sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Há quinze anos, em um dia como o de hoje - 06 de novembro de 2005.

 

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar! - republicação

 

José Jorge Andrade Damasceno

professordamasceno@gmail.com

historiadorbaiano@gmail.com

 

 

Este texto foi escrito originalmente em 2012, em um dia de junho que se levantou um voluptuoso rio de saudades, que envolveu completamente este que ora escreve estas linhas. Ele será republicado em sua íntegra, acrescido dos links para as músicas comentadas e de um “Post scriptum”, com um pequeno comentário do seu autor.

 

 

Era um dia já distante, no segundo mês da Primavera de 1935. Lá para as bandas de Piritiba, ou mesmo de Andaraí, região de Jacobina, nascia Armanda, ou Amanda, como gostava de ser chamada e, nome que parece ter adotado para si. A primeira das três filhas de Vicente com Epifania, trazendo consigo esperanças. Esperanças que talvez seus pais nutrissem. Talvez não fossem grandes, grandiosas..., mas, esperanças. Ou quem sabe, para aquele lavrador, não seria um desgosto por ser uma filha e não um filho?

Cresce a menina e, ainda na infância, se lhe vai a mãe e, se lhe impõe uma madrasta. A nova mulher do seu pai, certamente não lhe tivera o amor que lhe teria sua finada mamãe. Corre o tempo; crescem as três, em meio a travessuras, brincadeiras, peraltices folguedos infantis;mas também em meio a intrigas, brigas; surras; queixas... Sem letras, sem cultura; só a cultura da luta pela sobrevivência, já se apresentava diante delas, visto não terem o apoio materno, o agrado paterno; nem mesmo a possibilidade de educarem-se para a vida.

Ah Amanda... Aos dezoito se desencaminha; como ela dizia dera o “passo errado”. Ganhara uma brutal reprimenda, o olho da rua e a separação de suas duas irmãs, como conseqüência da decisão de se dar a alguém que não fosse aquele que lhe faria esposa!

E daí para frente, só sofrer; só tentar quantas soluções e alternativas lhe aparecessem, muito poucas, para aquela que sequer sabia “garatujar” seu nome! Não se sabe como, chegara em Salvador, onde fora doméstica; do mesmo modo não sabido, acabara em Alagoinhas, onde se envolvera com homens que vieram a ser pais dos três filhos que vingaram!

E para os abrigar, alimentar, vestir, calçar, instruir? A única profissão que se lhe apresentou desempenhar foi a de “lavadeira de ganho”, que apenas requeria a força dos jovens braços e o cuidado com as peças que lhes fossem confiadas para lavar, passar, engomar e entregar, de casa em casa, a cada uma de suas ”patroas”.

Tinha vinte e cinco anos completos, quando lhe nasceu o terceiro dos cinco filhos que tivera. Quase dois anos depois, aquele se tornara o que lhe demandaria mais preocupações, desvelos e esforços, pois ficara cego e, seria mais um encargo que viria sobre ela, pois, tão cedo, não poderia ajudar-lhe na faina pelo pão, pelo abrigo e demais necessidades que a sobrevivência imporia a ela.

Vencida mais aquela desdita em sua vida, dona Amanda se tornava hábil em desempenhar as atividades braçais que se lhe apresentara como forma de bastar a si e aos seus: tinha já sua freguesia; empunhava o ferro de brasas, com esmero e competência, propiciando-lhe demanda por seu serviço.

E nas mornas tardes de quinta e sexta-feira, quando passava as roupas lavadas entre a segunda e a quarta, embatia-se no trabalho de passar e engomar, tarde a fora, noite a dentro, entre soprares de ferro, reposição de carvões e brasas... Quase sempre em pé, sentando-se só para as parcas e rápidas refeições, dividida entre os afazeres do ganho e o cuidado com os filhos, ia dona Amanda, de semana em semana, de mês em mês, de anos em anos, enfrentando sua lida, quem sabe, esperando que algum dia, pudesse vir a ver algo melhor na vida.

Mas, a ela não faltou a melodia; os versos do cancioneiro, talvez aquelas músicas ouvidas quando ainda menina-moça, em meio às angústias de órfã de mãe.

E, a despeito das exigências que a vida e o trabalho que lhe esgotava as forças físicas, em seus lábios desfilavam pedaços de versos, ou mesmo trechos inteiros, que eram cantados em voz que exprimia sofrimento e, quem sabe, esperança de melhor sorte.

Boleros que exprimiam tristezas, desilusões e desventuras de amores, talvez exprimissem mesmo o seu viver de mulher que nunca tivera “sorte” no amar. Na memória de quem escreve estas linhas, a lembrança viva de sua voz cantando uma música que parecia ser ela própria a autora, cheia de dor e dolência, talvez pelas marcas das feridas que já marcavam aquela alma ainda tão moça, mas já esmagada pelo peso do viver quase errante, de quem fora lançada ao mundo, ainda tão precocemente, obrigada que fora a enfrentar a vida, sem o preparo para entender as suas armadilhas e, preencher as suas exigências:

“Vem o cigana bonita,

 ler o meu destino,

 que mistérios tem;

“Tu com estes olhos de quem vê o amor da gente;

 põe nas minhas mãos, o teu olhar ardente;

 E, procura desvendar o meu segredo;

a dor, cigana, do meu amor;

“Mas, nunca digas oh Zíngara,

que ilusão me espera

qual o meu futuro!”

Só aquela por quem vou vivendo assim à toa;

 tu dirás se a sorte será má ou boa;

Para que ela venha consolar-me um dia;

 a dor, cigana, do meu amor

https://youtu.be/v8JAsBiBGWs

Se lhe fosse perguntado, ela pouco ou nada saberia sobre os intérpretes e compositores das melodias que cantarolava; ainda menos conhecia as circunstâncias e contextos nos quais foram escritas aquelas letras, que encontravam em seu espírito não alcançado pelos laivos de cultura e letramento, terreno fértil no qual espalhavam suas significações. Nunca tivera lido nada sobre quaisquer movimentos culturais, artísticos, visto seu total analfabetismo. Seu primeiro contato com livros, só acontece quando contava mais ou menos trinta e cinco anos, por meio do “Movimento Brasileiro de Alfabetização”, o (MOBRAL).

Como que se embalasse pelas lembranças e estas a ajudasse a encarar sua faina com um pouco mais de resignação, diante dos percalços que se lhe oferecia a vida difícil de uma trabalhadora braçal, entoava esta de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que talvez ela conhecesse pela imortal interpretação de Linda Batista (1919-1988):

https://youtu.be/7xi9hi1NnBA

“Eu gostei tanto,

Tanto quando me contaram;

Que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar.

É que quando os amigos do peito pormim,

Perguntaram;

Um soluço cortou sua voz e não lhe deixou falar;

“Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram,

Que tive mesmo,

De fazer um esforço

Pra ninguém notar.

“O remorso talvez seja a causa do seu desespero;

Você deve estar bem consciente do que praticou;

Em me fazer passar essa vergonha, como um o companheiro

E a vergonha, é a herança maior, que meu pai me deixou;

“Mas enquanto houver voz em meu peito eu não quero mais nada,

Só vingança, vingança, vingança, aos santos clamar”

E você há de rolar como as pedras,

Que rolam na estrada;

Sem ter nunca, um cantinho de seu,

Pra poder descansar”.

 

Talvez nos dias em que alguma saudade lhe explodisse no peito, cantarolava este bolero de Waldick Soriano (1933-2008), típico cantor de amores frustrados:

https://youtu.be/eK3D2jLHNVw

“Hoje que a noite está calma, e que a minha alma esperava por ti...

Apareceste afinal, torturando este ser que te adora

Volta, fique comigo só mais uma noite;

Quero viver junto a ti,

 volta meu amor,

fique comigo,

 não me desprezes,

a noite é nossa

e o meu amor pertence a ti;

Hoje eu quero paz, quero ternura, em nossas vidas; quero viver por toda vida, pensando em ti.

 

E dona Amanda, sempre de posse de seu ferro de brasas, pouco depois substituído pelo elétrico, mais prático e, que dispensava os assopros e usos de abanos para voltar a esquentar satisfatoriamente, ainda arriscava um samba, como este de Benedito Lacerda (1903-1958) e David Nasser (1917-1980), imortalizado na clássica voz de Nelson Gonçalves (1919-1998):

https://youtu.be/41gdJzBDPrA

“Vestida de azul e branco,

  Trazendo um sorriso franco

Num rostinho encantador;

Rapidamente conquista meu coração sem amor;

Eu que trazia fechado,

Dentro do peito guardado

Meu coração sofredor;

Estou Bastante inclinado

A entregá-lo ao cuidado,

Daquele brotinho em flor

“Mas a Normalista linda, não pode casar ainda, só depois de se formar;

Eu estou apaixonado, o pai da moça é zangado, o remédio é esperar”.

 

Era a partir daquelas músicas que lhe saltavam as lembranças, que ela contava aos filhos, algumas passagens de sua vida; momentos de sua infância cheia de desditas familiares,que explodiam em sua memória, trazendo à tona, as recordações do lugar onde nascera e vivera, toda infância e pequena parte da juventude, se não esplendorosa, ao menos ao lado dos que eram seus.

Desde que expulsa de casa, nunca mais teve com quem contar em quem se ancorar, onde se abrigar, a não ser patrões, estranhos; amores momentâneos e ilusórios...

Era tudo isto evocado do fundo do seu silêncio, a partir daquelas músicas que, em meio as asperezas da vida de lavadeira de ganho, ela podia cantarolar, em um misto de alegria, nostalgia e melancolia, ao cair da tarde das quintas ou sextas-feiras.

Mas, pouco antes de completar trinta e nove anos, naquele junho de 1974, em uma noite fria de inverno, a morte do seu primogênito, ainda moço, aquele que a ajudava no arrimo familiar, fê-la calar de vez sua voz para o canto, dando lugar ao pranto,que nunca mais pôde enxugar.

 

Post scriptum:

 

Há já quinze anos, aquela voz foi calada para sempre. Aos seis dias de novembro de 2005, não mais falou, não mais cantou, não mais mourejou aquela mulher que mal completara setenta de existência, ingressou na eternidade, separando-se deste que hora escreve estas linhas prenhes de saudade. Era ela a razão de tanto esforço que este escrevedor fizera para alcançar os títulos de mestre e doutor, embora para a sua compreensão fosse algo difícil, mas enxia aquela criatura de orgulho pelo seu filho que, não obstante tenha lhe causado tanta aflição, pudera promover ‘lhe a tranquilidade de morrer, sabendo que aquele filho “disoficiente visual” não ficaria à mercê da irmã mais velha e/ou à mercê da caridade pública, o que daria no mesmo!

Durante todo aquele ano de 2005, parte dele passado cursando o doutorado em Niterói, este filho de dona Amanda ouvira  uma belíssima música cristã, genuína, que acabou sendo a sua música de consolo, enquanto chorava a saudade, sofria a dor da separação definitiva e lamentava a perda daquela que fora a única mulher que a ele amou e que por ele foi amada: a sua mãe. Parecia que o seu espírito estava sendo preparado para suportar o que se avizinhava. Uma rádio de Curitiba, escutada através da internet, executava aquele belíssimo hino, em várias ocasiões durante o dia; e, a vontade de chorar ao ouvi-lo, parecia indicar estar próxima alguma coisas que traria grande tristeza àquele ouvinte virtual da BBNRádio.

O então nonagenário cantor evangélico, Feliciano Amaral (1920-2019), com sua magistral interpretação e inconfundível voz, interpretava “Não há melhor Amigo”, que soava como um bálsamo colocado sobre o coração que sangrava. Ainda hoje, ao ouvir aquela maviosa melodia, parece estar vivendo aqueles dias de pranto e tristeza.

 

- Não há melhor amigo,

- Do que Cristo meu Senhor,

-Nos transes que passei

- Foi o meu consolador;

- Tranquilo e paciente

- Muitas dores enfrentei

- Mas, ele me ajudou

- E a dor passou.

- Na hora do sofrer,

- É que a gente vê o amigo;

- E no meu padecer,

- Jesus caminhou comigo!

-Riquezas, ambições

- Do mundo nada me seduz:

- Enquanto meu amigo for Jesus,

- Enquanto meu amigo for Jesus.

https://youtu.be/01JTi8VxM5I

 

José Jorge andrade Damasceno – 06 de novembro de 2020.

2 comentários:

  1. Uma leitura que causa emoção, que permite a dor ter esperança da alegria, que provoca um mergulho no tempo,que realça identidade nos fatos, que permite sentir o frio da beira do rio, o calor do ferro em brasa.
    Todas as canções,soam nos meus ouvidos no tom do assovio do meu pai, um alfaiate que teve a vida parecida com da tua mae. sabedoria na lida com a simplicidade, semeia beleza na caminhada.
    Parabéns mano véio, o espírito é luz.

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  2. Muito bonito e triste. Sempre é assim as nossas lembranças do passado. Mas Deus é bom.

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