domingo, 10 de outubro de 2010

MÍDIA & ABORTO - Debate farisáico

Tomo a liberdade de reproduzir aqui, sem acréscimos e/ou retoques, o excelente texto de Alberto Dines, dado a sua pertinência e à sobriedade do arrazoado nele exposto.

MÍDIA & ABORTO
Debate farisaico

Por Alberto Dines em 10/10/2010

Reproduzido do Diário de S.Paulo, 10/10/2010

Este debate sobre o aborto é falso, dissimulado, hipócrita. Mascara uma questão de grande relevância e encobre um problema institucional que está no cerne da nossa fragilidade republicana. Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva manifestaram-se sobre a interrupção da gravidez de forma semelhante ao longo do primeiro turno e todos na esfera do "respeito à vida" que tanto agrada ao feixe de confissões religiosas cristãs.

O problema do aborto diz respeito à saúde pública, sobretudo em países dominados pela corrupção e pelo desapego às leis onde vale o "vale tudo". Descriminalizado ou não, o aborto continua sendo praticado aberta e impunemente na vasta rede informal de atendimento médico.

O que deve sair imediatamente do debate eleitoral é esta fingida religiosidade que leva Deus aos palanques, macula as mais íntimas opções espirituais do eleitor e abala gravemente os fundamentos da nossa democracia – teoricamente isonômica, tolerante, aberta, inclusive aos agnósticos, descrentes e ateus.

Teocracia cega

O secularismo, intrinsecamente ligado ao ideal democrático e republicano, foi seriamente comprometido quando em 2009 o presidente Lula, acompanhado pela candidata in pectore Dilma Rousseff, encontrou-se com o Papa Bento 16 na Santa Sé e assinou uma Concordata que tentou manter secreta, depois minimizou e, em seguida, foi obrigado formalizar. Este foi o pecado original aceito pelas confissões da cepa luterana, certas de que teriam suas compensações. E tiveram: a enxurrada de concessões de emissoras de rádio e TV que distorcem e comprometem o equilíbrio do sistema brasileiro de radiodifusão.

Não obstante, a sociedade brasileira novamente avança em direção ao espírito de Guerra Santa justo às vésperas do feriado nacional de 12 de outubro, data da padroeira do Brasil. Em outras ocasiões produziram-se confrontos que não honram nossa temperança e capacidade de convivência.

Diante do explosivo coquetel composto por altas doses de fanatismo político-eleitoral e igual quantidade de fervor religioso, não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao Estado laico. Esta é questão que deveria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.

Religião é assunto de foro íntimo, tirá-la desta condição superior para colocá-la no horário eleitoral é desrespeitá-la no que tem de mais elevado. Quando a crença converte-se em clericalismo, a etapa seguinte é a teocracia avassaladora, cega, tirânica. Não há outra opção, o mundo islâmico está aí para comprová-lo, apesar das exceções na Turquia e Líbano.

Grande demais

Israel vai na mesma direção, a despeito da ojeriza inicial da maioria dos religiosos judeus em aceitar um Estado que não fosse criado por ação do Messias. Cercado de inimigos, isolado pela intransigência em admitir a convivência com um Estado palestino, Israel enfrenta neste momento uma grave crise doméstica produzida pela coalizão da direita com os religiosos que pretende obrigar os que desejam obter a cidadania israelense a jurar fidelidade a um "Estado judaico e democrático".

Se judaísmo for definido como cultura ou civilização, tudo bem, mas no caso é religião e um estado religioso não pode ser democrático.

O "parceiro estratégico" do governo brasileiro, Nicolas Sarkozy, pretendendo ser fiel às tradições seculares do republicanismo francês, não vacilou e proibiu o uso pessoal de símbolos religiosos em locais públicos (burka islâmica, kipá judaica e crucifixos ostensivos).

Medida extrema, antipática, incontornável. Deus é grande demais para ser enfiado num míssil nuclear. Ou enlatado pelo marketing político.


José Jorge Andrade Damasceno - Professor adjunto na Universidade do Estado da Bahia

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Boatarias deletérias que escorrem Como avalanche de "lama tóxica".

Boatarias deletérias que escorrem Como avalanche de "lama tóxica".
Por Jorge Damasceno
A volumosa onda de boatos e fofocas que nas últimas semanas da campanha eleitoral irromperam nas redes sociais, impressionam pela capacidade de seus mentores e difusores, em transformar mentiras absurdas em verdades absolutas e irrefutáveis.
Como tática de contrapropaganda das mais sórdidas, a boataria foi despejada na internet e, como uma avalanche, tal se transportou pelo éter e se apresentou diante de milhares de usuários do twitter, orkut, facebooke e outras tantas redes capilares da comunicação virtual.
Escorrendo como uma "lama tóxica", a tática de disseminar boatos contra pessoas e instituições que se pretendia taxar como satanistas, iníquas, contrárias a vida, a moral sexual, aos "bons" costumes e, que se eleitos, aprovarão práticas que atentam contra a "liberdade", a "fé" e o viver cristão, mostrou ter uma eficácia estonteante, apelando fundamentalmente para a religiosidade mística de grande parte dos que professam a fé, seja esta de caráter evangélico e/ou católico.
Tendo como objeto o voto do eleitor vulnerável aos apelos dos sermões e/ou às exortações das homilias, a avalanche de "lama tóxica" foi lançada sobre pessoas, partido e candidaturas, contaminou milhares de consciências doentes e crédulas, na medida em que mudou a tendência eleitoral que até três semanas antes das urnas, se mostrava amplamente favorável à candidatura diretamente submetida ao processo difamatório, acabando por ser ferida pelo germe da "desconfiança".
O logro daquela empreitada virtual foi o resultado do implacável esforço perpetrado por alguns indivíduos investidos de poder de liderança e/ou grupos conservadores, ávidos por promover uma "virada", que a campanha da candidatura de sua preferência não conseguia fazer, em sua propaganda de rua, ou de mídia.
Mas, onde estariam localizadas as nascentes destas fontes, a partir das quais pôde se produzir tão violenta avalanche? Quais eram os elementos motivadores de tanta ferocidade nos ataques ao processo eleitoral, visto que se fazia uso de meios extremamente espúrios para atingir o que se pretendia com a divulgação de boatos, mentiras e, até mesmo colocando nos lábios da candidata do PT um discurso expressando “desafio a Deus”, que ela não fizera?
Maria Inês Nassif, em excelente texto publicado em Carta Capital, apresenta algumas respostas a estas questões, que aqui, toma-se a liberdade de reproduzir na íntegra. Diz-se parte, porque ainda tem muita coisa por saber-se neste episódio, já que a campanha ainda vai ser retomada e, muito provavelmente, lances de grande sordidez, podem estar guardados para talvez serem utilizados, como "último tiro" na guerra contra a eleição da candidata do Partido dos Trabalhadores, explicitamente travada pelos que nunca se conformaram em terem perdido a hegemonia ostentada por um longo período.
Voltando ao referido texto de Carta Capital, a começar pelo título que dá ao seu arrazoado, atente-se para o que diz a autora, a quem passar-se-á a palavra:
"O voto do pecado e o poder satânico Maria Inês Nassif
"A campanha religiosa contra a candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, estava em andamento e foi subestimada pelo comitê petista. O staff serrista prestou mais atenção nisso. No dia 14 de setembro, a mulher de José Serra, Mônica Serra, em campanha para o marido no município de Nova Iguaçu, no Rio, falou a um eleitor evangélico, para convencê-lo a não votar em Dilma: “Ela é a favor de matar criancinhas”, disse, segundo relato do jornal “O Estado de S. Paulo”. Mônica quis dizer, usando cores muito, muito fortes, que Dilma era a favor do aborto, e portanto não merecia o voto de um evangélico. Não deve ter sido da cabeça dela – falou porque as pesquisas qualitativas do PSDB já deviam mostrar que a onda “antiabortista” estava pegando, embalada por bispos e padres da Igreja Católica e pastores evangélicos.
"Da parte da ala conservadora da Igreja Católica, a articulação foi feita com alarde, de forma a induzir os fiéis de que a recomendação de não votar em Dilma, ou em qualquer outro candidato do PT, veio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CNBB reagiu timidamente a essa ofensiva, com uma carta que foi também instrumentalizada pelos conservadores, que hoje não são poucos. “Falam em nome da CNBB somente a Assembleia Geral, o Conselho Permanente e a Presidência”, diz a nota, para em seguida lembrar que o documento oficial sobre as eleições, tirado na 48ª Assembléia Geral, foi a “Declaração sobre o Momento Político Nacional”, que não faz referência direta a candidatos ou partidos. Um trecho da carta oficial, todavia, foi apresentado aos fiéis paulistanos como prova de que a Igreja, como instituição, vetava o voto aos petistas. “(…) incentivamos a todos que participem (…), procurando eleger pessoas comprometidas com o respeito incondicional à vida, à família, à liberdade religiosa e à dignidade humana”.
"A campanha da Igreja conservadora contra Dilma está usando um sofisma: o “respeito incondicional à vida” torna a igreja antiabortista; o PT defendeu o aborto; logo, o voto em Dilma é pecado. É esse sofisma que foi colocado aos padres de São Paulo pela Regional Sul da CNBB como uma ordem. A secção da CNBB no Estado está impondo a campanha política nas igrejas como obrigação de hierarquia: há uma determinação para que os padres falem na homilia que o voto ao PT é pecado. Os padres estão obrigados também a distribuir jornais de suas dioceses na porta das igrejas, que não raro colocam o veto ao voto no PT como uma determinação da “CNBB”, sem especificar que é da CNBB da Regional Sul 1.
A articulista segue sua análise, afirmando que "Com ajuda da Igreja, Serra chega aos pobres via medo". Segundo Maria Inês Nassif:
Guarulhos é o grande foco, mas não o único. O bispo Luiz Gonzaga Bergonzini declara publicamente “ódio ao PT”. Sua diocese foi uma das formuladoras, na Comissão da Vida da Região Sul, do documento que deu “subsídios” para o manifesto anti-PT que está sendo distribuído nas paróquias como posição oficial da Igreja Católica. Um padre de Guarulhos conta que Dom Luiz Gonzaga vai se aposentar em sete meses, e tem aproveitado seus últimos momentos como bispo para militar ativamente contra o partido de Lula. Para isso, tem usado seu poder de “mordaça” – a autoridade máxima da paróquia é a diocese, e o bispo pode impor suspensões a padres que não seguirem as suas ordens, ou criticarem publicamente suas posições.
"Segundo uma senhora que é católica militante, bem longe de Guarulhos, no bairro de Campo Limpo, os bispos levaram ao pé da letra a orientação da regional da CNBB. A senhora ouviu do padre da sua paróquia, durante a pregação do sermão, que os católicos que votassem em Dilma Rousseff deveriam se confessar depois, porque teriam cometido um pecado. Preferiu o discurso da corrupção ao discurso do aborto. E garantiu que recomendava o voto contra o PT por ordem do bispo.
"O vereador Chico Macena (PT), da capital paulista, que é ligadíssimo à Igreja, conta que várias paróquias da região de São Lucas falaram contra o PT na homilia. Ele acredita que esse movimento da igreja conservadora paulista influenciou o voto contra Dilma em algumas regiões.
"Na campanha de Dilma, soou o alarme apenas na semana anterior às eleições. Foi quando a candidata se reuniu com líderes religiosos e garantiu a eles que não havia defendido o aborto.
"A guerra religiosa não se limitou a sermões de padres ou pregações de pastores evangélicos. Espalhou-se como um rastilho pela internet uma “denúncia” de envolvimento do candidato a vice de Dilma, o deputado Michel Temer (SP), com o “satanismo”. O site Hospital da Alma, ligado à Associação dos Blogueiros Evangélicos, diz que Dilma, se vencer a disputa, morrerá por obra de Satã, para que o sacerdote Temer assuma a Presidência.
"As versões religiosas sobre a candidatura governista são inventivas e, no conjunto, ajudam a formar um clima de pânico que, em algum momento, pode resultar numa explosão em que a racionalidade da escolha do candidato ao segundo turno escorra pelo ralo.
"Não deixa de ser irônico. A Igreja progressista esteve na base da formação do PT, embora limitada a regras da não militância política dentro das paróquias.
"Teve um papel fundamental em São Paulo. É aqui no Estado, que deu uma guinada conservadora durante e após os governos de Fernando Henrique Cardoso, que a Igreja Católica tem imposto os maiores prejuízos à candidata petista. Dois papados conservadores reduziram os progressistas católicos de São Paulo a um rebanho desorganizado e destituído de poder na hierarquia da Igreja.
""A outra ironia da história é que, no momento em que perdem significativamente a força os chefes de política locais, em função dos programas de transferência de renda do governo, e o PT passa a ser o interlocutor preferencial junto aos pobres, os seus adversários tenham arrumado um “atalho” para chegar a esse eleitor humilde, via o temor religioso. O voto colocado como “pecado”, e a eleição como obra de um “poder satânico”, recolocam o eleitorado mais pobre e menos escolarizado nas mãos de líderes conservadores, mas pela força do medo."
Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras
E-mail maria.inesnassif@valor.com.br
Pelo exposto, conclui-se que faltou ao comando do Partido dos Trabalhadores e à Coordenação da campanha presidencial, maior atenção ao papel jogado pela internet no que respeita à sua capacidade de persuasão e ao seu raio de alcance, cada vez mais alargado, na medida em que não detectou o problema ou, se o fez, negligenciou e/ou subestimou sua gravidade e complexidade.
José Jorge Andrade Damasceno é professor Adjunto na Universidade do Estado da Bahia. Mestre em História Social pela UFBA e Doutor em História Social pela UFF-mail: historiadorbaiano@gmail.com
WWW.twitter.com/JorgeDamasceno1

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

OUTRA VEZ: SEGUNDO TURNO!

Outra vez: Segundo turno!
Jorge Damasceno
Uma vez fechadas as urnas e findas as apurações, surge como resultado a necessidade de um novo escrutínio, para definir quem assumirá a presidência da República Federativa do Brasil.
Pela terceira vez, desde 2002, a tendência para que as coisas se resolvam logo no primeiro turno, perde força nas últimas semanas de campanha e, obriga partidos e candidatos a mais algumas semanas de campanha eleitoral no rádio, na televisão e nas ruas.
Aproximações e reaproximações político-partidárias, reconfigurações de toda ordem são necessárias para que se chegue a uma definição, sobre qual ou tal apoio, qual ou tal reforço, sobre tal ou qual novo rumo dar ao processo de conquista dos votos dos candidatos derrotados e/ou daqueles eleitores que acabaram não se decidindo por qualquer um dos postulantes.
Em todos estes momentos históricos, o partido /candidato que sai na frente para a segunda rodada de conquista e/ou reconquista de votos, é vítima de suas próprias dificuldades em lidar com questões difíceis de serem discutidas em uma campanha eleitoral, sem que resvalem em barreiras sociais e religiosas, cujas bases estão centenariamente concretadas e que o processo de "politização" da sociedade brasileira não foi capaz de minimizar os seus efeitos, no momento de se confrontar com a fatia da sociedade que está menos predisposta a discutir desapaixonadamente, questões como a descriminalização do aborto, para mencionar apenas este exemplo, que parece ter sido a peça chave de uma campanha multidenominacional, movida por pastores e padres, escudados em um pretenso "direito à vida".
Ao que parece, o problema crucial a se colocar aqui,ainda que apartir de uma observação sem a profundidade que o momento requer, é o fato de que o PT, apesar de ser um partido nascido a partir de relações com os movimentos sociais, não sabe lidar com as questões que calam fundo na fatia "conservadora" do eleitorado brasileiro! Ele as subestima e, por isto mesmo, não deixa clara a sua posição a respeito de temas, relevantes e, sobretudo, aqueles de cunho moral, que envolvem ao mesmo tempo sexo e religião.
Assim, na medida em que a sociedade não é chamada ao debate sobre temas como o aborto, ou a utilização de células troncos para fins terapêuticos, para citar apenas estes que têm grande repercussão nos espíritos de teólogos e leigos; na medida em que a sociedade não é satisfatoriamente esclarecida, por exemplo, sobre qual é a diferença entre a "descriminalização" do aborto, que é o que preconiza a possibilidade de permitir que o processo se dê em condições minimas e saúde publica, e a "liberação do aborto", que dizem estar no programa do PT e, por extensão, no programa de governo de sua candidata ao Palácio do Planalto, o eleitor vai sendo jogado de um lado para outro, ao sabor das “ondas”, que fluem e refluem,deixando no entanto os rrastros dos seus efeitos, nos resultados que força a realização de nova rodada eleitoral.
Esta absoluta falta de esclarecimento público de como o Partido dos Trabalhadores pensa esta e outras questões, oferece farta munição aos detratores da candidatura Dilma e do PT, para concitarem os seus fiéis a evitar dar o voto a quem, "tão logo assuma o governo", "aprovará" o casamento entre homossexuais e o morticínio de "vidas" inocentes, ainda no processo de gestação.
Neste sentido, é prudente ter mais atenção na condução da campanha eleitoral, neste segundo turno, procurando enfrentar as questões de moral de costumes, atentando para a sensibilidade do eleitor mais vulnerável às pregações evangélicas e prédicas católicas. Caso a cúpula partidária e a coordenação de campanha não se disponham a dar a devida importância a este tipo de eleitor, que majoritariamente votou em Marina Silva, o PT e sua candidata ao Planalto, pode pagar com a derrota o modo indiferente como trata a religiosidade do setor conservador da sociedade, embora tal religiosidade seja, em grande parte, plena de hipocrisia e vivida "para inglês ver".
José Jorge Andrade Damasceno, é professor adjunto da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Dr. em História Social Pela Universidade Federal
Fluminense.
e-mail: historiadorbaiano@gmail.com
Twitter: @JorgeDamasceno1

domingo, 26 de setembro de 2010

História e Memória de Eleições Presidenciais: Um Editorial do Estado de São Paulo

História e Memória de Eleições presidenfciais: Um Editorial do “Estado de São Paulo”.
Jorge Damasceno
Domingo, 6 de outubro de 2002 – Era manhã e o autor destas linhas se preparava para o exercício “obrigatório/democrático” do voto. Como de hábito deu uma navegada pelos jornais que tinha acesso na internet, quando se deparou com o editorial do jornal da família Mesquita, cujo título poderia não levantar desconfianças, já que indicava que o processo democrático não só estava em curso mas, que ainda melhor, estava imune aos revezes que sofrera até bem pouco tempo. Crê-se pertinente a reprodução do editorial em causa, para que seja preservada a linha de raciocínio do editorialista. Com o título de “Democracia consolidada”, diz o jornal paulista:

“Hoje, como há dez anos, o Brasil vive sob o signo da incerteza. A 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputados aprovava o início do processo deimpeachment do presidente Fernando Collor. Três dias depois, ele seria obrigado a afastar-se do governo por decisão parlamentar, enquanto durasse o processo. O alívio experimentado pela quase totalidade dos brasileiros trazia, porém, uma angustiante contrapartida - a dúvida sobre o destino da ordem democrática, restabelecida, afinal, não fazia tanto tempo assim e em via de ser submetida ao que poderia ser uma dura provação.
“Hoje, quando 115 milhões de brasileiros participam da quarta eleição presidencial do Brasil redemocratizado (e da oitava, apenas, pelo sufrágio secreto em 113 anos de República), não há a menor inquietação sobre a saúde do regime político nacional. No decênio entre a campanha para a cassação do mandato de Collor e a sua renúncia e o ocaso natural da era Fernando Henrique, a democracia brasileira alcançou um grau de robustez e de enraizamento reconhecido no mundo inteiro. A competição pelo voto modernizou-se e civilizou-se: nunca se avançou tanto rumo à igualdade de oportunidades eleitorais.
“O partido cujo tetracandidato ao Planalto pela primeira vez chega ao dia do pleito como favorito e que há não mais de três anos dava guarida à fantasia golpista do impeachment do presidente, agora louva – embora raramente em público - o comportamento de "magistrado" de Fernando Henrique. Tardiamente, a cúpula do PT reconhece o papel daquele a quem tratou muitas vezes até com torpeza, na consolidação da estabilidade institucional, incluindo um inédito e sofisticado processo de transição de governo, sob a condução do chefe da Casa Civil da Presidência, ministro Pedro Parente.
“A importância que o presidente dá a essa transição e os cuidados com que ela vem sendo montada podem ser medidos pela recente viagem que Parente fez aos Estados Unidos, onde se encontrou com os membros da alta burocracia federal que participaram do mesmo processo no caso da mudança da administração do democrata Bill Clinton para o republicano George W. Bush. Mais do que isso, ele examinou em profundidade os procedimentos-padrão de há muito adotados nos Estados Unidos para esse fim. Esse investimento institucional se destina a ser o ponto culminante dos esforços de atualização do Estado brasileiro empreendidos nesses 8 anos.
“Para preservar a integridade operacional do Poder Executivo, o governo Fernando Henrique definiu um rito de passagem decerto incomum entre os países ditos emergentes. Compreende a nomeação de 51 funcionários indicados pelo vencedor do pleito e pagos pelo Tesouro para fazerem a interface com os seus equivalentes da atual equipe, a preparação de uma agenda com o cronograma dos compromissos internos e externos da União nos primeiros 100 dias do ano que vem e até a elaboração de um glossário com os termos técnicos adotados pelos administradores federais.
“Se, além de tudo, Fernando Henrique será o primeiro chefe de Estado brasileiro em 42 anos a transmitir o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, por que a sensação de incerteza em amplos setores da sociedade? É que escasseiam razões de otimismo sobre o que acontecerá depois, diante dos severos constrangimentos macroeconômicos que assombram o País. Seja qual for o sucessor de Fernando Henrique, a conjuntura desfavorável não se dissipará tão cedo. E o risco de que se deteriore será muito maior caso se confirme o favoritismo do petista Lula da Silva.
“Mesmo que, no poder, Lula comprove não ter sido mero artifício de marketing o seu decantado abandono do radicalismo, e mesmo que seja mínima, como se prevê, a sua margem de manobra para mudar abruptamente a política econômica, o Brasil terá de se haver com um conjunto de ponderáveis fatores de risco: as limitações de seus conhecimentos, a inexperiência administrativa, as inevitáveis tensões com um Congresso onde a atual oposição continuará minoritária, a falta de uma estratégia coerente de governo (que não é sinônimo de programa de governo) e a massa de demandas sociais suscitadas pelas próprias promessas irrealistas do candidato
“. Motivos de desassossego, portanto, não faltam. Daí a nossa convicção de que um segundo turno, com a eventual vitória de José Serra, seria uma alternativa muito mais tranqüilizadora.”.
Como sepode depreender do texto transcrito acima, assim como tentando compreender o que está publicado no editorial de hoje, 26 de setembro de 2010, o Estado de São Paulo, não apenas expressa com clareza sua posição em relação ao pleito eleitoral deste ano, como aponta o caminho que vai trilhar, no caso de seu posicionamento não ser acompanhado pela maioria dos eleitores brasileiros. O que aliás, não pode ser tomado como surpresa, haja visto os posicionamentos adotados pelos jornalistas e proprietários do Estadão, nestes oito anos de governo “Lula Da Silva”, como eles mesmos se referem ao presidente Lula..
Jorge Damasceno é professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia, Doutor em História Social, Pela universidade Federal Fluminense.
E-mail: historiadorbaiano@gmail.com
Twitter: @JorgeDamasceno1

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Ajoelha Herege!"

"Ajoelha, herege""

Desde tempos que perpassam histórias e memórias de caldeus, persas, medos, assírios, egípcios, sumérios, fenícios, gregos, romanos, vândalos, godos, visigodos, germânicos, ibéricos, saxões, mongóis, aztecas, guaranis, tapuias, araucanos, eslavos, e tantos quantos tenham sido os povos que apareceram e/ou desapareceram ao longo dos últimos cinco mil anos, quer no Ocidente, quer no Oriente, as práticas religiosas têm sido úteis no processo coercitivo dos indivíduos e têm servido de modelador e de um determinado tipo de sociedade.
Começando pelos processos de formação e consolidação de seus fundamentos, as grandes religiões de todos os tempos, precisaram de regras, normas e dogmas que pudessem servir de referência para a construção de uma hegemonia, que, em geral, não pudesse vir a ser contestada.
Para tanto, uma das principais de suas armas, sempre foi o estabelecimento de padrões e normas de conduta, em geral forjadas a partir de matrizes religiosas, que, uma vez petrificadas pelo tempo, não tivesse explicações, ou pelo menos, não se fizesse sentir necessidade de se dar alguma explicação sobre o por que e/ou o para quê de se proceder de uma maneira X,ou não se proceder de maneira Y. Uma vez que as regras sociais, estão dadas, cabe aos membros de uma dada sociedade, comportar-se segundo as diretrizes tradicionalmente transmitidas.
O catolicismo romano, mas não só ele, pode ser evocado como um exemplo de grande construtor de um caldo filosófico, cultural, religioso e psico-social, que, uma vez incorporado no “modus vivendi”, no “modus operandi”de cada indivíduo, forja a mentalidade coletiva que passa a “reger” o comportamento de toda a sociedade, independemtemente de haver ou não, explicações razoáveis que permitam compreender este ou aquele gesto; este ou aquele hábito; esta ou aquela expressão, visto que seu uso, se torna obrigatoriamente “pétrio”.
Em viagem recente, um animado diálogo de um casal da poltrona ao lado, despertou a atenção do autor destas linhas, quando em dado momento, ele relatava sua experiência de adolescente, em relação à religião que socialmente lhe fora imposta pela tradição da família. Dizia o rapaz, que vivia um momento de muitas interrogações, para as quais não encontrava respostas satisfatórias. Entre elas, estavam as questões relacionadas às práticas, normas e dogmas da religião que lhe fora ensinada desde menino, para as quais ele buscava sentido e razão de ser.
Ele dizia, entre outras coisas, que se perguntava, enquanto sofria para cumprir as obrigações rituais das celebrações religiosas, “quem disse que tem de ajoelhar”? “Por que todos tem que ajoelhar em determinado momento da celebração da missa”? Sendo obrigado a fazer assim ou assado, o irrequieto adolescente queria saber enfim, qual a razão de ser do ritual mecânico De “ajoelhar. Saíra da Igreja, sem conseguir encontrar as respostas que buscava e com o incômodo de sentir dores nos joelhos, ao se esforçar por cumprir o ditame que não entendia. Se tinha que ajoelhar, como forma de obedecer a Deus e venerar os “Santos”, por qual razão a dor insistia em se fazer presente, em um momento tão “nobre” da celebração?
Em meio a estas e outras questões que o rapaz alongou em sua animada conversa com a jovem que viajava ao seu lado, chega-se ao ponto crucial da narrativa, quando ele conta que, em determinado momento de seus questionamentos juvenis, vencido pela dor e não vendo razão plausível para ajoelhar-se, em uma de suas últimas idas ao dever tradicional da “missa”, decidiu não seguir as ordens litúrgicas dogmaticamente estabelecidas: naquele momento, quando todos seriam convidados a se ajoelhar, ele não o faria. Assim pensou, assim agiu.
No entanto, um homem que se encontrava atrás de si, cioso pelo irrestrito cumprimento do dever eclesiástico, vendo naquela atitude uma “quebra” inaceitável da reverência exigida pelo momento solene, com a autoridade de quem tem nas práticas e nas atitudes dogmáticas recebidas dos séculos, o poder da censura, da punição e da repressão das condutas desviantes ordenou-lhe: “ajoelha, herege!”
Aquele misto de ordem e reprimenda, exerceu um grande e decisivo impacto no processo de formação filosófico/religiosa daquele jovem. A partir daquele momento, ele lançou-se decisivamente na busca das soluções para as questões que iniciara, não mais no estreito espaço dado conglomerado de normas de conduta, elenco de dogmas e emaranhado de normas às quais estão sujeitos os indivíduos e os grupos de indivíduos rotulados de “católicos Romanos, mas enveredara-se nas outras plagas mais amplas da diversidade do pensamento filosófico secular e “herético”.
Assim, a censura, a restrição, a repressão, ou a punição é exercitada a partir das regras, normas e ditames estabelecidos com base nos cânones religiosos. É a partir de tais elementos, que os membros da sociedade exercem vigilância sobre seu próximo e estão prontos a condenar as atitudes, palavras, gestos e práticas que destoem dos padrões de conduta religiosa e socialmente tomados como padrões aceitáveis e corretos.

Jorge Damasceno – Professor de História da Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas.
historiadorbaiano@gmail.com

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Morre o autor de "Ensaio Sobre a Cegueira"

Morre o autor de "Ensaio sobre a Cegueira"
Lembro-me que o primeiro contato que tive com livros escaneados para se ler no computador, foi justamente um dos livros que mais custei a ler e mais detestei quando li. Nas primeiras tentativas de leitura, o que me fazia recuar era a dificuldade de compreender o texto, seu contexto e seu autor.
Precisei de dez longos anos, várias outras leituras e, sobretudo, a leitura de uma reportagem publicada no periódico português "O Expresso - a revista", onde a repórter, apresenta um longo ensaio sobre a obra e, após ele, uma excelente entrevista com o próprio Saramago, na qual ele procurava explicar a obra, seu contexto e as circunstâncias que o levara a escrevê-la. Tanto pior, pois detestei ainda mais o "Ensaio sobre a cegueira", mesmo sem  ter conseguido ler mais de dez, das suas mais de trezentas páginas.
Finalmente, em uma quase interminável noite de insônia, fui além de minha rejeição à obra e a li, de uma só vez, como quem toma um remédio amargo. E, continuei detestando-a, pois nela, o autor põe a nu todo o seu modo pessoal e social de pensar o cego e a cegueira, visto que, não se pode dissociar o escritor da sociedade na qual ele está inserido. Ele não só influencia o todo social com seus conceitos, opiniões e formulações de uma determinada visão de mundo, quanto por ele é influenciado, atuando como "caixa de ressonância" do meio em que vive.
Assim, em sua obra, Saramago deixa bem claro o modo como ele vê o cego e a cegueira, ao mesmo tempo em que reflete o modo como a sociedade pensa e age em relação a este tipo de circunstância, quer seja ela levada ao nível do ser individual, humano (o cego, homem ou mulher), quanto ao trazer para o nível abstrato da sociedade, como ele dizia na mencionada entrevista, que quando escrevia a obra em questão, "pensava em Hitler" e em seu intento de impor ao mundo sua proposta de sociedade arianizada. Ali ele via uma sociedade adoecida por uma cegueira coletiva e endêmica.
Ora, não é difícil para a opinião pública, transferir esta e outras proposições conceituais encontradas no "Ensaio Sobre a Cegueira", para o âmbito do ser humano, e/ou grupo formado por seres humanos desprovido das capacidades visuais, associando tal falta, à impossibilidade de racionalizar, de elaborar pensamento crítico, bem como a uma permanente impossibilidade de perceber, entender e agir com o que se encontra ao seu redor e com as vicissitudes que se lhes apresenta no cootidiano.
Alienar, segregar os doentes e proteger a população "sã", deles e do seu contágio, é o grande esforço que se faz no transcurso de toda a obra. No entanto, ele apresenta o ser cego, aquele que naturalmente o era, como alguém mais vil e capaz de gestos, atitudes e práticas de maior repugnância social, na medida em que aquele grupo por eles formado, submete e sujeita os cegos "temporários", às maiores vilezas e situações de degradação, em um nível de abjeção inimagináveis.
Então, com tanta contradição no modo de ver e pensar o cego e a cegueira, apresentada naquela obra, onde pretendia o escritor chegar? Qual era o juízo que pretendia formar junto a opinião pública, leitora de suas obras? Seria uma crítica social tão profunda e sutil, que eu e os poucos críticos da obra não quisemos e/ou pudemos entender?
Eis aí estão postas questões a serem pensadas, sobretudo no contexto da história e da memória de um escritor que se vai e, sobretudo, em torno de uma obra que, ficará como monumento àquele que a trouxe à luz

Jorge Damasceno, - Professor de História na Universidade do estado da Bahia

sábado, 27 de março de 2010

Histórias Plurais, Memórias singulares

Em tempos de muitas histórias, verifica-se o desfecho de uma que tornou-se pública em fins de março de 2008.
Na cidade de São Paulo, após um dia de folguedos, risos e, certamente, muitas peraltices em grupos de sua idade, uma criança é lançada do sexto andar do prédio onde deveria estar abrigada junto com pai, madrasta e irmão, sem que ninguém tenha assumido a autoria de gesto tão extremo.
Que diriam os sujeitos indiciados pela polícia e condenados pela justiça, se viessem a confessar a autoria do delito, sobre qual teria sido o motivo que os teria levado a decidir pelo fim da vida de uma garota de seis anos, ainda incompletos? Ciúme? Inveja? ódio? forma aguda de atingir a adultos com uma perda emocional e/ou afetiva?
Que explicações dariam os condenados, se decidissem confessar? E partindo do pressuposto de terem sido injustamente condenados, por um assassinato que não cometeram, quem então teria realizado toda a saga e/ou planejado todas as necessárias etapas da operação, que resultou na morte da menina Isabela Nardoni?
Talvez um historiador e/ou um memorialista, que possa ter a necessária distância de todos estes fatos e das dúvidas e questionamentos que os cercam, para terem a tranqüilidade no processamento das memórias múltiplas, construídas ao longo do tempo que durou a tramitação do processo criminal, seja capaz de trazer alguns elementos que permitam uma maior compreensão de mais este episódio do cotidiano.
Uma das primeiras tarefas do pesquisador, seria a de apreender as diversas memórias construídas em torno do fato.
Outra tarefa do pesquisador interessado em investigar o "caso Nardoni" seria a de buscar perceber naquilo que não foi dito, alguma ruptura que permita uma análise daquilo que foi silenciado, quer pelos que foram indiciados, quer pelos que os indiciaram.
Uma terceira tarefa do historiador/memorialista, seria a de perceber e trazer para a análise histórica, a singularidade das diversas memórias que foram construídas em torno do caso, no curso do tempo, decorrido entre o assassinato da garota, até o desfecho processual, ocorrido quase dois anos após a consumação do crime.
Os jornalistas, policiais, parentes e aqueles que tomaram conhecimento dos eventos através dos meios de comunicação de massa, construíram sua memória singular, guardando nela aquilo que selecionou de todo o material que esteve ao seu dispor.
O historiador e/ou memorialista teria pois, a possibilidade de reunir algumas daquelas memórias singulares, em torno de um processo de sistematização, que permitisse identificar as mediações que presidiram a formação de cada grupo, possibilitando leituras mais próximas de uma realidade ensejada por um cotidiano de violência e de desvalorização persistente da vida de outrem.