domingo, 8 de novembro de 2020

O Voto é "antes de tudo" um direito

 

O voto é antes de tudo, um direito do cidadão – uma responsabilidade de cada eleitor.

 

 

O Brasil construiu a ideia de voto “obrigatório”, talvez por ter uma democracia com raízes pouco profundas, com o fito de evitar que os mais politizados – ou aqueles que resolvessem trocar o seu voto por quinquilharias -, escolhessem por aqueles que não julgassem importante comparecer aos locais de votação, para exercer ali o seu direito de cidadão. Isto equivale a dizer que, se você não escolher, outros escolherão por você e, o seu direito a corrigir uma “escolha” que não fez ou não quis fazer, só poderá voltar a ser exercido quatro anos depois.

 

Alagoinhas tem um histórico eleitoral muito complexo, na medida em que se observa a trajetória das eleições nos últimos quarenta anos. Em 1982, mesmo com o apoio do PCdoB dado ao candidato João Paulilo, Judélio Carmo foi eleito para governar a cidade por seis anos. Sua intervenção no processo urbanístico da cidade ainda se faz perceber, na medida em que estruturou a urbe alagoinhense para receber diversos equipamentos que ainda hoje conformam a paisagem urbanística do município.

Em 1996, como muitos dos leitores devem lembrar, a cidade elegeu o pior gestor que esteve à frente do município, considerando-se o período mencionado. Ao concluir o mandato, além de nada ter sido feito de duradouro, a cidade estava mergulhada no lixo, administrativamente afundada em dívidas, inclusive com os seus trabalhadores há vários meses sem os seus salários e, os demais setores vitais, inteiramente combalidos.

A eleição de 2008, repetida em 2012, apenas para refrescar a memória dos mais velhos e informar aos mais jovens, marcou o retrocesso no cuidado com a coisa pública. Os dois mandatos foram permeados por má administração e pouco transparente gestão dos recursos públicos, implicando em um trabalho pouco voltado para o benefício da população como um todo, ocasionando obras megalomaníacas e grandiloquentes, que só beneficiariam aquele espectro dos munícipes que sempre desfrutaram do melhor quinhão do conforto propiciado pela sua posição econômica e social e, do bem-estar da localização de suas moradias.

Portanto, é preciso salientar que o voto, embora seja um direito do cidadão é, sobretudo, um exercício que deve ser calcado na responsabilidade. O voto em branco não pode ser entendido como uma decisão sábia; tão pouco o voto anulado, significa um ato inteligente. Ambas as ações apontam para uma fuga daqueles que não querem assumir posições claras, no que tange às suas escolhas. Com tais atitudes, estão abrindo mão do direito à escolha, e, por via de consequência, recusando o direito ao “jus esperniandi”.

Por estas e ainda muitas outras razões, crê-se que as eleições para prefeitos e vereadores deveriam ser tratadas com muito mais atenção do que as demais. Elas são o instrumento de que os eleitores dispõem para dar à sua cidade a oportunidade de ajudar no processo de transformação e de desenvolvimento do seu local de moradia, onde moureja no dia a dia, no intento de construir uma urbe limpa, saneada, com boas escolas e com atendimento básico à saúde.

É assim que os eleitores ganham a cada quatro anos a chance de escolher o seu prefeito. Para aproveitar bem a oportunidade que é dada ao cidadão de fazer uma escolha que traga segurança aos munícipes de que se fará bom uso dela, cada eleitor deve aproveitar o ensejo para fazer as suas escolhas baseadas em sua consciência cidadã. as propostas dos candidatos devem ser colocadas de forma clara, e o eleitor deve:

- Julgar racionalmente aquilo que lhe é apresentado;

- Observar a postura do candidato propositor, considerando a seriedade com que se dirige em busca do voto;

- Avaliar, criteriosamente o discurso tanto do candidato que se dirige ao eleitor propondo intervenções urbanas, quanto a viabilidade delas;

- Questionar as propostas, considerando de modo equilibrado a sua capacidade de gerenciar os recursos financeiros de que disporá;

- Usar o seu voto para fazer a sua escolha, não como moeda de troca;

- Impedir que sejam eleitos candidatos que nada proponham de plausível – que aliás é o que faz a grande maioria deles -;

- Meditar friamente diante do que lhe for apresentado, para enfim, tomar a decisão.

Portanto, em 15 de novembro de 2020, é preciso sepultar de uma vez a carreira política daquele que esteve à frente da gestão municipal por oito anos. Ele deveria ser rejeitado nas urnas, não só pela péssima gestão da coisa pública quando governou com os seus amigos e para os seus amigos, como também pela sanha de querer voltar ao paço municipal, sabe-se lá porque e para quê!

 

Jorge Damasceno – 08 de novembro de 2020.

Alagoinhas em vésperas de eleições - 1988

 

Alagoinhas em Vésperas de eleições – 1988 – Nova Carta, velhos jogadores.

 

Na terceira de quatro crônicas em que o seu autor se propõe a fazer algumas incursões acerca de momentos “pré-eleitorais” em Alagoinhas, se procurará promover um rápido rememorar do ano em que o então prefeito Judélio de Souza Carmo(1945-2009) completaria o segundo mandato que lhe fora conferido pelo escrutínio realizado em 1982, que tivera a duração de seis anos e que fora iniciado exatamente dez anos após o tão conturbado primeiro exercício como alcaide, transcorrido entre 1973-1976. Naquele segundo governo, ele implementou algumas intervenções no processo urbanístico da urbe alagoinhense que ainda hoje podem ser percebidas, na medida em que estruturou a cidade para receber diversos equipamentos que ainda hoje conformam a paisagem urbanística do município.

O ano de 1988 chega para ser vivido sob a expectativa da conclusão dos trabalhos da assembleia Nacional Constituinte, que apresenta como parte dos longos debates havidos em todo o seu transcurso, a revogação da Censura – que prevaleceu por toda a vigência do Regime Militar sobre as artes e diversas atividades culturais e intelectuais -, da Tortura – ostensivamente praticada contra presos políticos e/ou suspeitos de “subversão” da “ordem e dos costumes” -, bem como o reestabelecimento da “liberdade” de imprensa, de expressão e de criação. Nas olimpíadas e no automobilismo, Aurélio Miguel e Ayrton Senna ganham medalha de ouro e se torna campeão mundial, respectivamente. É também naquele ano que a siderúrgica de Volta Redonda é invadida pelo exército brasileiro, com o objetivo de desalojar operários em greve, cujo resultado foi de 3 operários mortos e nove gravemente feridos. E no último dia de dezembro, um barco de turismo naufraga na Baía de Guanabara, deixando cinquenta e cinco mortos.

Naquele mesmo ano de 1988, ainda como desdobramento dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, a chamada “Constituição Cidadã” foi promulgada em 05 de outubro, fazendo com que as instituições do País passassem a ser regidas por aquele novo diploma legal, que nortearia as ações públicas perpetradas no âmbito do Estado de direito. Era uma nova “carta magna” que se destinava a reestruturar o ordenamento jurídico do País, esgarçado pelo regime de exceção que se impôs sobre o Brasil por vinte e um anos, indo um pouco mais além, já que a “Nova República” fora conduzida até então, sob a égide da Carta de 1967/69.

No entanto, a despeito da promulgação da “nova” Carta Magna, o jogo eleitoral de 1988 já estava em andamento e, os times alinhados em torno dos velhos jogadores que os formavam. Marcadas para o dia 15 de novembro de 1988, aquelas eleições transcorreriam pouco mais de quarenta dias após a promulgação do novo texto constitucional.

Assim, o embate pela sucessão de Judélio seria travado por velhos jogadores da cena política alagoinhense, alguns deles travestidos de novos contendores – ao menos, os principais dentre eles -, apresentando-se aos eleitores, como propositores de novos rumos para a cidade que pretendiam governar a partir de 1989.

O próprio então prefeito apresentara um candidato à sua sucessão, que, no entanto, fazia a sua campanha eleitoral, apresentando-se como “diferente” daquele que o apoiava.

Embora houvesse outros postulantes ao Paço municipal – para citar alguns exemplos, teve o candidato pelo PT, Péricles Magalhães, Antônio Carneiro, pelo PFL e a candidata Maria Risélia, cujo partido este autor não se lembra -, a refrega eleitoral foi travada, efetivamente, pelo bancário José Francisco dos Reis, pelo PSB, paradoxalmente apoiado pelo então ocupante da principal cadeira do executivo municipal.  O paradoxo está no fato de “Chico Reis”, como era conhecido na cidade, ter sido o algoz de Judélio Carmo, durante o seu primeiro mandato. Na condição de vereador pela Arena, ele requerera e obtivera o impeachment do cargo de prefeito, – o que trouxera grandes transtornos para Judélio se fazer reinvestir no cargo e concluir o mandato que lhe fora conferido nas urnas.

O outro contendor no embate eleitoral daquele ano, era o comerciante João Paulilo – que contara com o igualmente paradoxal apoio do PCdoB. Tal apoio foi articulado pela cúpula diretiva do “partidão”, formada por comunistas “históricos” como Antônio Fernando (Aranha”, Gavazza, além de Pedro Marcelino, que iniciava o seu ciclo como dirigente partidário.

Tendo recebido apoio de uma parcela significativa da sociedade alagoinhense; contando com o não menos expressivo prestígio relacionado à sua atuação como funcionário do banco do Brasil, concomitante com a sua participação no rádio esportivo local, Chico Reis fez-se eleger com uma grande margem de votos.

No entanto, sua eleição também deve ser creditada ao trabalho desenvolvido por Judélio, não só emprestando-lhe apoio como candidato à sua sucessão, mas, principalmente, com o seu desempenho à frente do governo municipal, durante todo o mandato. Este escrevente não tem memória de nenhum outro prefeito, que tenha governado a cidade nos últimos 50 anos, que tenha conseguido fazer o sucessor, direta ou mesmo indiretamente.

 

Jorge Damasceno – 08 de novembro de 2020.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Há quinze anos, em um dia como o de hoje - 06 de novembro de 2005.

 

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar! - republicação

 

José Jorge Andrade Damasceno

professordamasceno@gmail.com

historiadorbaiano@gmail.com

 

 

Este texto foi escrito originalmente em 2012, em um dia de junho que se levantou um voluptuoso rio de saudades, que envolveu completamente este que ora escreve estas linhas. Ele será republicado em sua íntegra, acrescido dos links para as músicas comentadas e de um “Post scriptum”, com um pequeno comentário do seu autor.

 

 

Era um dia já distante, no segundo mês da Primavera de 1935. Lá para as bandas de Piritiba, ou mesmo de Andaraí, região de Jacobina, nascia Armanda, ou Amanda, como gostava de ser chamada e, nome que parece ter adotado para si. A primeira das três filhas de Vicente com Epifania, trazendo consigo esperanças. Esperanças que talvez seus pais nutrissem. Talvez não fossem grandes, grandiosas..., mas, esperanças. Ou quem sabe, para aquele lavrador, não seria um desgosto por ser uma filha e não um filho?

Cresce a menina e, ainda na infância, se lhe vai a mãe e, se lhe impõe uma madrasta. A nova mulher do seu pai, certamente não lhe tivera o amor que lhe teria sua finada mamãe. Corre o tempo; crescem as três, em meio a travessuras, brincadeiras, peraltices folguedos infantis;mas também em meio a intrigas, brigas; surras; queixas... Sem letras, sem cultura; só a cultura da luta pela sobrevivência, já se apresentava diante delas, visto não terem o apoio materno, o agrado paterno; nem mesmo a possibilidade de educarem-se para a vida.

Ah Amanda... Aos dezoito se desencaminha; como ela dizia dera o “passo errado”. Ganhara uma brutal reprimenda, o olho da rua e a separação de suas duas irmãs, como conseqüência da decisão de se dar a alguém que não fosse aquele que lhe faria esposa!

E daí para frente, só sofrer; só tentar quantas soluções e alternativas lhe aparecessem, muito poucas, para aquela que sequer sabia “garatujar” seu nome! Não se sabe como, chegara em Salvador, onde fora doméstica; do mesmo modo não sabido, acabara em Alagoinhas, onde se envolvera com homens que vieram a ser pais dos três filhos que vingaram!

E para os abrigar, alimentar, vestir, calçar, instruir? A única profissão que se lhe apresentou desempenhar foi a de “lavadeira de ganho”, que apenas requeria a força dos jovens braços e o cuidado com as peças que lhes fossem confiadas para lavar, passar, engomar e entregar, de casa em casa, a cada uma de suas ”patroas”.

Tinha vinte e cinco anos completos, quando lhe nasceu o terceiro dos cinco filhos que tivera. Quase dois anos depois, aquele se tornara o que lhe demandaria mais preocupações, desvelos e esforços, pois ficara cego e, seria mais um encargo que viria sobre ela, pois, tão cedo, não poderia ajudar-lhe na faina pelo pão, pelo abrigo e demais necessidades que a sobrevivência imporia a ela.

Vencida mais aquela desdita em sua vida, dona Amanda se tornava hábil em desempenhar as atividades braçais que se lhe apresentara como forma de bastar a si e aos seus: tinha já sua freguesia; empunhava o ferro de brasas, com esmero e competência, propiciando-lhe demanda por seu serviço.

E nas mornas tardes de quinta e sexta-feira, quando passava as roupas lavadas entre a segunda e a quarta, embatia-se no trabalho de passar e engomar, tarde a fora, noite a dentro, entre soprares de ferro, reposição de carvões e brasas... Quase sempre em pé, sentando-se só para as parcas e rápidas refeições, dividida entre os afazeres do ganho e o cuidado com os filhos, ia dona Amanda, de semana em semana, de mês em mês, de anos em anos, enfrentando sua lida, quem sabe, esperando que algum dia, pudesse vir a ver algo melhor na vida.

Mas, a ela não faltou a melodia; os versos do cancioneiro, talvez aquelas músicas ouvidas quando ainda menina-moça, em meio às angústias de órfã de mãe.

E, a despeito das exigências que a vida e o trabalho que lhe esgotava as forças físicas, em seus lábios desfilavam pedaços de versos, ou mesmo trechos inteiros, que eram cantados em voz que exprimia sofrimento e, quem sabe, esperança de melhor sorte.

Boleros que exprimiam tristezas, desilusões e desventuras de amores, talvez exprimissem mesmo o seu viver de mulher que nunca tivera “sorte” no amar. Na memória de quem escreve estas linhas, a lembrança viva de sua voz cantando uma música que parecia ser ela própria a autora, cheia de dor e dolência, talvez pelas marcas das feridas que já marcavam aquela alma ainda tão moça, mas já esmagada pelo peso do viver quase errante, de quem fora lançada ao mundo, ainda tão precocemente, obrigada que fora a enfrentar a vida, sem o preparo para entender as suas armadilhas e, preencher as suas exigências:

“Vem o cigana bonita,

 ler o meu destino,

 que mistérios tem;

“Tu com estes olhos de quem vê o amor da gente;

 põe nas minhas mãos, o teu olhar ardente;

 E, procura desvendar o meu segredo;

a dor, cigana, do meu amor;

“Mas, nunca digas oh Zíngara,

que ilusão me espera

qual o meu futuro!”

Só aquela por quem vou vivendo assim à toa;

 tu dirás se a sorte será má ou boa;

Para que ela venha consolar-me um dia;

 a dor, cigana, do meu amor

https://youtu.be/v8JAsBiBGWs

Se lhe fosse perguntado, ela pouco ou nada saberia sobre os intérpretes e compositores das melodias que cantarolava; ainda menos conhecia as circunstâncias e contextos nos quais foram escritas aquelas letras, que encontravam em seu espírito não alcançado pelos laivos de cultura e letramento, terreno fértil no qual espalhavam suas significações. Nunca tivera lido nada sobre quaisquer movimentos culturais, artísticos, visto seu total analfabetismo. Seu primeiro contato com livros, só acontece quando contava mais ou menos trinta e cinco anos, por meio do “Movimento Brasileiro de Alfabetização”, o (MOBRAL).

Como que se embalasse pelas lembranças e estas a ajudasse a encarar sua faina com um pouco mais de resignação, diante dos percalços que se lhe oferecia a vida difícil de uma trabalhadora braçal, entoava esta de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que talvez ela conhecesse pela imortal interpretação de Linda Batista (1919-1988):

https://youtu.be/7xi9hi1NnBA

“Eu gostei tanto,

Tanto quando me contaram;

Que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.

É que quando os amigos do peito pormim,

Perguntaram;

Um soluço cortou sua voz e não lhe deixou falar;

“Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram,

Que tive mesmo,

De fazer um esforço

Pra ninguém notar.

“O remorso talvez seja a causa do seu desespero;

Você deve estar bem consciente do que praticou;

Em me fazer passar essa vergonha, como um o companheiro

E a vergonha, é a herança maior, que meu pai me deixou;

“Mas enquanto houver voz em meu peito eu não quero mais nada,

Só vingança, vingança, vingança, aos santos clamar”

E você há de rolar como as pedras,

Que rolam na estrada;

Sem ter nunca, um cantinho de seu,

Pra poder descansar”.

 

Talvez nos dias em que alguma saudade lhe explodisse no peito, cantarolava este bolero de Waldick Soriano (1933-2008), típico cantor de amores frustrados:

https://youtu.be/eK3D2jLHNVw

“Hoje que a noite está calma, e que a minha alma esperava por ti...

Apareceste afinal, torturando este ser que te adora

Volta, fique comigo só mais uma noite;

Quero viver junto a ti,

 volta meu amor,

fique comigo,

 não me desprezes,

a noite é nossa

e o meu amor pertence a ti;

Hoje eu quero paz, quero ternura, em nossas vidas; quero viver por toda vida, pensando em ti.

 

E dona Amanda, sempre de posse de seu ferro de brasas, pouco depois substituído pelo elétrico, mais prático e, que dispensava os assopros e usos de abanos para voltar a esquentar satisfatoriamente, ainda arriscava um samba, como este de Benedito Lacerda (1903-1958) e David Nasser (1917-1980), imortalizado na clássica voz de Nelson Gonçalves (1919-1998):

https://youtu.be/41gdJzBDPrA

“Vestida de azul e branco,

  Trazendo um sorriso franco

Num rostinho encantador;

Rapidamente conquista meu coração sem amor;

Eu que trazia fechado,

Dentro do peito guardado

Meu coração sofredor;

Estou Bastante inclinado

A entregá-lo ao cuidado,

Daquele brotinho em flor

“Mas a Normalista linda, não pode casar ainda, só depois de se formar;

Eu estou apaixonado, o pai da moça é zangado, o remédio é esperar”.

 

Era a partir daquelas músicas que lhe saltavam as lembranças, que ela contava aos filhos, algumas passagens de sua vida; momentos de sua infância cheia de desditas familiares,que explodiam em sua memória, trazendo à tona, as recordações do lugar onde nascera e vivera, toda infância e pequena parte da juventude, se não esplendorosa, ao menos ao lado dos que eram seus.

Desde que expulsa de casa, nunca mais teve com quem contar em quem se ancorar, onde se abrigar, a não ser patrões, estranhos; amores momentâneos e ilusórios...

Era tudo isto evocado do fundo do seu silêncio, a partir daquelas músicas que, em meio as asperezas da vida de lavadeira de ganho, ela podia cantarolar, em um misto de alegria, nostalgia e melancolia, ao cair da tarde das quintas ou sextas-feiras.

Mas, pouco antes de completar trinta e nove anos, naquele junho de 1974, em uma noite fria de inverno, a morte do seu primogênito, ainda moço, aquele que a ajudava no arrimo familiar, fê-la calar de vez sua voz para o canto, dando lugar ao pranto,que nunca mais pôde enxugar.

 

Post scriptum:

 

Há já quinze anos, aquela voz foi calada para sempre. Aos seis dias de novembro de 2005, não mais falou, não mais cantou, não mais mourejou aquela mulher que mal completara setenta de existência, ingressou na eternidade, separando-se deste que hora escreve estas linhas prenhes de saudade. Era ela a razão de tanto esforço que este escrevedor fizera para alcançar os títulos de mestre e doutor, embora para a sua compreensão fosse algo difícil, mas enxia aquela criatura de orgulho pelo seu filho que, não obstante tenha lhe causado tanta aflição, pudera promover ‘lhe a tranquilidade de morrer, sabendo que aquele filho “disoficiente visual” não ficaria à mercê da irmã mais velha e/ou à mercê da caridade pública, o que daria no mesmo!

Durante todo aquele ano de 2005, parte dele passado cursando o doutorado em Niterói, este filho de dona Amanda ouvira  uma belíssima música cristã, genuína, que acabou sendo a sua música de consolo, enquanto chorava a saudade, sofria a dor da separação definitiva e lamentava a perda daquela que fora a única mulher que a ele amou e que por ele foi amada: a sua mãe. Parecia que o seu espírito estava sendo preparado para suportar o que se avizinhava. Uma rádio de Curitiba, escutada através da internet, executava aquele belíssimo hino, em várias ocasiões durante o dia; e, a vontade de chorar ao ouvi-lo, parecia indicar estar próxima alguma coisas que traria grande tristeza àquele ouvinte virtual da BBNRádio.

O então nonagenário cantor evangélico, Feliciano Amaral (1920-2019), com sua magistral interpretação e inconfundível voz, interpretava “Não há melhor Amigo”, que soava como um bálsamo colocado sobre o coração que sangrava. Ainda hoje, ao ouvir aquela maviosa melodia, parece estar vivendo aqueles dias de pranto e tristeza.

 

- Não há melhor amigo,

- Do que Cristo meu Senhor,

-Nos transes que passei

- Foi o meu consolador;

- Tranquilo e paciente

- Muitas dores enfrentei

- Mas, ele me ajudou

- E a dor passou.

- Na hora do sofrer,

- É que a gente vê o amigo;

- E no meu padecer,

- Jesus caminhou comigo!

-Riquezas, ambições

- Do mundo nada me seduz:

- Enquanto meu amigo for Jesus,

- Enquanto meu amigo for Jesus.

https://youtu.be/01JTi8VxM5I

 

José Jorge andrade Damasceno – 06 de novembro de 2020.