada naquela obra, onde pretendia o escritor chegar? Qual era o juízo que pretendia formar junto a opinião pública, leitora de suas obras? Seria uma crítica social tão profunda e sutil, que eu e os poucos críticos da obra não quisemos e/ou pudemos entender?
Eis aí estão postas questões a serem pensadas, sobretudo no contexto da história e da memória de um escritor que se vai e, sobretudo, em torno de uma obra que, ficará como monumento àquele que a trouxe à luz

Jorge Damasceno, - Professor de História na Universidade do estado da Bahia