terça-feira, 28 de junho de 2022

UM ESCREVEDOR VOLTA A FALAR DE MEMÓRIA MUSICAL - XIII

Um escrevedor volta a falar de memória musical – XIII: com o rádio no pé do ouvido – Oton Carlos “Sweet Memories”.

 

Conforme já sabem os leitores habituados a este espaço, a escrita da “História” por meio da Memória vem ganhando espaço nos meios acadêmicos, mormente no campo das ciências humanas, uma vez que um crescente número de pesquisadores tem se interessado em desenvolver pesquisas neste campo, sendo cada vez mais abundantes e promissores, os resultados de estudos por eles entabulados. As publicações de bons trabalhos de pesquisadores envolvidos nas diversas áreas o saber – sobretudo no campo da história -, pode ser entendido como um sintoma do esforço que vem sendo feito, com o fito de dar maior visibilidade a protagonistas “anônimos da história” que, de outra maneira, não teria sua voz ouvida, nem suas trajetórias analisadas, nem mesmo trazidas ao público leitor, não fora aqueles que mergulharam na tarefa de apreender e refletir sobre vidas e cotidianos tão pouco visíveis pelo campo acadêmico e/ou editorial.

Do mesmo modo, já se disse aqui, que a memória é constituída a partir de uma seleção do que lembrar, do que silenciar, implicando em escolhas permeadas por sentimentos de pertencimento e, por vezes, apresentando ligeiros lapsos – mas, nem sempre esquecimento/apagamento, no sentido fisiológico da expressão -, indicando movimentos pendulares, quase nunca cronologicamente estruturados.

É também cediço, que este escrevedor teve no rádio o meio a partir do qual estabelecia contato com o mundo, na medida que os demais meios de comunicação, cada um conforme as suas especificidades, apresentava alguma barreira que o privava de aceder ao seu conteúdo. Assim, por meio do rádio, ele era informado, instruído; entretinha-se e recebia cultura e, ampliava o leque de conhecimentos propedêuticos.

No final da década de 1990,quando este escrevente residira em Salvador, ele conhecera pessoalmente um locutor a quem ouvira realizar entrevistas e apresentar programas de excelente conteúdo informativo e cultural, que, saliente-se, lhe foram deveras utilíssimos para a sua conformação intelectual e para o aprimoramento de sua leitura e apreensão do mundo, visto que, como já se asseverou, o seu acesso aos meios impressos de informação e formação, era quase inteiramente vedado. Aquele locutor era Oton Carlos: homem culto, dono de uma voz perfeita para o rádio; profissional amplamente reconhecido entre os colegas, mesmo os seus concorrentes de outros prefixos.

Para estranhamento de quem ora vos escreve, repentinamente aquele radialista desaparecera das suas audições de tardes ricamente passadas na companhia dos seus entrevistados, sem faltar a boa música e o noticiário, sempre nos horários aprazados: aos 25 minutos e aos 55 minutos de cada uma das horas de duração do programa.

Pouco antes daquele único contato pessoal entre o antigo ouvinte e o locutor, ficara sabendo que, a despeito da grande capacidade, perspicácia e inteligência de Oto, fora ele quase descartado do meio radiofônico, como um cristal trincado que não pode servir como “troféu” do seu dono, apenas, somente apenas, por ter se tornado cego, visto ter ele convivido por toda a sua vida com uma acentuada miopia, agravada por outras doenças oculares, inerentes a ela.

A sua perda visual foi grandemente agravada por perdas outras, perdas afetivas que foram fundamentais no seu processo de reajuste ao novo mundo em que era abruptamente inserido: perdera mulher e filha – a primeira chegando a dizer que “o cara a quem ela amava e com quem casara, não era aquele cego” -, além do emprego na radiofonia, que não só o sustentava, como também era a sua razão de viver.

Quando este escrevedor e a sua então consorte foram recebidos na sua casa, aquele locutor não era nem sombra do que fora antes da cegueira, no que tange ao prestígio, ao respeito e ao apreço de que gozara antes.

Por quê?

Como lembrança daquele apresentador do programa “Relax” na rádio Itapoan FM, ficou a belíssima música “Sweet Memories”, não menos lindissimamente interpretada por Ray Charles, exaustivamente tocada naquele programa e, incansavelmente ouvida por meio do rádio colado “ao pé do ouvido” deste garatujador, que traz do recôndito de sua memória, tão doce lembrança.

 

https://youtu.be/GWPVz4i9_Jg

 

Oton morre em março de 2020, contando pouco mais de 60 anos. Desde então, se queria escrever algo que o pudesse homenagear e, lembrar de um dos seus programas radiofônicos mais longevos na rádio Sociedade da Bahia, “Momentos inesquecíveis”.

 

José Jorge Andrade Damasceno – com saudade do amigo: distante, de poucos contatos outros; mas, amigo Oton Carlos.

 

Alagoinhas, 28 de junho de 2022. 

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