sábado, 30 de julho de 2016

Republicando 9 - Histórias e memórias de uma imprensa viciada


Histórias e memórias de uma imprensa viciada – José Jorge Andrade Damasceno

 

Publicado originalmente no Alagoinhas Hoje em  19 de maio de 2013

 

Sem eleições presidenciais desde aquela realizada em 1960, que conduziu Jânio Quadros ao Palácio do Planalto, o Brasil se reencontra com esta modalidade de escrutínio no ano de 1989, após os 21 anos de regime civil-militar e pouco mais de um ano após a promulgação daquela que foi decantada como sendo a “Constituição Cidadã”.

 

Marcada pela presença de nomes já consagrados na política brasileira, como os de Ulysses Guimarães e Leonel Brizola, para citar apenas dois, a primeira eleição presidencial após as grandes mobilizações sociais e políticas do início da década de 80 do século XX, se apresenta, como tendo sido aquela, na qual os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, tiveram efetiva participação, na construção de uma espécie de “vontade popular”. Driblando as restrições legais relativas à exposição dos candidatos e, aproveitando-se de sua quase absoluta penetração em todos os recantos do País, mesmo os mais longínquos, a Rede Globo de Televisão, associada a outros setores da imprensa -, jogou papel decisivo na pavimentação da estrada que levou ao segundo turno, o candidato filiado ao inexpressivo PRN, Fernando Collor de Melo, até então, um obscuro governador de Alagoas, embora de família politicamente tradicional, cuja raiz remonta aos anos 30.

 

Seu contendor era o metalúrgico e ex-deputado Constituinte, Luís Inácio Lula da Silva, cuja origem política é encontrada nas mobilizações operárias, que tinham como berço o ABC Paulista, desencadeadas a partir do final da década de setenta daquele mesmo século.

 

Aquele foi um pleito amplamente polarizado em torno de duas propostas sócio-políticas bem delineadas. Por um lado, Fernando Collor de Mello, representava a proposta de manutenção do status quo das “elites” políticas e empresariais brasileiras que tinham como seu porta-voz principal o complexo sistema de comunicação de massas, capitaneado pelas Organizações Globo. Por outro lado, Lula da Silva representava o ideal de mudança social preconizada pelo Partido dos Trabalhadores, agremiação nascida da confluência de diversos movimentos sociais que encontravam lastro e ressonância em uma considerável parcela do setor “progressista” da sociedade civil brasileira.

 

Longe de ser um elemento neutro na formação da opinião pública, neste e em diversos outros episódios da história recente, a imprensa brasileira em geral e a televisiva em particular, vê-se como instrumento de persuasão e/ou convencimento, a partir do qual, se apresenta com a finalidade de desempenhar papel relevante, que expressasse na prática a vontade de uma massa formatada para responder positivamente aos anseios sócio-políticos de uma facção dominante do setor comunicacional brasileiro e internacional.

 

Já em 1982, incomodado com a possibilidade de ver no comando do estado fluminense um político que não fosse afinado com seus interesses empresariais, para dizer o mínimo, o núcleo dirigente das Organizações Globo, empreendeu esforços no sentido de evitar a eleição de Leonel Brizola para governar o estado do Rio de Janeiro.

 

O rumoroso caso “Proconsult” deu uma dimensão daquilo que seria a atuação dos meios de comunicação de massa, alguns anos mais tarde, quando empreendeu um gigantesco esforço para evitar que vencesse as eleições presidenciais de 1989, um segmento político partidário que representava perigo à hegemonia comunicacional do império comandado por Roberto Marinho.

 

Um dos episódios mais obscuros daquela campanha eleitoral, sem a menor sombra de dúvidas, foi o último debate entre os candidatos ao segundo turno, Collor de Melo e Lula da Silva.

 

Cheio de lances espetacularizados, nos quais o candidato apoiado abertamente pelas Organizações Globo apresentou fatos da vida pessoal/privada do candidato Lula da Silva, amplamente explorados no momento de editar para a última edição do principal jornal da rede de emissoras, colocando em grandes dificuldades o candidato prejudicado, visto que não haveria mais tempo para exigir direito de resposta e/ou de reparação, pois faltavam apenas algumas horas para o processo eleitoral ter início.

 

As manipulações do último debate entre os postulantes ao Planalto e as repercussões das “denúncias” trazidas a público pelo candidato “global”, foram decisivas para a definição do pleito em seu favor, pois, embora tendo cometido o mesmo erro de que acusara o candidato Lula da Silva, não houve tempo nem competência da organização da campanha petista, para desmascarar a hipocrisia sócio-religiosa, lançada pela campanha de Collor de Melo para desmoralizar seu opositor.

 

Prevalecendo-se do falso moralismo coletivo de que se ufana grande parte da sociedade brasileira, principalmente suas elites culturais/religiosas, as Organizações Globo, os organizadores e condutores da campanha de Collor de Melo, associados aos seus demais apoiadores na imprensa nacional, viram exitosa sua trama maquiavélica contra o PT e seu candidato, no sentido de vê-los derrotados nas urnas e fazer subir a rampa do Palácio do Planalto o candidato que apoiavam aberta e despudoradamente.

 

Logo que assume a mais alta magistratura do País, o ex-caçador de “marajás”, mostra toda sua empáfia e despreparo para o cargo que ocupava, se apresentando mais como um “pop star”, do que propriamente como um presidente da República, cônscio de seus deveres constitucionais. Desprezando elementos-chave característicos de um chefe de Estado, despindo-se inúmeras vezes da “liturgia do cargo”, colecionando fama midiática, mas também, acumulando ódio de uma parcela daqueles mesmos que contribuíram com sua eleição, por conta das medidas econômicas que adotara, a mais rumorosa e polêmica delas, foi, sem dúvida o tal “confisco dos ativos financeiros”, o que provocou entre outras coisas, uma onda de suicídios e desorganização de diversos compromissos já previamente assumidos, por um número considerável de pessoas físicas e, até mesmo, de pessoas jurídicas.

 

A partir dali, se faz sentir o início do declínio de seu meteórico “boom” político/midiático, embora as Organizações Globo e seus outros aliados, tenham envidado grandes esforços para não deixar transparecer o já perceptível desgaste social, político e o mais grave deles, o institucional.

 

Começam a espocar os escândalos, os desvios de conduta e recursos, as “carteiradas”, os jeitinhos, os deslumbramentos de ministros, assessores diretos e indiretos, além de esbanjamentos de diversas ordens, a despeito das restrições impostas pela equipe econômica, que só atingiam àqueles “menos iguais” perante a lei e a sociedade.

 

Até que, menos de dois anos de seu mandato, explode a maior, mais complexa e decisiva das crises políticas que aquele governo e, de resto, todo o País tivera que enfrentar: o rumoroso caso PC Farias.

 

Enquanto as denúncias apareciam na “periferia” do jornalismo dito “revanchista”, ganhava pouco a pouco outros setores da mídia, até que, três reportagens publicadas pela revista ISTO É abalam de vez a pseudo solidez do governo Collor e rompe o “cordão sanitário” no qual fora envolto. As entrevistas de Pedro Collor, irmão do presidente; a entrevista de Egberto Batista, motorista diretamente ligado à cúpula paralela do presidente, além da entrevista/depoimento da secretária Sandra, foram os estopins que, uma vez acesos, implodiram irremediavelmente o governo patrocinado pelas Organizações Globo e virou o jogo em favor dos outros setores da mídia, contrários e alijados do processo político, precisamente por ter um posicionamento diferente daquele preconizado pela referida organização midiática.

 

Após consumada a votação no Congresso que permitiria a abertura do processo de impeachment do presidente Collor, a imprensa internacional, mais precisamente, a BBC de Londres afirmava em seu noticiário, alguma coisa mais ou menos assim: que “a Globo ergueu e as outras emissoras derrubaram o presidente brasileiro”.

 

Nos governos seguintes, Itamar Franco, Fernando Henrique (dois mandatos), Lula da Silva (dois mandatos) e Dilma Rousseff (primeiro ano de mandato), esta imprensa viciada em erguer e defenestrar, empenha-se em derrubar ministros, assessores diretos; também se empenha em emplacar auxiliares diretos para atuar junto aos mandatários republicanos. É um vício que ela traveste de “vigilância” democrática, para passar ao público a idéia de um quarto poder, capaz não só de fiscalizar, mas também de se impor enquanto formadora de opinião e, sustentada por princípios e valores morais e éticos, a partir dos quais pautam suas reportagens, denúncias, campanhas contra corrupção e pelo zelo da coisa pública, segue impondo sua vontade e seus interesses, sempre pintados como defesa dos interesses públicos.

 

Com este chavão tão agradável aos olhos dos leitores e telespectadores e aos ouvidos dos que ainda apreciam o rádio, eles torcem e distorcem a realidade, impondo a verdade que interessa ao órgão no qual esteja prestando serviço. Mas se posiciona como formador de opinião pública e, ao mesmo tempo, porta-voz desta mesma opinião, por ele engendrada pouco antes.

 

Até quando? Qual será o próximo alvo?

 

Ao juízo do autor destas linhas, neste momento em que elas estão sendo escritas, a imprensa está enveredando por uma linha de conduta arriscada. Ela está escorregando para uma partidarização perigosa! Dúvidas, caro leitor? Dê-se ao trabalho de fazer uma incursão pelas publicações que antecederam e precederam a eleição da presidente Dilma Rousseff; dê-se uma rápida garimpada no noticiário entre sua posse e a sua histórica participação na abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em setembro, na cidade de Nova York; verifique-se como se utilizou no período pré e pós-eleitoral de 2012, o vastíssimo material impresso, televisivo e radiofônico produzido durante o pretenso “mensalão”, tido como o processo mais bem conduzido por uma corte superior. E, assim, tire suas próprias conclusões.

 

José Jorge Andrade Damasceno é Doutor em História social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia; professor adjunto no Colegiado de História, do Departamento de Educação, Campus II da UNEB, Alagoinhas, BA.

 

professordamasceno@gmail.com

 

@JorgeDamasceno1

Republicando 8 - Os cheiros da infância - Alagoinhas, 1965-1974.


Os cheiros da infância – Alagoinhas 1965-1974 – José Jorge Andrade Damasceno

 

 Originalmente publicado no jornal Alagoinhas Hoje em 12 de maio de 2013

 

Como grande parte das cidades de seu porte, Alagoinhas exala cheiros que marcam a vida dos que aqui nasceram ou viveram desde a infância. O período aqui especificado relaciona-se diretamente com os primeiros anos de vida do autor destas linhas, mas pode muito bem relacionar-se com lembranças de muitos dos que lerão os próximos parágrafos deste arrazoado.

 

De modo análogo ao tratamento que se tem dado às memórias de diversas pessoas, das quais foram recolhidas impressões, que depois foram transformadas em textos lidos neste espaço, recorrer-se-á à própria memória para tentar descrever um pouco das lembranças olfativas que repousam no âmago das reminiscências deste escrevente. Reitera-se, que, a despeito de algumas destas lembranças serem individuais, não impede que outras pessoas as tenham, se não na mesma dimensão ou no mesmo grau de intensidade, ao menos de modo a se poder dizer tratar-se de uma memória olfativa comum a diversos indivíduos que viveram à mesma época aqui evocada.

 

A região da cidade onde vive este autor, sempre foi um arrabalde apartado do centro da cidade, umlogradouro quase rural forjado a partir de loteamentos de fazendas desativadas. Ali predominava atividades de criação de gado leiteiro, abate de animais de pequeno porte para abastecer a feira local, até mais ou menos o período final de que se ocupará este texto.

 

Por conseguinte, o cheiro mais comum e mais marcante no quotidiano dos moradores daquele local era o dos currais próximos, muitas vezes, contíguos às residências dos pequenos criadores ali estabelecidos.

 

Área abundante em vegetação rasteira e, nos anos iniciais aqui balizados, ainda nativa, dava às noites e amanheceres um toque todo especial, com aromas deliciosamente indescritíveis, muitas vezes exalados não se sabendo exatamente de onde. Eram as “quaranas”, cujas flores davam ao olfato uma sensação muito agradável, envolvendo os apreciadores com um cheiro levemente adocicado, indicando uma noite estrelada de céu limpo e pronto para o alvorecer de uma nova manhã.

 

Já o luxuriante desfilar de árvores de grande porte, como as jaqueiras, ingazeiras, mangueiras, jambeiros e cajueiros, abundantes em toda a área que vai das margens da linha férrea até perder-se na imensidão da serra alcançada apenas se atravessasse o rio Aramari, dava um toque especial ao ambiente, sobretudo, quando em processo de floradas, indicando abundância daqueles frutos que faziam a alegria dos paladares aguçados da garotada.

 

Pessoalmente, é possível evocar e trazer de volta aos sentidos, aquele cheiro inconfundível de café, que enchia o as casas e se espalhavam pelo ar, fosse ao raiar da manhã, ou no cair da noite.

 

E o que dizer daquele “cheiro” quase nauzeabundo de sebo cozinhando em uma fábrica de sabão, que por muitos anos, marcou o fim da tarde e o início da noite da rua 2 de Julho e suas cercanias?

E os cheiros de fritura de toicinho, de carne de sertão ou de peixes secos e baratos, que eram a base alimentar de grande parte dos moradores da área aqui evocada? Tais aromas enchiam os ares, sobretudo, ao cair da noite, quando os frugais jantares eram preparados e servidos, após um dia de trabalho para os adultos e de traquinagens para as crianças!

 

Não dá para esquecer o cheiro dos fogões de lenha, que logo pela manhã eram acesos, a fim de que, depois de feito o café e cozido o cuzcuz de fubá de milho, durante todo o resto do dia, se pudesse preparar a alimentação da família, para atender as necessidades de cada membro, desde os mais tenros bebês, aos mais idosos anciãos, cujo aroma se perdeu no tempo, na medida em que foram substituídos pelos práticos e versáteis fogões a gás. Aqueles, mesmo nas residências dos mais pobres, acabaram por se tornar inexoráveis, visto que, a lenha que alimentava o velho, rústico e cada vez menos eficiente fogão, em geral, artesanalmente construído de barros ou tijolos, já não mais se podia encontrar com facilidade nas redondezas.

 

Já cercadas para formação de pastos ou reservas de outra ordem, as áreas onde se obtinha a lenha que alimentava o voraz fogão, se faziam cada vez mais escassas, como escasso se fazia o exalar do cheiro de sua combustão.

 

Para falar de modo mais geral, como esquecer o cheiro do “Café O Barão”, que marcou a memória olfativa daqueles que estudaram no Brasilino Viegas, trabalharam no comércio ou venderam na “Feira do Pau”?

 

Era um cheiro luxuriante, convidativo a acercar-se do balcão do local onde se torrava, moía aquele famoso café da cidade, para lá saborear o cafezinho sempre quente que por muitos anos foi prodigamente distribuído aos freqüentadores daquele estabelecimento. Era uma marca indelével de Alagoinhas, o cheiro do “Café O Barão”, sendo torrado. O centro de Alagoinhas, que já não tem mais esta marca, se caracterizava pelo cheiro do café, pelo movimento de manobra dos trens e pela feira que ocupava toda a área que vai desde os muros do prédio da escola Brasilino Viegas até as imediações do prédio da Prefeitura, quando nas sextas e nos sábados, todo aquele espaço estava tomado por grande variedade de mercadorias e de mercadores, além de imiscuírem-se todos os tipos de aromas, para alegria dos olfatos mais apurados ou repugnâncias dos organismos mais frágeis.

 

Outros cheiros poderiam ser aqui evocados, como o de “Seu “Joãozinho da Injeção”, ou o das  bananas cozidas” quando das febres; ou os oriundos dos banhos com sabonetes Phebo, produto raro, que só aparecia em ocasiões especiais; produtos Gessy; cheiros de roupas lavadas, tão comum no dia a dia deste autor; ou mesmo os cheiros de quintais. Mas é já hora de terminar, deixando aberto o espaço para o leitor fazer suas próprias evocações daqueles cheiros que lhes possam remeter aos idos de sua infância e/ou juventude, talvez já distantes como a do escrevente; talvez ainda menos longínqua, quem sabe!

 

Jose Jorge Andrade Damasceno é doutor em História Social e professor da UNEB, Campus II, Alagoinhas.