quinta-feira, 1 de abril de 2021

"Aquela não foi uma manhã comum" - Republicando um texto escrito em 2013

 

Histórias e memórias “daquela que não foi uma manhã comum”.

 

Originalmente publicado no Alagoinhas Hoje em março de 2013.

 

 

O amanhecer de 1º de abril de 1964, ficou gravado na história política e social brasileira, como tendo sido apenas o início de um tempo de muitas nuvens, com grande capacidade de formação de tempestades. Algumas gerações de ativistas políticos locais e nacionais, foram atingidas pelas inúmeras borrascas que se abateram sobre a frágil e instável democracia brasileira, instaurada a partir de 1945. As prisões, perseguições, torturas e mortes de lideranças políticas e sociais cujos efeitos ainda se fazem sentir, mesmo já tendo transcorrido quase 50 anos, revelam apenas uma das muitas faces do período que aquele abril, tristemente testemunhava.

 Como as folhas de outono, em todos os quadrantes do País, muitos líderes caíram, murcharam, secaram e morreram, tanto sob o ponto de vista físico, quanto no âmbito da atuação política partidária, artística e/ou sindical, na medida em que a brutal atividade repressiva, levada a efeito nos 21 anos de duração do inverno político brasileiro, não conheceu limites, nem mesmo fronteiras. Na medida em que se fechava o cerco em torno dos homens e mulheres envolvidos em atividades artísticas “engajadas”, políticas ou sindicais, a brutalidade da repressão e a dureza do Regime se fez mais sentida e presente, nas cidades onde os traços de “subversão” fossem pressentidos, ou, apenas presumidos.

Em Alagoinhas, cidade marcada por uma efervescente atividade política e sindical, sobretudo, pela presença de um operariado inserido em um processo de formação política bastante arraigado, aquele dia se afigurava com prenúncios de céu carrancudo e cinzento.

Através do rádio, então ainda o grande meio de transmissão das notícias do País e do mundo, alguns daqueles homens e mulheres eram informados que o País, amanhecia sob a marcha das Forças Armadas, em processo de sublevação, cujo objetivo era tomar o controle político e se empoleirar no comando do poder executivo, defenestrando um presidente que ali fora colocado pela via eleitoral.

Como muitos alagoinhenses já eram dotados de uma capacidade de compreensão do que se passava à sua volta, sobretudo os trabalhadores ferroviários e funcionários do Banco do Brasil, além de trabalhadores pertencentes a outras categorias, entendiam que era preciso levar aos demais munícipes, a explicação do que efetivamente se passava na conjuntura política do Brasil, com o intuito de, quem sabe, organizar alguma resistência ao golpe militar, àquela altura, já em curso.

Demonstrando grande capacidade de articulação e poder de mobilização, líderes políticos locais, conseguiram reunir um bom número de pessoas em um comício, realizado nas primeiras horas da manhã, na Praça Graciliano de Freitas, nas proximidades do prédio dos Correios e da Prefeitura Municipal, na expectativa de levar a explicação dos acontecimentos, aos que ali se encontravam ansiosos por entendê-los.

Mas ao que tudo indica, tomando-se em conta o relato de uma pessoa que viveu o episódio e, conhecia líderes operários da época, a grande dificuldade estava justamente em encontrar, quem entendesse o que se passava e, ainda pior: quem pudesse explicar o que estava ocorrendo na política do País, de maneira que os participantes do evento ali, naquela praça, pudessem vir a compreender.

Enquanto se buscava desesperadamente alguém que pudesse fazer a conexão entre os fatos e os seus desdobramentos para a vida política e social da cidade, as forças repressivas ligadas ao “novo regime”, já estavam prontas para agir, de modo a não perder o controle da situação.

Naquela quarta-feira atípica, a cidade se pusera em movimento, de acordo com o seu caráter pacato de urbe com pouco mais de 60 mil habitantes, com o seu ir e vir de estudantes e professores para as escolas, de ferroviários para as suas atividades quotidianas, de aguadeiros e pãozeiros para o seu labor costumeiro.

 Entretanto, algumas pessoas estavam alertas a respeito dos acontecimentos da noite do dia anterior, sobretudo, da madrugada daquele primeiro de abril, quando alguns regimentos do sudeste, entre eles, o que estava sob o comando do gen. Olimpio Mourão Filho, iniciavam seu levante, contra o governo constitucionalmente eleito, indicando um golpe militar que, enfim, se perpetrara ao longo do dia.

Embora alertada pelo seu irmão Zé Gama, um então funcionário do banco do Brasil e, moço muito bem-informado a respeito do que se passava no País, a jovem professora Iraci Gama Santa Luzia, confessa não ter se dado conta, da gravidade da situação, para a qual ele pediu que se acautelasse e tivesse cuidado.

 Leitor voraz das diversas publicações de circulação nacional e, atento ouvinte de diversas emissoras de rádio, sobretudo, as do Rio de Janeiro, que tinham boa penetração na região, mormente nas noites/madrugadas, ainda pouco afetadas pelas interferências de estática, Zé Gama, por certo, estava acompanhando o desenrolar dos acontecimentos políticos daqueles últimos dias, principalmente os relacionados com as passeatas, os discursos de diversos setores da sociedade, (entre eles os de autoridades militares, de autoridades civis, setores da imprensa, dirigentes de trabalhadores rurais, de dirigentes sindicais) e com as manifestações de várias categorias operárias e camponesas, ocorridas no findo mês de março. Se ele já não sabia do golpe militar em curso, ao menos suspeitava que, mais cedo ou mais tarde, aquilo iria se tornar fato.

Assim, após desenvolver suas atividades docentes no Ginásio de Alagoinhas onde lecionava, a professora Iraci , então contando 20 anos, ao chegar na esquina da rua Conselheiro Franco com a Castro Leal, próximo ao prédio onde funcionou a delegacia de polícia por muitos anos, deparou-se com o Sr.Esmeraldino, um ferroviário aposentado e bastante politizado, que disse ir-lhe ao encontro, com o objetivo de a levar para tomar parte em um comício que se realizava no coreto que existia nas proximidades do prédio onde funcionou o Banco Econômico. Ali, ela deveria subir no palanque para explicar aos participantes daquele evento, o que de fato estava acontecendo, visto que todos que intentaram fazer, não lograram êxito.

Segundo seu interlocutor, conforme sua descrição em entrevista ao autor destas linhas, só ela poderia dizer o que efetivamente se passava na política nacional, para que, uma vez conhecendo e entendendo o que se dava em Brasília, caso preciso, se convocasse o povo para ir as ruas, quiçá, resistir à quebra constitucional, que, no instante em que trocavam aquelas palavras, aquela ruptura já estava consumada, mas que eles apenas temiam estar prestes a ocorrer.

Aquiescendo ao pedido do aposentado, dirigia-se ao local, quando foi interceptada por um outro homem, o Sr. Cláudio Costa. Este, com o intuito de que ela não chegasse ao palanque onde já a esperavam, retém-lhe os passos, literalmente erguendo-a pela cintura e tirando seus pés do chão e, a conduz ao interior de um Jeep, onde já se encontrava um funcionário do Banco do Brasil, rodando com eles por vários lugares e horas, impedindo-os de participar do tal comício.

Segundo contou a professora, soube-se depois que, todos aqueles que assomaram ao palanque, a fim de explicar os eventos daquela madrugada, acabaram entrando em sérios apuros junto ao regime militar que se instalara naquela data. Só não ocorrendo o mesmo com ela, precisamente pelo fato de ter tido seu caminho interceptado há apenas alguns poucos metros do local para onde se dirigia, disposta a tomar parte no aludido comício.

Ao ser deixada em casa, muito depois do meio-dia e encontrar seus familiares apreensivos por sua demora em chegar para o almoço, já o País vivia sob a presidência da República sendo exercida pelo presidente da Câmara dos Deputados, uma vez que a presidência do Congresso, declarara vaga a cadeira presidencial, em curtíssimo espaço de tempo, a despeito do seu legítimo ocupante, ainda se encontrar vivo e no Território Nacional.

 

Post-scriptum:

Desde então, sobraram relatos de horrores: mortos, exilados, desaparecidos... Até 1985, vinte e um anos depois, o Brasil foi espancado, desancado, aparelhado, aviltado e vilipendiado por instituições que teriam por dever precípuo cuidar do seu território e do seu povo. Com a justificativa de combater “o comunismo”, um fantasma que voltou a rodear a sociedade brasileira cinquenta e dois anos depois, massacres como o perpetrado na região do Araguaia, somam-se às mortes de Marighella (1911-1969) em uma emboscada e, a morte do capitão Lamarca (1937-1971) em ações nunca esclarecidas satisfatoriamente à sociedade brasileira; fazendo crer a sociedade que iria combater “a corrupção – motivação que também produziu o golpe de 2016 e o presidente eleito em 2018 -, o que a história registrou foi um volume ainda maior de corruptos e corruptores agindo sob o guarda-chuva da censura, as vezes driblada para fazer aparecer casos como “Coroa-Brastel”, o escândalo financeiro envolvendo o grupo “delfin”, caso Capemi e o dossiê Baumgarten, entre vários outros.

Felizmente, há uma pesquisa consolidada em torno do período, que deve ser consultada por quem se interessar em saber um pouco mais dos obscuros “anos de chumbo”, tempo infeliz da nossa história” que teima em querer voltar a se abater sobre o brasil.

 

Republicado em 01 de abril de 2021

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno