Histórias
e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó – XIX – cumprimentos,
descrições e primeiras trocas de impressões : a literata se transmuta em Marta,
mas ainda conduz a fala das duas amigas professoras.
No
arrazoado anterior, o leitor foi apresentado aos dois personagens que Maria
Feijó de Souza criou, especialmente para que pela intermediação deles, o seu
rememorar possa ser trazido à lume, na medida em que ela própria não quer ser
identificada diretamente com o que irá rememorar. É um artefato narrativo que
autora utiliza para suas reminiscências poderem fluir, sem que venham a ferir suscetibilidades.
Tais memórias entremeadas de elaborações ficcionais, são, por assim dizer,
memórias vividas a partir de interações coletivas na sociedade alagoinhense,
localizada em um espaço de convivência daquela que relembra e em um tempo por
ela vivido, no curso da história de um cotidiano perpassado por diversos
conjuntos de pessoas, das mais diversas classes, visto aquela sociedade já
estar demarcada pelas diferenças de pertencimento social, econômico, étnico e
lugar de moradia.
Assim,
conforme formula o sociólogo francês Maurice Halbwach (1877-1945), Feijó é a
pessoa que lembra; mas um tal lembrar é produto da coletividade em que ela
esteve inserida. Diz ele:
“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um
conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do
grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as
mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. [...], cada
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto
de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo
as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem
todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa
diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de
natureza social”. (HALBWACH, 2006, p. 69).
Portanto,
Feijó é o “indivíduo que lembra”, a partir dos diversos elementos acumulados no
transcurso de sua existência, associados a outros transcursos existenciais que
com ela interagiram coletivamente, quer sejam suas colegas de curso ginasial, normal
ou de atuação professoral, quer sejam os seus alunos, amigos, e as demais pessoas
que com ela conviveram e socialmente interagiram. Tais conjuntos de lembranças
vão sendo armazenados ao longo do tempo e ancorados no porto localizado no
espaço chamado memória. Dali, são extraídos os rememorares materializados em
suas obras literárias, sobretudo, aquelas prosas publicadas entre 1972 e 1978,
além dos contos e poesias tornadas públicas em todo o seu percurso, sendo
Alagoinhas, sua cidade natal, quase sempre o fio condutor de todo o seu mourejar
no mundo das letras. Crê-se que aqui caberia a seguinte passagem extraída da já mencionada
obra de Maurice Halbwachs, que diz “[...].A sucessão de lembranças,
mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em
nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas
transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto”
(HALBWACH, 2006: P. 69).
Neste ponto, retoma-se a conversa das duas amigas professoras
que se reencontram em Copacabana, depois de algum tempo sem se esbarrarem em
algum outro lugar, sem entabularem alguma conversa por outro qualquer meio – já
existia o telefone; mas, ele sequer é mencionado como possibilidade de alguma
troca de notícias entre as duas. Maria Feijó teima em não se retirar do
processo narrativo, pois ainda faz o trabalho de transição entre ela mesma e a
personagem Marta, que acaba de criar para puxar o fio da história que constrói
em torno de Maria Luísa Peixoto e o conduzir até o seu desfecho. É assim que
ela descreve o estado de espírito das suas “amigas” que há algum tempo residiam
apenas na sua criação literária: “Continuam sorrindo numa alegria colegial,
realmente parecendo sincera, estando ambas felizes, enquanto os
convencionais beijinhos estalam em cada face oferecida.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).
A literata se esmera em descrever a personagem
condutora da narrativa, mas não consegue esconder os seus próprios traços
pessoais, profissionais e afetivos. Cada componente da descrição que ela faz de
Marta, aponta para ela mesma. Certamente isto não é acidental, uma vez que a
autora teria tido inúmeras oportunidades de se retirar do texto, caso assim o
quisesse. Acontece que ela não o quer, não o pode, se diria. Sua têmpera de
narradora não o permitiria. Siga o leitor os contornos que Feijó esboça para
apresentar Marta. Ela começa por indicar que as duas teriam alguma semelhança –
saíram ambas da mesma criação literária -, distanciando-se apenas no tempo já
vivido, visto que” embora
ambas fossem distanciadas em idade, tornaram-se amigas pela semelhança da
profissão”.
E prossegue:
“Marta, na realidade, contava 38 a
40 anos. Mais ou menos. Casada, sem filhos, Professora Primária formada por
outro Estado da União, e por este motivo jamais pôde ensinar — seu maior sonho
— no Rio de Janeiro, porque para aqui viera quando ainda Distrito Federal. Tudo fez, tentando lecionar, mas inúteis
todos os esforços. Ingressara, então, na Faculdade de Filosofia, fazendo
Jornalismo. Como sempre gostasse de escrever,
superou o sonho não realizado de exercer o magistério carioca, ao tempo em que,
militando na imprensa, desposou um colega muito culto, bacharel em Direito,
escritor e, sobretudo, muito a amava”. (FEIJÓ, 1978, p.18).
Ainda
descrevendo Marta, Feijó traça os seus contornos e dotes de mulher, cujo corpo ainda
se não deixou vencer pelo correr implacável dos anos:
“Morena, alta, esguia, trajava
nessa manhã luminosa de domingo. maiô
preto de uma peça — embora moderna, não usava o duas peças e biquini, ainda
pior — que mais lhe delineava o corpo bem feito, não aparentando, nem de longe,
a idade real. Se muito, uns 32 anos
demonstrava! Eterno segredo de juventude trazia-lhe sorrisos diante da vida.
Muito conversada, descontraída, acompanhava o marido, quando podia, em viagens de
estudo, recreio, congressos, encontros, seminários, conferências etc. Porém, lá no íntimo, ao Paulo — seu marido —
sempre confessava que se sentia, às vezes, não propriamente desajustada dentro
da profissão que desempenhava, mas lhe faltando” qualquer coisa”. Nascera mesmo
para Professora Primária, embora achasse ser o complemento dessa honrosa
profissão. realmente, o jornalismo. As
duas se fundiam na verdadeira, por ela ambicionada. Enfim, nem tudo é como se
deseja e, tal o espírito de adaptação que a envolvia, conformava-se, porque
encontrara na vida, sua outra metade, sonho de toda mulher, considerando isto,
grande dádiva dos Céus. E, assim, se dava por muito feliz. Realizada” (FEIJÓ,
1978, p. 19).
Parece
claro que o perfil acima construído é mesmo da literata alagoinhense,” [...]. Casada,
sem filhos, Professora Primária formada
por outro Estado da União,[...]”, até mesmo no fato de atuar em um mister que,
por assim dizer, não escolhera se não pela impossibilidade de exercer o “magistério”,
pois, conforme ressalta nas palavras que coloca no trabalho de apresentação de Marta
“[...].Nascera
mesmo para Professora Primária, embora
achasse ser o complemento dessa honrosa profissão”.
Para
justificar a a opção de contar a sua história de professora primária como o fez,
trata de apresentar aquela que será concitada a ouvir o relato, de modo a destoar
um pouco de Marta, tanto nos traços corporais, quanto no que tange ao
desapontamento com a profissão e/ou com a situação em que está vivenciando no
exercício do magistério. Observe-se o modo como Feijó apresenta a interlocutora:
“A outra, Maria Clara — Clarinha na
intimidade —, loura natural, bonita, garota de uns 20 anos se muito, descendia
de família numerosa, abastada, nortista, mas radicada no Rio fazia muito tempo,
sendo ela, carioca de nascimento e caçula na família. Magra.
Elegante. Inteligente. Amadurecida e, o que é mais importante: de uma
cultura e talento muito grandes para uma jovem que, numa supercivilizada metrópole,
poderia não se interessar, como o fazia, pelas coisas do espírito. Estudiosa e sensata. Completa a garota. Gostava de festas, mas se não as freqüentasse,
não ligava. Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito”
Gênero de primeira necessidade” não os considerava.” (Feijó, 1978, p. 19).
Em
contrapartida ao perfil de Marta que se realizara como “toda Mulher” ao
desposar “[...] um colega muito culto, bacharel em
Direito, escritor e, sobretudo, muito a amava”, Maria Clara não via nisto um
objetivo a perseguir e/ou alcançar. A literata constrói uma personagem de tipo
mais contemporâneo ao momento que elabora o seu narrar dos fatos, informando ao
leitor que Clarinha jovem e culta, ao contrário de grande parte das suas
coetâneas, se interessa pelas “coisas do espírito”. Porém, no campo dos afetos “[...].
Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito [...]”.
Passando para as mãos de Marta a tarefa de principiar
a conversa com Maria Clara, Feijó ainda apresenta algumas dificuldades para se
ausentar da narrativa, visto se fazer confundir com a primeira, enquanto se
esforça para realizar a transição. Assim segue o diálogo entre as duas jovens amigas:
“— Então, Clarinha, como vai? Que me conta essa mocidade brejeira e
esvoaçante que você traz dentro de si, distribuindo, por onde anda, beleza e
simpatia? O coração, esse pássaro feliz, vaporoso? A profissão, como está? São tantas as perguntas, que se perdem na
conta...” (FEIJÓ, 1978, p. 18).
Note o leitor que ela já propiciou
a resposta ao indagar de Marta, quando mais abaixo descreve as duas banhistas
que, propositalmente foi discutida algumas linhas acima. Mas, observe-se a
resposta de Maria Clara:
“— Ah! minha cara amiga, nem tanto
assim a mocidade é brejeira nem distribui beleza, vida, alegria, como você
pensa. Nem tanto! O coração?
Feliz só na aparência... Aéreo, vazio
é como vive. Embarcação
segura ainda não aportou em terra firme, trazendo-lhe o dono e senhor
absoluto... Continua disposto a esperar por muito tempo ainda. Não palpita.
Funciona apenas como o principal órgão da circulação. E o resto, a nova profissão, por exemplo,
quase acabada, destruída, extinta pelas vicissitudes e desenganos. Não fosse o grande ideal que sempre acalentei
pela mesma e tudo estaria terminado, desfeito, morto. Mudaria logo de vida. Sem saudades.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).
O que Feijó pretende é, sem
dúvidas, construir o ambiente propício para que ela possa assentar o seu
rememorar. Ela, na busca por encontrar terreno favorável para a sua construção
cênica, como que tateia em busca de assegurar que elaborará uma estrutura
narrativa que ao mesmo tempo seja atraente e coerente, na medida em que se
trata de uma construção memorialística – embora, como já se disse, ela não use
esta expressão – e, como este escrevedor suspeita, mesmo uma construção
autobiográfica, sem contudo assumir claramente um tal propósito – conforme também
já foi salientado em arrazoados anteriores.
É assim que ela conduz os primeiros
passos da interlocução entre as duas professoras, no sentido da demonstração de surpresa
de Marta, diante da reação de Clara às suas questões e afirmativas:
“— Como assim? — a surpresa sem
poder esconder-se no
rosto de Marta. — Você
quase recém-formada, minha querida? Não.
Não pode ser possível. Por que esse desânimo? Tão jovem, tão inteligente e
cheia de ideal como sempre a conheci?!” (FEIJÓ, 1978, p. 18).
E Feijó toma de volta para si a
condução da narrativa, talvez para explicar ao leitor que “a outra dá de
ombros, parecendo ouvir aereamente as palavras da amiga e sorriso de
desdém ensombra lhe o semblante
jovem, arranja a linda barraca
multicor, de Marta, porque Clara —
este seu nome — pouco trazia para o banho de mar. Relativamente longe, na
Rua e Sarros, zona Norte, residia”.
Desta
forma, Feijó, ainda na condução da narrativa, procura aplainar o tablado sobre
o qual Marta se assentará para desfiar os muitos rememorares com os quais
procurará convencer Maria Clara de que o seu desapontamento com o exercício professoral
pode ser mitigado e até mesmo reconsiderado, caso tenha êxito em seu intento de
reanimar os já quase naufragados ideais daquela jovem, que foram construídos em
torno do “sonho” de fazer carreira no magistério. Assim, mediante a escuta das
vicissitudes de uma “professora primária”, que, tal qual ela, também tivera o
mesmo “sonho” e enfrentara os mesmos labores seus, em terreno mais árido e árduo
de uma cidade do interior, Marta acredita poder prover o remédio para tão
precoce desalento.
Professor
José Jorge Andrade Damasceno – 27 de setembro de 2020.