sábado, 27 de maio de 2023

Memórias de Maio II

Memórias de maio II – Mãos que outra vez se entrelaçam

 

O outono é uma estação em que o corpo e a alma estão sendo preparados para a chegada do inverno, o que faz dela uma ponte entre o verão, com seus cheiros e sabores bem característicos, algumas vezes tórrido e seco, que permite a realização de inúmeras empreitadas impulsionadas por um farfalhar de sons, ventos e folguedos e, o inverno, mais frio, mais lento e  mais calmo. Nela, aqueles que são mais propensos à solidão e à circunspecção, fazem longas incursões imaginativas e profundas reflexões, que perpassam todo o seu interior, alcançando o âmago da alma, onde estão depositados os inúmeros sedimentos do viver pretérito, do amar, do querer sem poder, do desejar sem ter; das ilusões perdidas, das dores muitas vezes sentidas; onde residem as partículas de saudade, que vez por outra são revolvidas pelas reminiscências, evocadas ou não, que fazem subir à superfície lembranças que se pensava, há muito apagadas.

No outono, os cheiros de terra molhada; de folhas ao vento, bem como os sons dos pássaros e do ambiente como um todo, juntamente com os sabores bem mais leves e demoradamente apreciados, faz erguer os rememorares de há muito sufocados, que, uma vez acionados por alguma voz doce que chega aos sentidos, desdobra-se em torrentes nostálgicas que impelem o coração até lugares já não visitados, há algum tempo.

É assim que, outra vez em maio, este escrevedor volta ao lugar que dez anos antes, deixara triste e com o gosto amargo de se sentir tal qual aquela ave, que fora abatida em pleno voo, quando acreditava se dirigia a um lugar de floração viçosa, de frutos saborosos, que imaginava lhe agradaria o paladar, saciaria a sua sede de néctar e atiçaria o seu olfato com um suave perfume. Ou então, usando outra alegoria, ele volta a pisar naquele solo, que deixara dez anos antes, cabisbaixo e com aquela sensação experimentada pelo automobilista, que, a despeito de liderar toda a jornada, sofre pane seca, pouco antes de completar a volta que o levaria ao topo do podium.

Outra vez um sábado; um sábado em que chovia torrencialmente, se daria um reencontro tão longamente esperado. Ali, se desfaria um imenso hiato, aberto ao deixarem o Riomar, naquele memorável maio, que já se fazia decano. O outono se fez ainda mais presente, visto que a chuva quase não deu tréguas, contudo, sem impedir que aquelas mãos voltassem a se entrelaçar.

Entre duas xícaras de café e um suco de laranja, transcorreu aquela tarde; chegou aquela noite; o passar do tempo não foi percebido e, os dois puderam conversar; puderam sentir o perfume um do outro; puderam sorrir... ele, pôde fazer voar a imaginação; experimentar a emoção de outra vez estar ao lado dela; de outra vez pensar nela, não mais tão distante quanto ela estivera por todo este tempo; não mais mediado pelos meios de comunicação moderna. Não. Ela estava ali, ali ao alcance de suas mãos; sua voz lhe chegava aos ouvidos, não pelo telefone ou pelo whats App; mas, ali, ao lado; na cadeira ao lado. Os instantes de silêncio, ela interrompia indagando:

- No que está pensando?

E ele, apanhado em flagrante delito do coração, respondia, quase desconcertado:

- Em nada!

Ora, naquele momento a sua timidez irreversível se apresentou intrépida, fazendo com que ele se sentisse, como um menino que, mal dissimuladamente, tenta fechar nas suas mãos trêmulas, os caramelos subtraídos da frasqueira, sem que houvesse tempo de escapar à chegada súbita de quem os guardara!

Assim, aquele “nada” dado como resposta, foi uma imposição da timidez, que nunca o deixa falar, quando precisa falar; quando quer falar; quando deseja falar: o que sente, o que anseia, o que anela daquele alguém que ali está perguntando:

- “No que está pensando”? “O que está maquinando”? “Por que o silêncio”?

E a resposta, imposta é:

- “Nada”, “nada”, “por nada”!

Ah, esta timidez paralisadora! Silenciadora! Não haveria um remédio para, ao menos, neutralizar os seus efeitos que tanto abate o espírito de quem sofre com ela?  Como se desvencilhar do estupor que ela provoca, no momento mesmo em que se encontra frente a frente, lado a lado, desfrutando do instante há muito esperado, imaginado?

Aquele ensejo de reencontro, embora tenha sido muitas vezes cuidadosamente elaborado no espírito daquele que tanto o desejara, ao se lhe afigurar como algo que ali estava, diante de si, o intimida e paralisa: a voz quase não saem; as palavras teimam em não se deixar manejar; as frases mal articuladas, rebentam de lábios quase cerrados, o que, certamente, dificulta o entendimento de quem as ouve...

Como das outras vezes, várias foram as músicas trocadas, em uma espécie de preparativo para o novo entrelaçar de mãos. Entre elas, se poderia escolher duas, entre as que um mandou para o outro.

Ela, curiosa e arguta caçadora de "amenidades", descobrira uma que ele nunca houvera ouvido, embora seja apaixonado por músicas e, tenha um bom número delas.

 

https://youtu.be/RhmCA7FZKRE

 

A outra, ele também nunca ouvira antes – embora tenha sido gravada nos últimos anos do século XX -, mas, por entender que se encaixava perfeitamente no interregno entre os dois momentos até então vividos, mandou para ela.

 

https://youtu.be/dFE4V5qSawY

 

José Jorge Andrade Damasceno – maio de 2023

historiadorbaiano@gmail.com 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Memórias de Maio - I

Memórias de maio – mãos que se enlaçaram

 

Pleno de reminiscências, maio tem sido pródigo em evocar um bom número delas. Já se escreveu sobre algumas; outras ainda aguardam a sua vez. Talvez, tais reminiscências aflorem pelo fato de ser um mês outonal, momento em que o inverno se aproxima e, o clima ameno, desperta memórias que se fazem recônditas no fundo da alma, como se quisesse indicar o aprofundamento da solidão, marca indelével deste escrevedor, avultada por sua escassa sociabilidade, aprofundada pelo inverno frio e chuvoso que se avizinha. Nele o tempo parece se arrastar ainda mais lentamente; o corpo sente mais intensamente a falta de calor.

Corria o ano da graça de 2013 e, chovia torrencialmente em Aracaju, como se aquele fosse um “Toró de lágrimas”, que, depois de amainar e se tornar “água corrente”, acabaria por molhar não apenas a superfície; mas, evidentemente que então não se sabia, acabaria por molhar caprichosamente uma plantinha, ainda recém germinada no coração, que mais tarde, se desenvolveria e se tornaria árvore.

A despeito do temporal que caía intermitente e impassível, eles saíram de diferentes e distantes espaços e dirigiram-se ao Riomar, para enfim, terem um encontro pessoal, real, concreto e palpável, no mundo real das pessoas e das coisas. Fora o momento mágico em que as suas vozes foram ouvidas mutuamente, sem a intermediação de equipamentos eletrônicos, sínteses de voz, leitores de tela... Sim: eles ali estavam, frente a frente; lado a lado; como até então, não puderam estar.

Na memória, ficou o momento da apresentação; o sorriso que aflorou naquele rosto que a tristeza teimava em moldar com a dureza e a circunspecção do tempo de asperezas e labores permanentes...Levados a um local onde pudessem conversar, ali se deixaram ficar, talvez, para se poderem certificar que de fato estavam ali, um juntinho do outro, separados por uma mesa onde repousavam duas latas de refrigerante, que aliás, custaram a ser esvaziadas...; ela, com suas mãozinhas ágeis, delicadas e irrequietas, logo quebrou o gelo do toque, do contato tátil, da construção cerebral dos elementos constitutivos daqueles seres reais que se encontravam ali, quase falando pelo silêncio; ele, tímido por natureza e intimidado pela graciosa presença daquela flor tão perfumada quanto meiga e doce; aspirava as suas palavras como se as precisasse reter, ou pudesse reservar para não sucumbir ao tempo que demoraria para outra vez as poder ouvir, tão perto como as ouvia naquele momento de grande enlevo e encantamento.

Mas, como já dizia um cantor da “jovem guarda”: “... tudo que é bom dura pouco”, o tempo passara veloz e, chegara a hora do encantado e da encantadora serem outra vez separados. Separados, imaginava ele, para se voltarem a encontrar no dia seguinte e, assim, pensava, ele falaria destemidamente tudo que quisera, que precisava e que desejara falar para ela; tudo que imaginara e, até ensaiara dizer para ela, sem freios, medos, acanhamentos, reservas... sobre o que sentia por ela; como se encantara pelo seu jeitinho de “fada”; como fala o poeta às suas “escolhidas” para o seu amor...

Mas “quá”! Ele a procurou; para ela ele telefonou; escreveu; esperou que respondesse ou que atendesse... Nada; um silêncio profundo se fez e, logo ele voltou ao seu habitual mundo vazio e solitário, mundo no qual sempre habitou e, por poucas vezes dele saiu.

No entanto, a lembrança daquela noite chuvosa de sábado, teimava em não se deixar apagar, a despeito de alguns esforços feitos neste sentido, uma vez que a “esperança” de um “novo amanhecer”, acabara por se desvanecer, ainda na madrugada do domingo, quando o sono quase não veio, tanto quanto não vieram as respostas que ele buscara. Os seus cabelos encaracolados; o formato do seu queixo; a maciez das suas mãos, teimaram em não lhe sair das pontas dos dedos, mesmo não mais tendo voltado a tocar neles. Parecera que houvera horas e horas de toques, como se a superfície do tocado se tivesse transformado em profundidades que as mãos que se entrelaçaram construíram e fizeram fortes aqueles vestígios tão frágeis, como se tivessem passado anos a elaborar e reelaborar aqueles sinais táteis no profundo do ser que a tocara...

Como se tem feito em outras rememorações, aqui se quer deixar marcada a música que permeou a memória deste escrevedor, no momento em que se conversava a respeito do encontro e enquanto o esperava, ansiosamente. Foram muitas as músicas trocadas entre eles, nos dias que antecederam à efeméride aqui brevemente trazida da memória. Entre elas, certamente, a interpretação de José Augusto – “Por Eu ter Me Machucado” -, expressa melhor o momento emocional que ele vivia e a expectativa que criara em torno do encontro. E, como o leitor pôde perceber no desfecho do arrazoado, acabou por ser uma espécie de “prévia” alusão aos desdobramentos posteriores.

 

https://youtu.be/4C1TkY9W0ds

 

José Jorge Andrade Damasceno

historiadorbaiano@gmail.com

 

25 de maio de 2023.