Memórias de maio II – Mãos que outra vez se entrelaçam
O outono é uma estação em que o corpo e a alma estão sendo
preparados para a chegada do inverno, o que faz dela uma ponte entre o verão, com
seus cheiros e sabores bem característicos, algumas vezes tórrido e seco, que
permite a realização de inúmeras empreitadas impulsionadas por um farfalhar de sons,
ventos e folguedos e, o inverno, mais frio, mais lento e mais calmo. Nela, aqueles que são mais
propensos à solidão e à circunspecção, fazem longas incursões imaginativas e
profundas reflexões, que perpassam todo o seu interior, alcançando o âmago da
alma, onde estão depositados os inúmeros sedimentos do viver pretérito, do
amar, do querer sem poder, do desejar sem ter; das ilusões perdidas, das dores
muitas vezes sentidas; onde residem as partículas de saudade, que vez por outra
são revolvidas pelas reminiscências, evocadas ou não, que fazem subir à
superfície lembranças que se pensava, há muito apagadas.
No outono, os cheiros de terra molhada; de folhas ao vento, bem
como os sons dos pássaros e do ambiente como um todo, juntamente com os sabores
bem mais leves e demoradamente apreciados, faz erguer os rememorares de há
muito sufocados, que, uma vez acionados por alguma voz doce que chega aos
sentidos, desdobra-se em torrentes nostálgicas que impelem o coração até
lugares já não visitados, há algum tempo.
É assim que, outra vez em maio, este escrevedor volta ao
lugar que dez anos antes, deixara triste e com o gosto amargo de se sentir tal
qual aquela ave, que fora abatida em pleno voo, quando acreditava se dirigia a
um lugar de floração viçosa, de frutos saborosos, que imaginava lhe agradaria o
paladar, saciaria a sua sede de néctar e atiçaria o seu olfato com um suave perfume.
Ou então, usando outra alegoria, ele volta a pisar naquele solo, que deixara
dez anos antes, cabisbaixo e com aquela sensação experimentada pelo automobilista,
que, a despeito de liderar toda a jornada, sofre pane seca, pouco antes de completar
a volta que o levaria ao topo do podium.
Outra vez um sábado; um sábado em que chovia torrencialmente,
se daria um reencontro tão longamente esperado. Ali, se desfaria um imenso
hiato, aberto ao deixarem o Riomar, naquele memorável maio, que já se fazia
decano. O outono se fez ainda mais presente, visto que a chuva quase não deu
tréguas, contudo, sem impedir que aquelas mãos voltassem a se entrelaçar.
Entre duas xícaras de café e um suco de laranja, transcorreu
aquela tarde; chegou aquela noite; o passar do tempo não foi percebido e, os
dois puderam conversar; puderam sentir o perfume um do outro; puderam sorrir...
ele, pôde fazer voar a imaginação; experimentar a emoção de outra vez estar ao
lado dela; de outra vez pensar nela, não mais tão distante quanto ela estivera
por todo este tempo; não mais mediado pelos meios de comunicação moderna. Não.
Ela estava ali, ali ao alcance de suas mãos; sua voz lhe chegava aos ouvidos,
não pelo telefone ou pelo whats App; mas, ali, ao lado; na cadeira ao lado. Os
instantes de silêncio, ela interrompia indagando:
- No que está pensando?
E ele, apanhado em flagrante delito do coração, respondia, quase
desconcertado:
- Em nada!
Ora, naquele momento a sua timidez irreversível se
apresentou intrépida, fazendo com que ele se sentisse, como um menino que, mal dissimuladamente,
tenta fechar nas suas mãos trêmulas, os caramelos subtraídos da frasqueira, sem
que houvesse tempo de escapar à chegada súbita de quem os guardara!
Assim, aquele “nada” dado como resposta, foi uma imposição
da timidez, que nunca o deixa falar, quando precisa falar; quando quer falar;
quando deseja falar: o que sente, o que anseia, o que anela daquele alguém que
ali está perguntando:
- “No que está pensando”? “O que está maquinando”? “Por que
o silêncio”?
E a resposta, imposta é:
- “Nada”, “nada”, “por nada”!
Ah, esta timidez paralisadora! Silenciadora! Não haveria um
remédio para, ao menos, neutralizar os seus efeitos que tanto abate o espírito
de quem sofre com ela? Como se
desvencilhar do estupor que ela provoca, no momento mesmo em que se encontra
frente a frente, lado a lado, desfrutando do instante há muito esperado, imaginado?
Aquele ensejo de reencontro, embora tenha sido muitas vezes cuidadosamente
elaborado no espírito daquele que tanto o desejara, ao se lhe afigurar como
algo que ali estava, diante de si, o intimida e paralisa: a voz quase não saem;
as palavras teimam em não se deixar manejar; as frases mal articuladas,
rebentam de lábios quase cerrados, o que, certamente, dificulta o entendimento
de quem as ouve...
Como das outras vezes, várias foram as músicas trocadas, em
uma espécie de preparativo para o novo entrelaçar de mãos. Entre elas, se poderia
escolher duas, entre as que um mandou para o outro.
Ela, curiosa e arguta caçadora de "amenidades", descobrira uma
que ele nunca houvera ouvido, embora seja apaixonado por músicas e, tenha um
bom número delas.
https://youtu.be/RhmCA7FZKRE
A outra, ele também nunca ouvira antes – embora tenha sido
gravada nos últimos anos do século XX -, mas, por entender que se encaixava perfeitamente
no interregno entre os dois momentos até então vividos, mandou para ela.
José Jorge Andrade Damasceno – maio de 2023
historiadorbaiano@gmail.com