domingo, 27 de setembro de 2020

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE ALAGOINHAS, PELOS ESCRITOS DE MARIA FEIJÓ - XIX.

 

Histórias e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó – XIX – cumprimentos, descrições e primeiras trocas de impressões : a literata se transmuta em Marta, mas ainda conduz a fala das duas amigas professoras.

 

No arrazoado anterior, o leitor foi apresentado aos dois personagens que Maria Feijó de Souza criou, especialmente para que pela intermediação deles, o seu rememorar possa ser trazido à lume, na medida em que ela própria não quer ser identificada diretamente com o que irá rememorar. É um artefato narrativo que autora utiliza para suas reminiscências poderem fluir, sem que venham a ferir suscetibilidades. Tais memórias entremeadas de elaborações ficcionais, são, por assim dizer, memórias vividas a partir de interações coletivas na sociedade alagoinhense, localizada em um espaço de convivência daquela que relembra e em um tempo por ela vivido, no curso da história de um cotidiano perpassado por diversos conjuntos de pessoas, das mais diversas classes, visto aquela sociedade já estar demarcada pelas diferenças de pertencimento social, econômico, étnico e lugar de moradia.

Assim, conforme formula o sociólogo francês Maurice Halbwach (1877-1945), Feijó é a pessoa que lembra; mas um tal lembrar é produto da coletividade em que ela esteve inserida. Diz ele:

 

“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. [...], cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social”. (HALBWACH, 2006, p. 69). 

 

Portanto, Feijó é o “indivíduo que lembra”, a partir dos diversos elementos acumulados no transcurso de sua existência, associados a outros transcursos existenciais que com ela interagiram coletivamente, quer sejam suas colegas de curso ginasial, normal ou de atuação professoral, quer sejam os seus alunos, amigos, e as demais pessoas que com ela conviveram e socialmente interagiram. Tais conjuntos de lembranças vão sendo armazenados ao longo do tempo e ancorados no porto localizado no espaço chamado memória. Dali, são extraídos os rememorares materializados em suas obras literárias, sobretudo, aquelas prosas publicadas entre 1972 e 1978, além dos contos e poesias tornadas públicas em todo o seu percurso, sendo Alagoinhas, sua cidade natal, quase sempre o fio condutor de todo o seu mourejar no mundo das letras. Crê-se que aqui caberia a seguinte passagem extraída da já mencionada obra de Maurice Halbwachs, que diz  “[...].A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo,  pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACH, 2006: P. 69).

 

Neste ponto, retoma-se a conversa das duas amigas professoras que se reencontram em Copacabana, depois de algum tempo sem se esbarrarem em algum outro lugar, sem entabularem alguma conversa por outro qualquer meio – já existia o telefone; mas, ele sequer é mencionado como possibilidade de alguma troca de notícias entre as duas. Maria Feijó teima em não se retirar do processo narrativo, pois ainda faz o trabalho de transição entre ela mesma e a personagem Marta, que acaba de criar para puxar o fio da história que constrói em torno de Maria Luísa Peixoto e o conduzir até o seu desfecho. É assim que ela descreve o estado de espírito das suas “amigas” que há algum tempo residiam apenas na sua criação literária: “Continuam sorrindo numa alegria colegial, realmente parecendo sincera, estando ambas felizes, enquanto os convencionais beijinhos estalam em cada face oferecida.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

A literata se esmera em descrever a personagem condutora da narrativa, mas não consegue esconder os seus próprios traços pessoais, profissionais e afetivos. Cada componente da descrição que ela faz de Marta, aponta para ela mesma. Certamente isto não é acidental, uma vez que a autora teria tido inúmeras oportunidades de se retirar do texto, caso assim o quisesse. Acontece que ela não o quer, não o pode, se diria. Sua têmpera de narradora não o permitiria. Siga o leitor os contornos que Feijó esboça para apresentar Marta. Ela começa por indicar que as duas teriam alguma semelhança – saíram ambas da mesma criação literária -, distanciando-se apenas no tempo já vivido, visto que” embora ambas fossem distanciadas em idade, tornaram-se amigas pela semelhança da profissão”.

E prossegue:

“Marta, na realidade, contava 38 a 40 anos. Mais ou menos. Casada, sem filhos, Professora Primária formada por outro Estado da União, e por este motivo jamais pôde ensinar — seu maior sonho — no Rio de Janeiro, porque para aqui viera quando ainda Distrito Federal.  Tudo fez, tentando lecionar, mas inúteis todos os esforços. Ingressara, então, na Faculdade de Filosofia, fazendo Jornalismo.  Como sempre gostasse de escrever, superou o sonho não realizado de exercer o magistério carioca, ao tempo em que, militando na imprensa, desposou um colega muito culto, bacharel em Direito, escritor e, sobretudo, muito a amava”. (FEIJÓ, 1978, p.18).

 

Ainda descrevendo Marta, Feijó traça os seus contornos e dotes de mulher, cujo corpo ainda se não deixou vencer pelo correr implacável dos anos:

 

“Morena, alta, esguia, trajava nessa manhã luminosa de domingo.  maiô preto de uma peça — embora moderna, não usava o duas peças e biquini, ainda pior — que mais lhe delineava o corpo bem feito, não aparentando, nem de longe, a idade real.  Se muito, uns 32 anos demonstrava! Eterno segredo de juventude trazia-lhe sorrisos diante da vida. Muito conversada, descontraída, acompanhava o marido, quando podia, em viagens de estudo, recreio, congressos, encontros, seminários, conferências etc.  Porém, lá no íntimo, ao Paulo — seu marido — sempre confessava que se sentia, às vezes, não propriamente desajustada dentro da profissão que desempenhava, mas lhe faltando” qualquer coisa”. Nascera mesmo para Professora Primária, embora achasse ser o complemento dessa honrosa profissão.  realmente, o jornalismo. As duas se fundiam na verdadeira, por ela ambicionada. Enfim, nem tudo é como se deseja e, tal o espírito de adaptação que a envolvia, conformava-se, porque encontrara na vida, sua outra metade, sonho de toda mulher, considerando isto, grande dádiva dos Céus. E, assim, se dava por muito feliz. Realizada” (FEIJÓ, 1978, p. 19).

 

Parece claro que o perfil acima construído é mesmo da literata alagoinhense,” [...]. Casada, sem filhos, Professora Primária  formada por outro Estado da União,[...]”,  até mesmo no fato de atuar em um mister que, por assim dizer, não escolhera se não pela impossibilidade de exercer o “magistério”, pois, conforme ressalta nas palavras que coloca no trabalho de apresentação de Marta “[...].Nascera mesmo para Professora  Primária, embora achasse ser o complemento dessa honrosa profissão”. 

Para justificar a a opção de contar a sua história de professora primária como o fez, trata de apresentar aquela que será concitada a ouvir o relato, de modo a destoar um pouco de Marta, tanto nos traços corporais, quanto no que tange ao desapontamento com a profissão e/ou com a situação em que está vivenciando no exercício do magistério. Observe-se o modo como Feijó apresenta a interlocutora:

“A outra, Maria Clara — Clarinha na intimidade —, loura natural, bonita, garota de uns 20 anos se muito, descendia de família numerosa, abastada, nortista, mas radicada no Rio fazia muito tempo, sendo ela, carioca de nascimento e caçula na família.  Magra.  Elegante. Inteligente. Amadurecida e, o que é mais importante: de uma cultura e talento muito grandes para uma jovem que, numa supercivilizada metrópole, poderia não se interessar, como o fazia, pelas coisas do espírito.  Estudiosa e sensata.  Completa a garota.  Gostava de festas, mas se não as freqüentasse, não ligava. Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito” Gênero de primeira necessidade” não os considerava.” (Feijó, 1978, p. 19).

 

Em contrapartida ao perfil de Marta que se realizara como “toda Mulher” ao desposar “[...] um colega muito culto, bacharel em Direito, escritor e, sobretudo, muito a amava”, Maria Clara não via nisto um objetivo a perseguir e/ou alcançar. A literata constrói uma personagem de tipo mais contemporâneo ao momento que elabora o seu narrar dos fatos, informando ao leitor que Clarinha jovem e culta, ao contrário de grande parte das suas coetâneas, se interessa pelas “coisas do espírito”. Porém, no campo dos afetos “[...]. Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito [...]”.

Passando para as mãos de Marta a tarefa de principiar a conversa com Maria Clara, Feijó ainda apresenta algumas dificuldades para se ausentar da narrativa, visto se fazer confundir com a primeira, enquanto se esforça para realizar a transição. Assim segue o diálogo entre as duas jovens amigas:

 

“— Então, Clarinha, como vai?  Que me conta essa mocidade brejeira e esvoaçante que você traz dentro de si, distribuindo, por onde anda, beleza e simpatia? O coração, esse pássaro feliz, vaporoso?  A profissão, como está?  São tantas as perguntas, que se perdem na conta...” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

Note o leitor que ela já propiciou a resposta ao indagar de Marta, quando mais abaixo descreve as duas banhistas que, propositalmente foi discutida algumas linhas acima. Mas, observe-se a resposta de Maria Clara:

 

“— Ah! minha cara amiga, nem tanto assim a mocidade é brejeira nem distribui beleza, vida, alegria, como você pensa.  Nem tanto!  O coração?  Feliz só na aparência...  Aéreo, vazio é como vive. Embarcação segura ainda não aportou em terra firme, trazendo-lhe o dono e senhor absoluto... Continua disposto a esperar por muito tempo ainda.  Não palpita.  Funciona apenas como o principal órgão da circulação.  E o resto, a nova profissão, por exemplo, quase acabada, destruída, extinta pelas vicissitudes e desenganos.  Não fosse o grande ideal que sempre acalentei pela mesma e tudo estaria terminado, desfeito, morto.  Mudaria logo de vida.  Sem saudades.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

O que Feijó pretende é, sem dúvidas, construir o ambiente propício para que ela possa assentar o seu rememorar. Ela, na busca por encontrar terreno favorável para a sua construção cênica, como que tateia em busca de assegurar que elaborará uma estrutura narrativa que ao mesmo tempo seja atraente e coerente, na medida em que se trata de uma construção memorialística – embora, como já se disse, ela não use esta expressão – e, como este escrevedor suspeita, mesmo uma construção autobiográfica, sem contudo assumir claramente um tal propósito – conforme também já foi salientado em arrazoados anteriores.

É assim que ela conduz os primeiros passos da interlocução entre as duas professoras, no sentido da demonstração de surpresa de Marta, diante da reação de Clara às suas questões e afirmativas:

 

“— Como assim? — a surpresa sem poder esconder-se no rosto de   Marta.    Você quase recém-formada, minha querida?  Não. Não pode ser possível. Por que esse desânimo? Tão jovem, tão inteligente e cheia de ideal como sempre a conheci?!” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

E Feijó toma de volta para si a condução da narrativa, talvez para explicar ao leitor que “a outra dá de ombros, parecendo ouvir aereamente as palavras  da amiga e sorriso  de  desdém ensombra lhe  o  semblante  jovem,  arranja a linda barraca multicor, de Marta, porque  Clara — este seu nome — pouco trazia para o banho de mar. Relativamente longe, na Rua e Sarros, zona Norte, residia”. 

 

Desta forma, Feijó, ainda na condução da narrativa, procura aplainar o tablado sobre o qual Marta se assentará para desfiar os muitos rememorares com os quais procurará convencer Maria Clara de que o seu desapontamento com o exercício professoral pode ser mitigado e até mesmo reconsiderado, caso tenha êxito em seu intento de reanimar os já quase naufragados ideais daquela jovem, que foram construídos em torno do “sonho” de fazer carreira no magistério. Assim, mediante a escuta das vicissitudes de uma “professora primária”, que, tal qual ela, também tivera o mesmo “sonho” e enfrentara os mesmos labores seus, em terreno mais árido e árduo de uma cidade do interior, Marta acredita poder prover o remédio para tão precoce desalento.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – 27 de setembro de 2020.


domingo, 20 de setembro de 2020

Histórias e memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó - XVIII

Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria Feijó – XVIII – Metamorfoseando-se para ressignificar as suas memórias.

 

Com a pretensão de continuar o trabalho de apreensão da memória da urbe alagoinhense, retoma-se a produção literária de Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001), sobretudo o seu alentado “Pelos Caminhos da Vida ... de uma Professora Primária”, publicado em 1978, buscando perscrutar em sua narrativa os elementos constitutivos da vida social, econômica, política e cultural da cidade, “ainda menina moça”, conforme ela expressa nas primeiras páginas da referida obra, no sentido de identificar os “ires e vires” daquela Alagoinhas pujante das décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, quase todas elas vividas por Feijó na sua Alagoinhas, enquanto nascia, crescia, se instruía e se fazia professora primária e, um pouco mais tarde, dava o salto na direção da formação em biblioteconomia.

No entanto, é preciso salientar, de passagem, que se faz necessário o desenvolvimento de mais trabalhos com intuito de manter viva a história, fazendo-a ser percebida em sua importância para a sua compreensão, na medida em que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, “[...]. Essa importância sempre foi reconhecida  como a da rememoração, da retomada salvadora pela palavra de um  passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento. Essa empresa de rememoração já determina, na aurora do pensamento grego, a tarefa do poeta e, mais tarde, a do historiador. [...]” (GAGNEBIN, 2013, p. 03). Ainda recorre-se a GAGNEBIN para chamar a atenção do leitor, no sentido de o alertar para o fato de que “[...]. Hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa, seja para” resguardar alguma coisa da morte” (Gide) dentro da nossa frágil existência humana” (Idem, 2013, p. 03). Já deve estar evidente para o leitor que a obra que aqui se pretende desenvolver enquanto arrazoados analíticos, por certo, não foge ao que se expôs acima e, em concordância com GAGNEBIN:

“[...]. Se podemos assim ler as histórias que a humanidade se conta a si mesma como o fluxo constitutivo da memória  e, portanto, de sua identidade, nem por isso o próprio movimento da  narração deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria não  só uma falha, um ”branco” de memória, mas também uma atividade  que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude  necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”. (GAGNEBIN, 2013, p. 03).

 

Depois de algumas páginas dedicadas ao debate em torno dos prefácios, da advertência e da dedicatória, passa-se a analisar o texto construído por Feijó, por meio do qual ela dá expressão a seus sentimentos e dá existência material ao seu “rememorar”. É com a sua verve lírica que Feijó inicia o processo de metamorfosear-se, a fim de construir o desfile de suas narrativas. Por meio de uma descrição minuciosa de “lugares”, ela procura preparar o leitor para receber os personagens por ela criados com o intuito de desenvolver a sua exposição de “tramas textuais que habilmente tece e entretece”,, através dos quais ela desenrolará o seu corolário de reminiscências, travestido de fatos apenas romanceados. Assim ela descreve o cenário no qual insere as duas jovens que conduzirão a narrativa dali por diante: “Manhã luminosa de verão. Luz e cor. Rosa feita de mar e sol corola refletida para o azul do céu, Copacabana, de brancas espumas debruçadas no moreno da areia, se retratava naquela domingueira manhã de janeiro”.

Feijó está ao mesmo tempo dizendo que a conversa entre as duas professoras se dá no verão carioca, em um dos lugares mais badalados da antiga capital política do Brasil, mas, ainda fervilhante centro cultural do País. Ela prossegue em sua descrição poética do ponto de partida para uma longa prosa:

“Orgia de cores invade o espaço, e a praia, regurgitante, toma feição característica de pagode chinês no colorido das barracas mansamente acariciadas pelo vento, abrigando no seu leito, corpos besuntados de óleo e dourados de sol, no semicírculo do Leme ao Forte. Tudo é mocidade, vibração, euforia, vida, contas de vários matizes engastadas no enorme e bonito colar de Copacabana, ornando fidalgamente o colo macio da baía de Guanabara... Descanso do corpo e” relax” do espírito procuram tomar lugar ao longo da praia. Almas no aconchego das ondas, e problemas atiçados a distância, no emaranhado do mar, velas soltas largando pano à mercê dos ventos, indo perder-se nos longes da paisagem do horizonte limítrofe...” (FEIJÓ, 1978, P. 17).

 Na mesma toada lírica, Feijó pinta quase a um só tempo, o quadro humano e natural daquela Copacabana que tanto parece inebriar lhe os sentidos:

 

“Gaivotas, pintalgando o mar, bailarinas do azul, flutuam no espaço, brincando de esconde-esconde com o mistério das águas. 

 

“Montanhas em cadeia, sentinelas  do mar, num imenso cordão  cinza-esverdeado — apenas com um claro bem amplo, perto do Forte  pelo qual são avistados mar e céu, simulando grande porta aberta a  dar passagem e acolhida aos que chegam — emolduram a baía de  Guanabara como belíssimo  fundo de cartão-postal,  oferecendo  aos  olhos sequiosos de beleza, momentos de profundo êxtase e arrebatamento em mosaicos cintilantes. 

 

Corpos femininos, distribuindo alegria, exibem-se em minúsculos biquinis, cada qual procurando definir, de forma acentuadamente marcante, os dotes físicos doados em profusão pela natureza nem sempre muito pródiga para todos...” (1978, p.  17).

 

Depois de discretamente apontar para algumas desigualdades entre corpos, natureza e beleza, ela arremata as descrições do “cenário da História” que está prestes a começar:

 

“E olhares masculinos, em passarela, visivelmente extasiados, procuram disputar o instante de encantamento naquela extravagância de beleza espalhada pela manhã de sol... A paisagem humana desafia a paisagem divina... 

 

“Grupos alegres se formam, reunindo-se em buquês de várias tonalidades e, em torno dos biquinis coloridos, olhos ávidos voejam como se fossem mariposas entontecidas ao redor de feixes de luz... (FEIJÓ, 1978, p.17).

 

Todo este lirismo é uma forma da autora procurar construir para os leitores, aquelas imagens prenhes de elementos já inseridos no imaginário deles, na medida em que os meios de comunicação já difundiam aquele ideal de um Rio de Janeiro que, conforme dissera Gilberto Gil alguns anos antes “Continua lindo”, “continua sendo”. Tais construções eram impulsionadas pelas músicas, pelas revistas, pelas novelas televisivas, então em grande expansão. E, a pedra de toque daquela imagem, era, sem sombra de dúvidas, Copacabana, aquela mesma acima descrita por Feijó.

 

Procurando pouco a pouco sair da narrativa, ela prossegue no intento de metamorfosear-se, com o fito de apresentar duas jovens que, dali por diante, levarão a termo o processo narrativo. Algumas linhas após as descrições que faz do espaço onde, conforme pretende, se dará o “diálogo” entre as narradoras, especialmente criadas para executar aquela tarefa, Feijó afirma que:

 

“O contorno marinho desse quadro de verão serve de cenário ao encontro casual de duas amigas que, fazia algum tempo, viviam afastadas pelas atribulações do cotidiano. Em mútua demonstração de contentamento as duas bendizem o acaso:

 

— Marta, há quanto tempo não a encontrava! (P. 17).

Como vai se perceber mais adiante, sendo Marta aquela que conduzirá o “diálogo”, pode-se inferir ser ela a o resultado do esforço da literata alagoinhense por se metamorfosear para poder dar curso ao seu rememorar. Tanto assim o é, que se percebe na resposta dada por Marta a amiga, alguns elementos constitutivos do modo de ser “Maria Feijó.

— Verdade, Clarinha, nem parecemos amigas!  É a vida agitada deste Rio de Janeiro que nos tem distanciado um pouco, mas... nenhuma nuvem penetra no céu de nossa amizade e, assim, é um enorme prazer revê-la nesta deslumbrante manhã.  Vejamos ser esta a razão porque o sol se abriu num magnífico sorriso. Há quanto tempo não víamos "um domingo assim, de um sol assim..." (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

e a réplica de Clara, confirma a suspeita:

 

— Como sempre, você e sua poesia, sonhadora eterna, habitante das nuvens!... (Idem, Ibidem).

 

E assim, crê-se que os leitores já estejam mais ou menos prontos para enveredar “pelos caminhos de uma professora primária”, visto já conhecerem alguns dos processos narrativos utilizados pela sua autora, com o fito de contar a história de Luísa Peixoto, que, segundo Feijó, é a história de muitas professoras como elas.

 

Professor Jorge Damasceno

domingo, 6 de setembro de 2020

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE ALAGOINHAS, PELOS ESCRITOS DE MARIA FEIJÓ - XVII

Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria Feijó – XVII – Dedicando a obra – os nomes ainda são os reais.

 

Conforme salientado no arrazoado anterior, com este e os próximos escritos, se pretende indicar algumas pistas que apontem para o caráter memorialístico – e talvez autobiográfico – do alentado volume publicado em 1978, na cidade do Rio de Janeiro, cujo objetivo declarado de sua autora, era o de oferecer aos alagoinhenses  “[...], o retrato, talvez, sem retoque”, da sua cidade quando ainda “menina-moça”, como se pode ler na página que antecede à dedicatória:

(... este livro, ALAGOINHAS, é o retrato, talvez, sem retoque, tirado por mim, na sua terna e doce fase de MENINA-MOÇA, genuinamente provinciana e bela. O de AGORA, com ares de metrópole e requintes de mulher civilizada creio, eu não o saiba fazer. Outros filhos seus de melhores credenciais, poderão pintá-lo com todos os matizes da ATUALIDADE. Fiz neste o que pude, melhor não podia, embora para mim tivesse sido o IDEAL...)” (FEIJÓ, 1978, p. 13).

Como se pode observar na transcrição feita da página de epígrafe, há um esforço da autora no sentido de legitimar as páginas do seu denso texto literário e/ou memorialístico, com o objetivo de que o leitor perceba um desfilar de “verdades”, embora romanceadas, indicando que a sua narrativa procurará não falsear os eventos ali expostos. Daí a metáfora do “retrato quase sem retoques”, que, em outras palavras, no livro ela procuraria apresentar os eventos como de fato eles foram, sem a interferência de sua narradora, como se ao tirar o tal “retrato sem retoques”, a retratista não quisesse ou não pudesse intervir nos traços ali apreendidos, de modo a alterar a fisionomia da retratada, ao ponto de fazê-la parecer diferente do que realmente era. .

Neste sentido, ao discorrer sobre uma outra memorialista alagoinhense, foi dito em arrazoado publicado em 2012, na revista eletrônica “Veredas da História”, que a então nonagenária Joanita Cunha “[...],por meio dos seus escritos, traça em seu descortinar de lembranças, um “retrato” da cidade, este um tanto mais retocado, embora não deixando de aparecer ao fundo, algum “defeito” ou “sujeira” na imagem, que se queria bonita [...][1], visto que, ao que parece, em suas memórias registradas nos “Traços de ontem”, Cunha pretenderia construir uma “imagem” da cidade onde nascera, crescera e tivera a sua primeira filha, “[...], como que completa, o que eventualmente viesse a faltar na fotografia de Alagoinhas tirada por Feijó, [...]”[2],.

Mas, ao que tudo faz crer, para Carlos Nássaro da Paixão, em dissertação defendida em 2009, nenhuma das duas escritoras, cujos trabalhos ele utilizou para construir o seu arrazoado, foram plenamente exitosas em seus intentos[3]. Buscando construir sua análise em assertiva apreendida de François Dosse, Nássaro constata que

“As diferentes cidades narradas pelas duas escritoras indicam que cada indivíduo produz imagens diferentes para si e que estas criam uma competição de sentidos para o urbano. Os diferentes caminhos descritos por Joanita da Cunha e Maria Feijó ocorrem levando em consideração que “a cidade é o campo fechado de uma verdadeira guerra de narrativas, das quais cada um de nós é o portador de uma memória específica e cuja tessitura constitui a densidade histórica de cada cidade”[4].

 

 E, um pouco mais adiante, Araújo da Paixão crava:” Alagoinhas não é aquela apresentada por Joanita e muito menos a descrita por Feijó. Em sua complexidade a cidade não pode ser presa em uma única descrição, mas nas múltiplas imagens produzidas pelos seus diferentes caminhantes”[5].

No entanto, cabe salientar que, a obra de Maria Feijó sobre a qual Araújo da Paixão se debruça, não é a que aqui se pretende examinar. Ali, a obra lida fora “Alecrim do Tabuleiro: Crônicas evocativas de Alagoinhas”, de 1972, com a qual ele confrontou as “evocações” de Joanita Cunha. Talvez, ele tivesse outra impressão, caso a obra a examinar fosse “Pelos Caminhos da vida ... de uma professora Primária”, de 1978. Nela, crê este escrevedor, Feijó produz uma obra memorialística, embora não reivindique esta condição, mas, ao contrário, ela procura – sem sucesso, evidentemente – sair da cena, mediante a utilização do artifício de uma “narradora”, a partir da qual, alimenta livremente o seu rememorar, claro que, com todos os limites inerentes ao trabalho de “trazer o passado para o presente”, como se pode encontrar no debate teórico desenvolvido por Araújo da Paixão, na introdução e no primeiro capítulo do seu já referenciado texto dissertativo.

Entretanto, antes de enveredar “pelos caminhos da vida de uma professora primária” que Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001) apresenta para os seus leitores, faz-se necessário gastar um pouco mais de tempo nas suas páginas iniciais, aquelas em que a escritora ainda se apresenta como sendo ela mesma. Nelas, pode-se observar o descortinar de um mundo de saudades, partindo de uma camada espessa de memórias. Ainda ali, os nomes mencionados são reais, de pessoas que passaram pela sua vida, em diversas de suas etapas. No entanto, o leitor atento, encontrará ao longo da narrativa, algumas ou quase todas elas, já despojadas dos seus nomes e arquétipos reais, uma vez que a literata os vai camuflar, do mesmo modo em que ela própria se camuflará, para poder ter a liberdade de narrar.

Assim, os seus genitores – ele ainda vivo à época do surgimento do texto – recebem referências de ternura, gratidão e apreço, daquelas páginas de dedicatória. Abrindo-as, Feijó assim se refere: “A meu PAI querido, razão inconteste do meu viver no sorriso ameno da compreensão em todas as minhas lutas” (Feijó, 1978, P. 15). Mais adiante, ela escreve na dedicatória, uma evocação à sua genitora, dizendo que “A memória de minha MÃE, cujo nome é uma constante nos meus dias” (Feijó, 1978, p. 16).

Ainda ali, ela evoca os nomes do marido e dos quatro irmãos, que são frutos do segundo casamento do seu pai, destacando duas dentre eles, para salientar lhes os precoces dotes literários e poéticos.

Um outro feixe de nomes evocados pela literata alagoinhense, requer dos leitores um pouco mais de atenção, pois, eles aparecem ainda com os seus nomes de batismos, classificados entre aqueles que tiveram alguma influência sobre ela, tanto do ponto de vista da formação profissional e literária, quanto do ponto de vista da propiciação de oportunidades que lhe permitiram alçar voos mais audaciosos. Logo após mencionar o pai, sem utilizar o seu nome, vem o marido, este sim, com o nome, desta vez, sem informar o grau de parentesco. Assim, ela dedica “Para GOARACY, estímulo de todo dia, companheiro certo na força que me reergue das intempéries da vida”. Depois de dedicar aos seus “quatro irmãozinhos menores”, Feijó aponta a que a obra também se destina “À Prof. AGOSTINHA PINTO DE CARVALHO, aquela GRANDE amiga-INCENTIVO de minhas incertezas nos altos e baixos do destino”. Na mesma página, a autora faz menção ao jornalista e político com atuação em Alagoinhas e seu coetâneo João Rodrigues Nou, salientando “[...], que talvez nem saiba, mas foi quem me procurou apontar o roteiro para novas investidas, quando palmilhávamos o solo interiorano”[6]. Tendo homenageado ex-alunos, evocado saudades com um tom de uma certa frustração, termina esta primeira página de vocações de pessoas reais, dizendo que “Enfim... para TODAS as vozes que me incentivaram a pisar o MARAVILHOSO MUNDO LITERÁRIO” (FEIJÓ, 1978, p. 15).

É assim que, ao longo da segunda página escrita para dedicar e/ou evocar pessoas ou memórias de pessoas, Feijó faz menção e, insere algumas observações, a nomes que, de alguma maneira, desempenharam papel de notória relevância no seu caminhar e/ou exerceram influências diversas no processo de sua formação pessoal, cultural, profissional e/ou nos seus modos de ser, pensar, agir, refletir, sentir, questionar, responder e, sobretudo, construir os seus juízos de valor. Não é sem razão que, logo após as lembranças dos pais, dos irmãos mais novos, dos colegas e dos alunos que passaram pelas suas mãos professorais, a primeira menção feita é “A Dr. ERNESTO SIMÕES FILHO, o DIGNÍSSIMO MINISTRO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (do passado), alto espírito de JUSTIÇA, responsável pelo meu descortínio a novos horizontes”[7](FEIJÓ, 1978, p. 16).Ela segue em suas evocações, desta vez fazendo referência à memória do “Prof. ALCINDO DE CAMARGO, o MESTRE INESQUECÍVEL, CONSTRUTOR do ENSINO NORMAL em ALAGOINHAS, orientador ainda de minha trajetória como uma chama a iluminar caminhos”[8].

Na mesma página, Feijó dedica “As minhas PROFESSORAS PRIMARIAS: NERINA CARVALHO, VIRGÍNIA VILLA FLOR e SUZANA BARRETO, que alicerçaram o meu mundo brincando com o alfabeto”. E conclui destinando a obra “A todos os meus saudosos professores do CURSO NORMAL, tendo ainda como seus legítimos representantes: Dr. PINTO DE AGUIAR, Profa. NORMA PAIVA DE CARVALHO e SENADOR JOSAFÁ AZEVEDO” (FEIJÓ, 1978, p. 16).

No entanto, alguns dos nomes evocados nestas primeiras páginas, como já se salientou, podem aparecer ao longo da leitura, como sendo os de personagens por ela criados, precisamente para permitir o livre curso de sua narrativa.

 



[1] DAMASCENO, J. J. A. ESCRITA DA HISTÓRIA DA CIDADE MEMÓRIAS E NARRATIVAS: ALAGOINHAS COMO OBJETO DE ATENTOS VIAJANTES E MEMORIALISTAS (1889-1960). Veredas

[2] SANTOS, Joanita Cunha dos. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987.

[3] PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. TRAÇOS DA CIDADE DE ALAGOINHAS: MEMÓRIA, POLÍTICA E IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO (1930-1949). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus – BA.

[4] PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. Op. Cit. P.37.

[5] Idem, Ibidem.

[6] João Rodrigues Nou (1918-). Trata-se de um jornalista e político com forte atuação em Alagoinhas, tendo protagonizado um evento político controverso e ainda muito pouco estudado, que foi uma refrega no plenário da câmara Municipal, que resultou na morte do filho/secretário do então prefeito, além do ferimento de três parlamentares, em maio de 1956.

[7] Trata-se do político e jornalista baiano Ernesto da Silva Freitas Simões Filho (1886-1957), que ocupa o ministério da educação e saúde, no governo Getúlio Vargas, entre 1951-1953.

[8] Alcindo de Camargo (1886-1950) mato-grossense radicado em Alagoinhas, onde foi professor.