Um escrevedor volta a falar de memória musical – XIII: com o
rádio no pé do ouvido – Oton Carlos “Sweet Memories”.
Conforme já sabem os leitores habituados a este espaço, a escrita
da “História” por meio da Memória vem ganhando espaço nos meios acadêmicos,
mormente no campo das ciências humanas, uma vez que um crescente número de
pesquisadores tem se interessado em desenvolver pesquisas neste campo, sendo
cada vez mais abundantes e promissores, os resultados de estudos por eles
entabulados. As publicações de bons trabalhos de pesquisadores envolvidos nas
diversas áreas o saber – sobretudo no campo da história -, pode ser entendido
como um sintoma do esforço que vem sendo feito, com o fito de dar maior
visibilidade a protagonistas “anônimos da história” que, de outra maneira, não
teria sua voz ouvida, nem suas trajetórias analisadas, nem mesmo trazidas ao
público leitor, não fora aqueles que mergulharam na tarefa de apreender e
refletir sobre vidas e cotidianos tão pouco visíveis pelo campo acadêmico e/ou
editorial.
Do mesmo modo, já se disse aqui, que a memória é constituída
a partir de uma seleção do que lembrar, do que silenciar, implicando em
escolhas permeadas por sentimentos de pertencimento e, por vezes, apresentando
ligeiros lapsos – mas, nem sempre esquecimento/apagamento, no sentido
fisiológico da expressão -, indicando movimentos pendulares, quase nunca cronologicamente
estruturados.
É também cediço, que este escrevedor teve no rádio o meio a
partir do qual estabelecia contato com o mundo, na medida que os demais meios
de comunicação, cada um conforme as suas especificidades, apresentava alguma
barreira que o privava de aceder ao seu conteúdo. Assim, por meio do rádio, ele
era informado, instruído; entretinha-se e recebia cultura e, ampliava o leque
de conhecimentos propedêuticos.
No final da década de 1990,quando este escrevente residira
em Salvador, ele conhecera pessoalmente um locutor a quem ouvira realizar
entrevistas e apresentar programas de excelente conteúdo informativo e
cultural, que, saliente-se, lhe foram deveras utilíssimos para a sua conformação intelectual e para o aprimoramento de sua leitura e apreensão do mundo, visto que, como já se
asseverou, o seu acesso aos meios impressos de informação e formação, era quase
inteiramente vedado. Aquele locutor era Oton Carlos: homem culto, dono de uma
voz perfeita para o rádio; profissional amplamente reconhecido entre os colegas,
mesmo os seus concorrentes de outros prefixos.
Para estranhamento de quem ora vos escreve, repentinamente aquele
radialista desaparecera das suas audições de tardes ricamente passadas na
companhia dos seus entrevistados, sem faltar a boa música e o noticiário, sempre
nos horários aprazados: aos 25 minutos e aos 55 minutos de cada uma das horas de
duração do programa.
Pouco antes daquele único contato pessoal entre o antigo ouvinte
e o locutor, ficara sabendo que, a despeito da grande capacidade, perspicácia e
inteligência de Oto, fora ele quase descartado do meio radiofônico, como um
cristal trincado que não pode servir como “troféu” do seu dono, apenas, somente
apenas, por ter se tornado cego, visto ter ele convivido por toda a sua vida
com uma acentuada miopia, agravada por outras doenças oculares, inerentes a ela.
A sua perda visual foi grandemente agravada por perdas
outras, perdas afetivas que foram fundamentais no seu processo de reajuste ao
novo mundo em que era abruptamente inserido: perdera mulher e filha – a primeira
chegando a dizer que “o cara a quem ela amava e com quem casara, não era aquele cego” -, além do
emprego na radiofonia, que não só o sustentava, como também era a sua razão de
viver.
Quando este escrevedor e a sua então consorte foram
recebidos na sua casa, aquele locutor não era nem sombra do que fora antes da
cegueira, no que tange ao prestígio, ao respeito e ao apreço de que gozara
antes.
Por quê?
Como lembrança daquele apresentador do programa “Relax” na
rádio Itapoan FM, ficou a belíssima música “Sweet Memories”, não menos
lindissimamente interpretada por Ray Charles, exaustivamente tocada naquele
programa e, incansavelmente ouvida por meio do rádio colado “ao pé do ouvido”
deste garatujador, que traz do recôndito de sua memória, tão doce lembrança.
Oton morre em março de 2020, contando pouco mais de 60 anos.
Desde então, se queria escrever algo que o pudesse homenagear e, lembrar de um
dos seus programas radiofônicos mais longevos na rádio Sociedade da Bahia, “Momentos
inesquecíveis”.
José Jorge Andrade Damasceno – com saudade do amigo:
distante, de poucos contatos outros; mas, amigo Oton Carlos.
Alagoinhas, 28 de junho de 2022.