Em meio a aspereza da
vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar! -
republicação
José Jorge Andrade Damasceno
professordamasceno@gmail.com
historiadorbaiano@gmail.com
Este texto foi escrito originalmente em 2012, em um dia de junho que se
levantou um voluptuoso rio de saudades, que envolveu completamente este que ora
escreve estas linhas. Ele será republicado em sua íntegra, acrescido dos links
para as músicas comentadas e de um “Post scriptum”, com um pequeno comentário
do seu autor.
Era um dia já distante, no segundo mês da Primavera de 1935. Lá para as
bandas de Piritiba, ou mesmo de Andaraí, região de Jacobina, nascia Armanda, ou
Amanda, como gostava de ser chamada e, nome que parece ter adotado para si. A
primeira das três filhas de Vicente com Epifania, trazendo consigo esperanças.
Esperanças que talvez seus pais nutrissem. Talvez não fossem grandes,
grandiosas..., mas, esperanças. Ou quem sabe, para aquele lavrador, não seria
um desgosto por ser uma filha e não um filho?
Cresce a menina e, ainda na infância, se lhe vai a mãe e, se lhe impõe
uma madrasta. A nova mulher do seu pai, certamente não lhe tivera o amor que
lhe teria sua finada mamãe. Corre o tempo; crescem as três, em meio a travessuras,
brincadeiras, peraltices folguedos infantis;mas também em meio a intrigas,
brigas; surras; queixas... Sem letras, sem cultura; só a cultura da luta pela
sobrevivência, já se apresentava diante delas, visto não terem o apoio materno,
o agrado paterno; nem mesmo a possibilidade de educarem-se para a vida.
Ah Amanda... Aos dezoito se desencaminha; como ela dizia dera o “passo
errado”. Ganhara uma brutal reprimenda, o olho da rua e a separação de suas
duas irmãs, como conseqüência da decisão de se dar a alguém que não fosse aquele
que lhe faria esposa!
E daí para frente, só sofrer; só tentar quantas soluções e alternativas
lhe aparecessem, muito poucas, para aquela que sequer sabia “garatujar” seu
nome! Não se sabe como, chegara em Salvador, onde fora doméstica; do mesmo modo
não sabido, acabara em Alagoinhas, onde se envolvera com homens que vieram a
ser pais dos três filhos que vingaram!
E para os abrigar, alimentar, vestir, calçar, instruir? A única profissão
que se lhe apresentou desempenhar foi a de “lavadeira de ganho”, que apenas
requeria a força dos jovens braços e o cuidado com as peças que lhes fossem
confiadas para lavar, passar, engomar e entregar, de casa em casa, a cada uma
de suas ”patroas”.
Tinha vinte e cinco anos completos, quando lhe nasceu o terceiro dos
cinco filhos que tivera. Quase dois anos depois, aquele se tornara o que lhe
demandaria mais preocupações, desvelos e esforços, pois ficara cego e, seria
mais um encargo que viria sobre ela, pois, tão cedo, não poderia ajudar-lhe na faina
pelo pão, pelo abrigo e demais necessidades que a sobrevivência imporia a ela.
Vencida mais aquela desdita em sua vida, dona Amanda se tornava hábil em
desempenhar as atividades braçais que se lhe apresentara como forma de bastar a
si e aos seus: tinha já sua freguesia; empunhava o ferro de brasas, com esmero
e competência, propiciando-lhe demanda por seu serviço.
E nas mornas tardes de quinta e sexta-feira, quando passava as roupas
lavadas entre a segunda e a quarta, embatia-se no trabalho de passar e engomar,
tarde a fora, noite a dentro, entre soprares de ferro, reposição de carvões e
brasas... Quase sempre em pé, sentando-se só para as parcas e rápidas refeições,
dividida entre os afazeres do ganho e o cuidado com os filhos, ia dona Amanda,
de semana em semana, de mês em mês, de anos em anos, enfrentando sua lida, quem
sabe, esperando que algum dia, pudesse vir a ver algo melhor na vida.
Mas, a ela não faltou a melodia; os versos do cancioneiro, talvez aquelas
músicas ouvidas quando ainda menina-moça, em meio às angústias de órfã de mãe.
E, a despeito das exigências que a vida e o trabalho que lhe esgotava as
forças físicas, em seus lábios desfilavam pedaços de versos, ou mesmo trechos
inteiros, que eram cantados em voz que exprimia sofrimento e, quem sabe, esperança
de melhor sorte.
Boleros que exprimiam tristezas, desilusões e desventuras de amores,
talvez exprimissem mesmo o seu viver de mulher que nunca tivera “sorte” no amar.
Na memória de quem escreve estas linhas, a lembrança viva de sua voz cantando
uma música que parecia ser ela própria a autora, cheia de dor e dolência,
talvez pelas marcas das feridas que já marcavam aquela alma ainda tão moça, mas
já esmagada pelo peso do viver quase errante, de quem fora lançada ao mundo,
ainda tão precocemente, obrigada que fora a enfrentar a vida, sem o preparo
para entender as suas armadilhas e, preencher as suas exigências:
“Vem o cigana bonita,
ler o meu destino,
que mistérios tem;
“Tu com estes olhos de quem vê o amor da gente;
põe nas minhas mãos, o teu olhar
ardente;
E, procura desvendar o meu
segredo;
a dor, cigana, do meu amor;
“Mas, nunca digas oh Zíngara,
que ilusão me espera
qual o meu futuro!”
Só aquela por quem vou vivendo assim à toa;
tu dirás se a sorte será má ou
boa;
Para que ela venha consolar-me um dia;
a dor, cigana, do meu amor
https://youtu.be/v8JAsBiBGWs
Se lhe fosse perguntado, ela pouco ou nada saberia sobre os intérpretes e
compositores das melodias que cantarolava; ainda menos conhecia as
circunstâncias e contextos nos quais foram escritas aquelas letras, que
encontravam em seu espírito não alcançado pelos laivos de cultura e letramento,
terreno fértil no qual espalhavam suas significações. Nunca tivera lido nada
sobre quaisquer movimentos culturais, artísticos, visto seu total
analfabetismo. Seu primeiro contato com livros, só acontece quando contava mais
ou menos trinta e cinco anos, por meio do “Movimento Brasileiro de
Alfabetização”, o (MOBRAL).
Como que se embalasse pelas lembranças e estas a ajudasse a encarar sua
faina com um pouco mais de resignação, diante dos percalços que se lhe oferecia
a vida difícil de uma trabalhadora braçal, entoava esta de Lupicínio Rodrigues
(1914-1974), que talvez ela conhecesse pela imortal interpretação de Linda
Batista (1919-1988):
https://youtu.be/7xi9hi1NnBA
“Eu gostei tanto,
Tanto quando me contaram;
Que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.
É que quando os amigos do peito pormim,
Perguntaram;
Um soluço cortou sua voz e não lhe deixou falar;
“Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram,
Que tive mesmo,
De fazer um esforço
Pra ninguém notar.
“O remorso talvez seja a causa do seu desespero;
Você deve estar bem consciente do que praticou;
Em me fazer passar essa vergonha, como um o companheiro
E a vergonha, é a herança maior, que meu pai me deixou;
“Mas enquanto houver voz em meu peito eu não quero mais nada,
Só vingança, vingança, vingança, aos santos clamar”
E você há de rolar como as pedras,
Que rolam na estrada;
Sem ter nunca, um cantinho de seu,
Pra poder descansar”.
Talvez nos dias em que alguma saudade lhe explodisse no peito,
cantarolava este bolero de Waldick Soriano (1933-2008), típico cantor de amores
frustrados:
https://youtu.be/eK3D2jLHNVw
“Hoje que a noite está calma, e que a minha alma esperava por ti...
Apareceste afinal, torturando este ser que te adora
Volta, fique comigo só mais uma noite;
Quero viver junto a ti,
volta meu amor,
fique comigo,
não me desprezes,
a noite é nossa
e o meu amor pertence a ti;
Hoje eu quero paz, quero ternura, em nossas vidas; quero viver por toda
vida, pensando em ti.
E dona Amanda, sempre de posse de seu ferro de brasas, pouco depois
substituído pelo elétrico, mais prático e, que dispensava os assopros e usos de
abanos para voltar a esquentar satisfatoriamente, ainda arriscava um samba,
como este de Benedito Lacerda (1903-1958) e David Nasser (1917-1980),
imortalizado na clássica voz de Nelson Gonçalves (1919-1998):
https://youtu.be/41gdJzBDPrA
“Vestida de azul e branco,
Trazendo um sorriso franco
Num rostinho encantador;
Rapidamente conquista meu coração sem amor;
Eu que trazia fechado,
Dentro do peito guardado
Meu coração sofredor;
Estou Bastante inclinado
A entregá-lo ao cuidado,
Daquele brotinho em flor
“Mas a Normalista linda, não pode casar ainda, só depois de se formar;
Eu estou apaixonado, o pai da moça é zangado, o remédio é esperar”.
Era a partir daquelas músicas que lhe saltavam as lembranças, que ela contava
aos filhos, algumas passagens de sua vida; momentos de sua infância cheia de
desditas familiares,que explodiam em sua memória, trazendo à tona, as
recordações do lugar onde nascera e vivera, toda infância e pequena parte da juventude,
se não esplendorosa, ao menos ao lado dos que eram seus.
Desde que expulsa de casa, nunca mais teve com quem contar em quem se
ancorar, onde se abrigar, a não ser patrões, estranhos; amores momentâneos e
ilusórios...
Era tudo isto evocado do fundo do seu silêncio, a partir daquelas músicas
que, em meio as asperezas da vida de lavadeira de ganho, ela podia cantarolar, em
um misto de alegria, nostalgia e melancolia, ao cair da tarde das quintas ou
sextas-feiras.
Mas, pouco antes de completar trinta e nove anos, naquele junho de 1974,
em uma noite fria de inverno, a morte do seu primogênito, ainda moço, aquele
que a ajudava no arrimo familiar, fê-la calar de vez sua voz para o canto,
dando lugar ao pranto,que nunca mais pôde enxugar.
Post scriptum:
Há já quinze anos, aquela voz foi calada para sempre. Aos seis dias de
novembro de 2005, não mais falou, não mais cantou, não mais mourejou aquela
mulher que mal completara setenta de existência, ingressou na eternidade,
separando-se deste que hora escreve estas linhas prenhes de saudade. Era ela a razão
de tanto esforço que este escrevedor fizera para alcançar os títulos de mestre
e doutor, embora para a sua compreensão fosse algo difícil, mas enxia aquela
criatura de orgulho pelo seu filho que, não obstante tenha lhe causado tanta
aflição, pudera promover ‘lhe a tranquilidade de morrer, sabendo que aquele
filho “disoficiente visual” não ficaria à mercê da irmã mais velha e/ou à mercê
da caridade pública, o que daria no mesmo!
Durante todo aquele ano de 2005, parte dele passado cursando o doutorado
em Niterói, este filho de dona Amanda ouvira uma belíssima música cristã, genuína, que
acabou sendo a sua música de consolo, enquanto chorava a saudade, sofria a dor
da separação definitiva e lamentava a perda daquela que fora a única mulher que
a ele amou e que por ele foi amada: a sua mãe. Parecia que o seu espírito
estava sendo preparado para suportar o que se avizinhava. Uma rádio de Curitiba,
escutada através da internet, executava aquele belíssimo hino, em várias
ocasiões durante o dia; e, a vontade de chorar ao ouvi-lo, parecia indicar
estar próxima alguma coisas que traria grande tristeza àquele ouvinte virtual
da BBNRádio.
O então nonagenário cantor evangélico, Feliciano Amaral (1920-2019), com
sua magistral interpretação e inconfundível voz, interpretava “Não há melhor
Amigo”, que soava como um bálsamo colocado sobre o coração que sangrava. Ainda
hoje, ao ouvir aquela maviosa melodia, parece estar vivendo aqueles dias de
pranto e tristeza.
- Não há melhor amigo,
- Do que Cristo meu Senhor,
-Nos transes que passei
- Foi o meu consolador;
- Tranquilo e paciente
- Muitas dores enfrentei
- Mas, ele me ajudou
- E a dor passou.
- Na hora do sofrer,
- É que a gente vê o amigo;
- E no meu padecer,
- Jesus caminhou comigo!
-Riquezas, ambições
- Do mundo nada me seduz:
- Enquanto meu amigo for Jesus,
- Enquanto meu amigo for Jesus.
https://youtu.be/01JTi8VxM5I
José Jorge andrade Damasceno – 06 de novembro de 2020.