sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Ajoelha Herege!"

"Ajoelha, herege""

Desde tempos que perpassam histórias e memórias de caldeus, persas, medos, assírios, egípcios, sumérios, fenícios, gregos, romanos, vândalos, godos, visigodos, germânicos, ibéricos, saxões, mongóis, aztecas, guaranis, tapuias, araucanos, eslavos, e tantos quantos tenham sido os povos que apareceram e/ou desapareceram ao longo dos últimos cinco mil anos, quer no Ocidente, quer no Oriente, as práticas religiosas têm sido úteis no processo coercitivo dos indivíduos e têm servido de modelador e de um determinado tipo de sociedade.
Começando pelos processos de formação e consolidação de seus fundamentos, as grandes religiões de todos os tempos, precisaram de regras, normas e dogmas que pudessem servir de referência para a construção de uma hegemonia, que, em geral, não pudesse vir a ser contestada.
Para tanto, uma das principais de suas armas, sempre foi o estabelecimento de padrões e normas de conduta, em geral forjadas a partir de matrizes religiosas, que, uma vez petrificadas pelo tempo, não tivesse explicações, ou pelo menos, não se fizesse sentir necessidade de se dar alguma explicação sobre o por que e/ou o para quê de se proceder de uma maneira X,ou não se proceder de maneira Y. Uma vez que as regras sociais, estão dadas, cabe aos membros de uma dada sociedade, comportar-se segundo as diretrizes tradicionalmente transmitidas.
O catolicismo romano, mas não só ele, pode ser evocado como um exemplo de grande construtor de um caldo filosófico, cultural, religioso e psico-social, que, uma vez incorporado no “modus vivendi”, no “modus operandi”de cada indivíduo, forja a mentalidade coletiva que passa a “reger” o comportamento de toda a sociedade, independemtemente de haver ou não, explicações razoáveis que permitam compreender este ou aquele gesto; este ou aquele hábito; esta ou aquela expressão, visto que seu uso, se torna obrigatoriamente “pétrio”.
Em viagem recente, um animado diálogo de um casal da poltrona ao lado, despertou a atenção do autor destas linhas, quando em dado momento, ele relatava sua experiência de adolescente, em relação à religião que socialmente lhe fora imposta pela tradição da família. Dizia o rapaz, que vivia um momento de muitas interrogações, para as quais não encontrava respostas satisfatórias. Entre elas, estavam as questões relacionadas às práticas, normas e dogmas da religião que lhe fora ensinada desde menino, para as quais ele buscava sentido e razão de ser.
Ele dizia, entre outras coisas, que se perguntava, enquanto sofria para cumprir as obrigações rituais das celebrações religiosas, “quem disse que tem de ajoelhar”? “Por que todos tem que ajoelhar em determinado momento da celebração da missa”? Sendo obrigado a fazer assim ou assado, o irrequieto adolescente queria saber enfim, qual a razão de ser do ritual mecânico De “ajoelhar. Saíra da Igreja, sem conseguir encontrar as respostas que buscava e com o incômodo de sentir dores nos joelhos, ao se esforçar por cumprir o ditame que não entendia. Se tinha que ajoelhar, como forma de obedecer a Deus e venerar os “Santos”, por qual razão a dor insistia em se fazer presente, em um momento tão “nobre” da celebração?
Em meio a estas e outras questões que o rapaz alongou em sua animada conversa com a jovem que viajava ao seu lado, chega-se ao ponto crucial da narrativa, quando ele conta que, em determinado momento de seus questionamentos juvenis, vencido pela dor e não vendo razão plausível para ajoelhar-se, em uma de suas últimas idas ao dever tradicional da “missa”, decidiu não seguir as ordens litúrgicas dogmaticamente estabelecidas: naquele momento, quando todos seriam convidados a se ajoelhar, ele não o faria. Assim pensou, assim agiu.
No entanto, um homem que se encontrava atrás de si, cioso pelo irrestrito cumprimento do dever eclesiástico, vendo naquela atitude uma “quebra” inaceitável da reverência exigida pelo momento solene, com a autoridade de quem tem nas práticas e nas atitudes dogmáticas recebidas dos séculos, o poder da censura, da punição e da repressão das condutas desviantes ordenou-lhe: “ajoelha, herege!”
Aquele misto de ordem e reprimenda, exerceu um grande e decisivo impacto no processo de formação filosófico/religiosa daquele jovem. A partir daquele momento, ele lançou-se decisivamente na busca das soluções para as questões que iniciara, não mais no estreito espaço dado conglomerado de normas de conduta, elenco de dogmas e emaranhado de normas às quais estão sujeitos os indivíduos e os grupos de indivíduos rotulados de “católicos Romanos, mas enveredara-se nas outras plagas mais amplas da diversidade do pensamento filosófico secular e “herético”.
Assim, a censura, a restrição, a repressão, ou a punição é exercitada a partir das regras, normas e ditames estabelecidos com base nos cânones religiosos. É a partir de tais elementos, que os membros da sociedade exercem vigilância sobre seu próximo e estão prontos a condenar as atitudes, palavras, gestos e práticas que destoem dos padrões de conduta religiosa e socialmente tomados como padrões aceitáveis e corretos.

Jorge Damasceno – Professor de História da Universidade do Estado da Bahia – Campus II, Alagoinhas.
historiadorbaiano@gmail.com