sábado, 28 de julho de 2012

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar!

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar!

José Jorge Andrade Damasceno
professordamasceno@gmail.com
historiadorbaiano@gmail.com


Era um dia já distante, no segundo mês da Primavera de 1935. Lá para as bandas de Piritiba, ou mesmo de Andaraí, região de Jacobina, nascia Armanda, ou Amanda, como gostava de ser chamada e, nbome que parece ter adotado para si. A primeira das três filhas de Vicente com Epfânia, trazendo consigo esperanças. Esperanças que talvez seus pais nutrissem. Talvez não fossem grandes, grandiosas... Mas, esperanças. Ou quem sabe, para aquele lavrador, não seria um desgosto por ser uma filha e não um filho?
Cresce a menina e, ainda na infância, vai-se-lhe a mãe e, impõe-se-lhe uma madrasta. A nova mulher do seu pai, certamente não lhe tivera o amor que lhe teria sua finada mamãe. Corre o tempo; crescem as três, em meio a travessuras, brincadeiras, peraltices folguedos infantis;mas também em meio a intrigas, brigas; surras; queixas... Sem letras, sem cultura; só a cultura da luta pela sobrevivência, já se apresentava diante delas, visto não terem o apoio materno, o agrado paterno; nem mesmo a possibilidade de educarem-se para a vida.
Ah Amanda... Aos dezoito se desencaminha; como ela dizia dera o “passo errado”. Ganhara uma brutal reprimenda, o olho da rua e a separação de suas duas irmãs, como conseqüência da decisão de se dar a alguém que não fosse aquele que lhe faria esposa!
E daí para frente, só sofrer; só tentar quantas soluções e alternativas lhe aparecessem, muito poucas, para aquela que sequer sabia “garatujar” seu nome! Não se sabe como, chegara em Salvador, onde fora doméstica;do mesmo modo não sabido, acabara em Alagoinhas, onde se envolvera com homens que vieram a ser pais dos três filhos que vingaram!
E para os abrigar, alimentar, vestir, calçar, instruir? A única profissão que se lhe apresentou desempenhar foi a de “lavadeira de ganho”, que apenas requeria a força dos jovens braços e o cuidado com as peças que lhes fossem confiadas para lavar, passar, engomar e entregar, de casa em casa, a cada uma de suas ”patroas”.
Tinha vinte e cinco anos completos, quando lhe nasceu o terceiro dos cinco filhos que tivera. Quase dois anos depois, aquele se tornara o que lhe demandaria mais preocupações, desvelos e esforços, pois ficara cego e, seria mais um encargo que viria sobre ela, pois, tão cedo, não poderia ajudar-lhe na faina pelo pão, pelo abrigo e demais necessidades qe a sobrevivência imporia a ela.
Vencida mais aquela desdita em sua vida, dona Amanda se tornava hábil em desempenhar as atividades braçais que se lhe apresentara como forma de bastar a si e aos seus: tinha já sua freguesia; inpunhava o ferro de brasas, com esmero e competência, propiciando-lhe demanda por seu serviço.
E nas mornas tardes de quinta e sexta-feira, quando passava as roupas lavadas entre a segunda e a quarta, embatia-se no trabalho de passar e engomar, tarde a fora, noite a dentro, entre soprares de ferro, reposição de carvões e brasas... Quase sempre em pé, sentando-se só para as parcas e rápidas refeições, dividida entre os afazeres do ganho e o cuidado com os filhos, ia dona Amanda, de semana em semana, de mês em mês, de anos em anos, enfrentando sua lida, quem sabe, esperando que algum dia, pudesse vir a ver algo melhor na vida.
Mas, a ela não faltou a melodia; os versos do cancioneiro, talvez aquelas músicas ouvidas quando ainda menina-moça, em meio às angústias de órfã de mãe.
E, a despeito das exigências que a vida e o trabalho que lhe esgotava as forças físicas, em seus lábios desfilavam pedaços de versos, ou mesmo trechos inteiros, que eram cantados em voz que exprimia sofrimento e, quem sabe, esperança de melhor sorte.
Boleros que exprimiam tristezas, desilusões e desventuras de amores, talvez exprimissem mesmo o seu viver de mulher que nunca tivera “sorte” no amar. Na memória de quem escreve estas linhas, a lembrança viva de sua voz cantando uma música que parecia ser ela própria a autora, cheia de dor e dolência, talvez pelas marcas das feridas que já marcavam aquela alma ainda tão moça, mas já esmagada pelo peso do viver quase errante, de quem fora lançada ao mundo, ainda tão precocemente, obrigada que fora a enfrentar a vida, sem o preparo para entender as suas armadilhas e, preencher as suas exigências:
“Vem o cigana bonita,
ler o meu destino,
que mistérios tem;
“Tu com estes olhos de quem vê o amor da gente;
põe nas minhas mãos, o teu olhar ardente;
E, procura desvendar o meu segredo;
a dor, cigana, do meu amor;
“Mas, nunca digas oh Zíngara,
que ilusão me espera
qual o meu futuro!”
Só aquela por quem vou vivendo assim a toa;
tu dirás se a sorte será má ou boa;
Para que ela venha consolar-me um dia;
a dor, Cigana, do meu amor

Se lhe fosse perguntado, ela pouco ou nada saberia sobre os intérpretes e compositores das melodias que cantarolava; ainda menos conhecia as circunstâncias e contextos nos quais foram escritas aquelas letras, que encontravam em seu espírito não alcançado pelos laivos de cultura e letramento, terreno fértil no qual espalhavam suas significações. Nunca tivera lido nada sobre quaisquer movimentos culturais, artísticos, visto seu total analfabetismo. Seu primeiro contato com livros, só acontece quando contava mais ou menos trinta e cinco anos, por meio do “Movimento Brasileiro de Alfabetização”, o (MOBRAL).
Como que se embalasse pelas lembranças e estas a ajudasse a encarar sua faina com um pouco mais de resignação, diante dos percalços que se lhe oferecia a vida difícil de uma trabalhadora braçal, entoava esta de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que talvez ela conhecesse pela imortal interpretação de Linda Batista (1919-1988):

“Eu gostei tanto,
Tanto quando me contaram;
Que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar..
E que quando os amigos do peito pormim,
Pertuntaram;
Um soluço cortou sua voz e não lhe deixou falar;
“Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram,
Que tive mesmo,
De fazer um esforço
Pra ninguém notar.
“O remorso talvez seja a causa do seu desespero;
Você deve estar bem consciente do que praticou;
Em me fazer passar essa vergonha, como um o companheiro
E a vergonha, é a herança maior, que meu pai me deixou;
“Mas enquanto houver voz em meu peito eu não quero mais nada,
Só vingança, bingança, vingança, aos santos clamar”
E você há de rolar como as pedras,
Que rolam na estrada;
Sem ter nunca,um antinho de seu,
Pra poder descansar”.

Talvez nos dias em que alguma saudade lhe explodisse no peito,cantarolava este bolero de Waldick Soriano (1933-2008), típico cantor de amores frustrados:

“Hoje que a noite está calma, e que a minha alma esperava por ti...
Apareceste afinal, torturando este ser que te adora
Volta, fique comigo só mais uma noite;
Quero viver junto a ti,
volta meu amor,
fique comigo,
não me despreze,
a noite é nossa
e o meu amor pertence a ti;
Hoje eu quero paz, quero ternura, em nossas vidas; quero viver por toda vida, pensando em ti.

E dona Amanda, sempre de posse de seu ferro de brasas, pouco depois substituído pelo elétrico, mais prático e, que dispensava os assopros e usos de abanos para voltar a esquentar satisfatoriamente, ainda arriscava um samba, como este de Benedito Lacerda (1903-1958) e David Nasser (1917-1980), imortalizado na clássica voz de Nelson Gonçalves (1919-1998):

“Vestida de azul e branco,
Trazendo um sorriso franco
Num rostinho encantador;
Rapidamente conquista meu coração sem amor;
Eu que trazia fechado,
Dentro do peito guardado
Meu coração sofredor;
Estou Bastante inclinado
A entregá-lo ao cuidado,
Daquele brotinho em flor
“Mas a Normalista linda, não pode casar ainda, só depois de se formar;
Eu estou apaixonado, o pai da moça é zangado, o remédio é esperar”.

Era a partir daquelas músicas que lhe saltavam as lembranças, que ela contava aos filhos, algumas passagens de sua vida; momentos de sua infância cheia de desditas familiares,que explodiam em sua memória, trazendo à tona, as recordações do lugar onde nascera e vivera, toda infância e pequena parte da juventude, se não esplendorosa, ao menos ao lado dos que eram seus.
Desde que expulsa de casa, nunca mais teve com quem contar em quem se ancorar, onde se abrigar, a não ser patrões, estranhos; amores momentâneos e ilusórios...
Era tudo isto evocado do fundo do seu silêncio, a partir daquelas músicas que, em meio as asperezas da vida de lavadeira de ganho, ela podia cantarolar, em um misto de alegria, nostalgia e melancolia, ao cair da tarde das quintas ou sextas-feiras.
Mas, pouco antes de completar trinta e nove anos, naquele junho de 1974, em uma noite fria de inverno, a morte do seu primogênito, ainda moço, aquele que a ajudava no arrimo familiar, fê-la calar de vez sua voz para o canto, dando lugar ao pranto,que nunca mais pôde enxugar.

sábado, 7 de julho de 2012

"E O MORRO FOI "PRO BREJO"!

E o morro foi pro brejo

JOSÉ JORGE ANDRADE DAMASCENO

Alagoinhas é uma região de tabuleiro, com grande área arenosa, e algumas formações argilosas, com pequenas elevações de terra. Era também caracterizada por um grande número de pântanos, riachos e rios, formando uma extensa área de charcos, sobretudo nos invernos de chuvas torrenciais.
Lá pelos finais dos anos 1950, foi loteada uma extensão de terra com aproximadamente 1600 metros quadrados, de propriedade do senhor Álvaro Dantas, localizada entre as margens do rio Aramari e o Alto do Santo Antônio, mais conhecido como Sobocó.
Como divisa entre uma área e outra, se interpunha uma barreira natural, um grande morro, com vegetação rasteira, formada por quaranas, velames, rabugens, malvas-brancas,carquejas, entre outras, além de algumas grandes árvores, como coqueiros, mangueiras, jaqueiras, cajueiros, etc. Bem no cimo daquele morro, havia uma casa grande, com uma sólida construção de pedras, que provavelmente tivera servido de residência do proprietário da fazenda que até então ali existira.
Chegam os anos 1960 e, com eles, os primeiros compradores daqueles lotes, que, ato contínuo, iam construindo suas modestas casas de taipa; alguns, iam se estabelecendo como pequenos criadores de gado leiteiro, porcos e carneiros, aproveitando a proximidade e abundância de águas e pastagem, além da grande disponibilidade e variedade de madeiras para uma gama diversa de utilidades.
A topografia do lugar e a falta de recursos financeiros suficientes e de meios técnicos adequados, fazia com que aquelas casas fossem erguidas de um único lado da nova rua, fazendo frente para o morro, que ao mesmo tempo fornecia o barro para a construção dos taipados, bem como para a produção de adobros.
Aquela era também a estrada por onde passava a boiada vinda de Boa União, para ser abatida no matadouro público municipal. Com a constante passagem de pessoas e animais, ia assim se formando o caminho, mais tarde ampliado e transformado em rua, que, se iniciava no chamado "caminho do rio" e, se estendia até as margens da estrada de ferro, que atravessada, chegava-se a um outro caminho que dava acesso ao citado matadouro
Entre os momentos mais marcantes na vida dos moradores da rua aberta em frente ao morro, são dois os que se destacam, por conta das conseqüências e mudanças produzidas no dia a dia daquela gente, de viver simples e sobrevivência difícil. Vão longe os anos, mas ficou viva na memória do cronista, a lembrança, de uma grande borrasca que se abateu na cidade, aí por volta de 1968, pouco mais ou menos, quando fortes ventos e chuvas torrenciais, provocaram o escorregamento de grande volume de barro, pedra e lama, ao ponto de quase soterrar as modestas casas de taipa, erguidas ali em frente, há poucos metros do grande barranco, socavado pela constante retirada de barro para aquelas construções toscas e frágeis.
Até mesmo a velha casa da fazenda, imponente e soberba, que reinava absoluta no cume daquele morro, sofreu grandes e irreversíveis avarias, até cair ou ser derrubada, não se sabe ao certo, algum tempo depois e, ter seus escombros aproveitados pelos moradores, para reforçar e alicerçar suas habitações, quando as puderam reformar.
Grandes árvores foram arrancadas e arrastadas pelo morro abaixo; outras envergaram definitivamente, como foi o caso de um imponente cajueiro que, literalmente, foi posto de joelhos pela força dos ventos, ficando assim, até ser cortado e transformado em madeira para as fogueiras juninas.
Os invernos torrenciais que se sucederam; as chuvas de verão, tão comuns na região, o constante retirar de barro pela população, contribuíram para promover um sério comprometimento do morro, colocando em risco a integridade daqueles moradores. Como ficou claro alguns poucos anos depois, durante uma temporada de inverno bastante chuvoso, quando pequenos, mas constantes deslizamentos de terra, ocorreram , trazendo para baixo, grande quantidade de lama e pedra, assustando tanto as pessoas que ali residiam, quanto as que passavam pelo local.
Talvez por este motivo, por volta do ano de 1974, pouco mais ou menos, ocorreu o segundo momento marcante na memória dos moradores da rua Jardim São Francisco.
Em algum alvorecer da infância ou adolescência dos que hoje contem em torno de cinquenta anos, o dia não parecia que seria diferente dos já transcorridos até ali. O sol nasceu como sempre, no intervalo entre as cinco e as seis da manhã. O cronista, ao acordar e encher os pulmões com aquele ar fresco e aprazível, os mesmos aromas matinais, aguçavam-lhe o olfato com um perfume deliciosamente indescritível, que só Alagoinhas tem. As aves já se erguiam dos seus ninhos; estudantes, trabalhadores, animais de carga e tração, se preparavam ou iniciavam seus labores, de acordo com aquilo que lhes era habitual, conforme fosse o seu cotidiano.
A meninada que estudava no vespertino, não perderia a chance de brincar por toda a manhã: Uns, preparavam seus badogues para as pequenas caçadas e derrubadas de frutas; outros se agrupavam para os jogos de bola de gude ou de botão; ainda outros, traziam seus carrinhos de madeira, para o dirigir livremente na rua, imponentes, como se eles fossem carros de verdade!
Mas, havia um quarto grupo de garotos, para os quais, aquele dia reservava grande surpresa. Trata-se daquele que tinha o morro como cenário de suas brincadeiras, como palco onde exibiam suas habilidades como impinadores de arraias; onde disputavam os "corta-linhas; lugar privilegiado de observação, de onde se podia assistir os estouros de boiadas, muito comuns ali, que fazia a diversão cinematográfica da garotada; lugar de onde se podia ver, para além dos quintais das casas situadas metros abaixo; lugar de onde se podia descortinar a bela paisagem que se apresenta exuberante a quem a queira, ou possa admirar. Também aquele morro, era o lugar por excelência, das grandes e arriscadas travessuras sobre as árvores que não sucumbiram aos açoites da tempestade de alguns anos antes.
Mas então, o que estava por vir? Naquela manhã se descortinava um espetáculo diferente, diante dos moradores, que estupefatos, viam chegar algumas máquinas e homens da prefeitura, para fazer ali, ainda não sabiam o que. O barulho e o peso dos equipamentos faziam as frágeis casas estremecer, como se estivessem sendo sacudidas por terremotos, o que acabou por provocar rachaduras em muitas delas, deixando assustados seus proprietários.
Afinal, o que fariam ali, aquelas máquinas? Abririam mais a rua? Fariam alguma escavação para, quem sabe, passar a tubulação da “Saé”, para permitir aos ali residentes, desfrutar do abastecimento de água encanada? Afinal, o local de onde se fazia a captação, tratamento e distribuição, não distava mais de trezentos metros dali! Ah, quantas esperanças, especulações e expectativas estavam nas mentes e desejos dos moradores daquele lugar, tão distante do centro da cidade e esquecido pelos gestores públicos!
A resposta a estas perguntas não se fez esperar. Não era para fazer o alargamento da rua; nem para trazer melhoria, propiciando o recebimento de água encanada; nem mesmo, para fazer um nivelamento do logradouro, dando uma uniformidade no terreno cheio de altos e baixos, que aqueles equipamentos estavam ali se posicionando. Logo percebeu-se que aquelas máquinas estavam ali, para colocar aquele morro sobre as caçambas que também já chegavam ao local, a fim de o levar para o brejo.
Sim, o morro iria para o brejo situado na frente da estação ferroviária, entre o 2 de julho e as margens do rio Catu, onde seria despejado todo aquele volume de barro e cascalho, com o fim de aterrar o local que, mais tarde, viria a ser a Central de Abastecimento e a avenida Lourival Batista.
Ah, mas o morro não foi pro brejo sozinho e vazio. Levou consigo reminiscências dos que lá subiram para brincar, para correr; para escalar as árvores e nelas fazer peripécias e piruetas, as mais audaciosas e perigosas; dos que lá se engarupitaram para assistir os espetáculos que, bois embravecidos e vaqueiros encolerizados, protagonizaram inúmeras vezes.
Também levou consigo as lembranças de quem freqüentou a velha casa que ruíra, quando nela ainda havia morador, para lá ouvir, quase sempre no final da tarde e início da noite, em uma radiola Philips portátil, discos de Ludrugero e Otrope, Gerson Filho, Barnabé, Osvaldo Nunes, Jacinto (o donzelo); as músicas de dor de cotovelo de Waldique Soriano, do Ciriema, ou as da jovem guarda de Wanderley Cardoso, Wanderléia, Roberto e Erasmo Carlos... os baiões de Luís Gonzaga, Carmélia Alves, Marinês e sua gente,Trio Nordestino! E tantos, e quantos! Sim, tantas histórias de vida, quantas memórias vividas naquele morro, que foi “pro brejo”!

professordamasceno@gmail.com; historiadorbaiano@gmail.com

O MENINO JOSÉ MÁRIO

José Mário, paro ano, você vai para a escola
JOSÉ JORGE ANDRADE DAMASCENO

Naquela casa de taipa, coberta de telha vã e, sem reboco externo, o interno era feito a base de areia e cal; com pouca divisão em cômodos; na cozinha um fogão de lenha e/ou carvão vegetal; o banheiro de palha, separado do corpo da casa; o piso era de chão batido, mas muito limpo, morava dona Arminda com seus três filhos e seu companheiro.
Era uma mulher de seus trinta e poucos anos, forte de caráter e robusta de disposição para o trabalho, embora seu corpo nem sempre correspondesse àquela demanda pelo ofício de lavadeira de ganho, com o qual provia a si e aos seus, ajudada pelo companheiro ferroviário e pelo filho mais velho, primeiro como aguadeiro, depois como aprendiz de carpinteiro.
Mal o sol aparecia no horizonte, dona Arminda já se punha em pé, para enfrentar o seu labor diário. Depois de dar café aos filhos, arrumava três ou quatro trouxas de roupa em uma grande bacia, dava as instruções à filha do meio, com respeito ao almoço e saía em direção ao rio, não muito longe dali, para juntar-se a outras mulheres do seu mesmo ofício, para ensaboar, bater, "tirar o sujo", quarar, enxaguar, estender e enxugar as roupas que lhes eram confiadas, por patroas diversas, tarefa que lhes ocupava quase todo o dia.
Em tempos de sol abundante por volta das três ou quatro da tarde, já estava de volta, com parte da tarefa executada, não sem grande fatiga do corpo, que não teria descanso antes das nove ou dez da noite, pois teria que separar, dobrar e organizar cada peça, relacionando a cada patroa, não podendo perder a precisão de saber exatamente a qual delas pertencia cada lençol, cada vestido, camisa, calça, toalha de banho ou de mesa; não poderia chegar para a entrega e ouvir desta ou daquela patroa que, tal peça não viera; ou que qual peça não lhe pertencia!
Depois de separar e organizar cada peça de acordo com suas respectivas donas, era hora de botar brasa e carvão no ferro e, pô-lo para "pegar", a fim de com ele, iniciar a segunda parte de sua tarefa semanal: passar, engomar e preparar cada roupa para ser entregue na tarde da sexta ou na manhã do sábado, esperando a remuneração pelo seu trabalho, para com ela fazer o "arranjo", que permitiria mitigar a fome dela e dos seus filhos.
Corria o ano de 1968. A cidade passava por transformações estruturais de grande impacto no modo de viver de sua elite social, na medida em que se implantava o serviço de fornecimento de água, que até ali era feito no lombo de jegues e, uma vez concluída a construção da estação de capitação e a instalação da tubulação, passaria a ser encanada e tratada.
Ali, bem ali, às margens daquele rio onde dona Arminda e suas companheiras desenvolviam as atividades por meio das quais levavam o sustento para casa, começava a ser erguida a construção sobre a qual seriam instalados os equipamentos que fariam funcionar a estação de capitação, tratamento e distribuição de água, por meio de redes de encanamentos e reservatórios, que levaria aos lares dos ricos da cidade, aquele precioso líquido, agora tratado e distribuído, segundo os mais modernos métodos e processos então existentes.
Dando vasão a sua fama de cidade sempre a frente nos processos de modernização da vida urbana, Alagoinhas vivia aquele momento ímpar de sua história, aguardando com grande expectativa o instante em que as torneiras não mais seriam abertas por algum tempo, com seu abastecimento individual feito por jegues ou bombas, mas teria vasão constante, no momento em que precisasse, pois suas caixas d'água estariam sempre cheias, pois agora, receberiam automaticamente aquele valioso líquido, impulsionado pelo sistema operado pelo serviço autônomo de água e Esgoto.
Talvez por volta de setembro ou outubro daquele ano, dona Arminda se encontrava já em casa, realizando a segunda parte de sua faina cotidiana, quando recebe a inesperada visita de uma senhora rica, bem vestida, que fizera parar seu automóvel na frente daquela tosca residência, ainda sem energia elétrica, incrustada em uma rua sinuosa, poeirenta, apertada e sem qualquer tipo de pavimentação, por onde passavam as boiadas com destino ao matadouro público municipal. Por ali, raro era chegar um automóvel, menos ainda, um em cujo interior, se encontrasse uma autoridade.
Por isso mesmo, não foi sem surpresa que, naquela tarde morna de primavera, dona Arminda recebera em sua casa, aquela senhora de fino trato, bem vestida, bem arrumada, de mãos finas e delicadas, tão contrastantes com as suas, já grossas e ásperas, embora ainda não tivesse trinta e três anos completos.
Aquela mulher que se achava diante de dona Arminda, não era ninguém mais, ninguém menos, do que a professora Dilse, uma das autoridades da cidade e, na educação era a maior delas. Por suas mãos passavam as nomeações das professoras, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino público e a vida escolar dos alunos matriculados na rede estadual.
Aquela distinta senhora da sociedade Alagoinhense, ocupava o cargo de "Delegada escolar", posto a partir do qual exercia o poder político de uma das famílias tradicionais da cidade e, exercia grande influência, no que respeita a cooptação de votos e correligionários para com isso, poder manter o status de autoridade política e educacional que lhe fora atribuída.
- Boa tarde,dona Arminda. Posso entrar?
- Boa tarde minha senhora. Entre, sente...
Tendo entrado e se acomodado naquela cadeira rústica de compensado envernizado, a visitante tratou de ser direta e objetiva, passando imediatamente a tratar do motivo que a houvera levado até aquele lugar.
- Dona Arminda, eu estou aqui, pois fiquei sabendo que, a senhora tem um filho que não enxerga e ainda está fora da escola.
Sim, dona Arminda de fato tinha um filho que, pouco antes de completar o segundo ano de vida, ela descobrira que suas desconfianças de meses se faziam reais. O menino não enxergava. Era o menor dos três filhos que a ela cabia sustentar com seu trabalho duro de lavadeira de ganho.
O pai do garoto era um açougueiro conhecido no lugar, cujo único apoio que dera àquela mulher, fora, não sem muito custo, o reconhecimento da paternidade, através do registro de nascimento.
Talvez, sua história e a existência do garoto, que no momento da visita da Delegada escolar, contava sete anos, tivesse chegado ao conhecimento daquela autoridade, através de alguma das patroas de dona Arminda, pois algumas vezes, levara consigo seu filho, para alguma de suas muitas entregas de roupa.
Diante do espanto da dona da casa, a professora prosseguiu:
- Estamos aqui para dizer a senhora que, a partir do próximo ano, já será possível colocar seu filho na escola.
- Sim senhora! Mas...
- No prédio escolar Brasilino Viegas - interrompe a professora -, vai funcionar uma escola para cegos, com professores que darão a seu filho a oportunidade de estudar, sem que precise ir para o Instituto de Cegos em Salvador. A senhora entendeu?
- Entendi sim senhora.
- Onde está o menino?
- Tá no quintal, responde dona Arminda,voltando-se para o fundo da casa:
- Oh Zé Mário!...
José Mário se encontrava no amplo quintal, mergulhado em areia e brinquedos improvisados, alheio ao que se passava no interior da casa, visto procurar envolver-se naquela que era sua única forma de passar o tempo, que já lhe parecia longo, vivendo da casa para o quintal, com alguns momentos esporádicos de brincadeiras com as outras crianças de sua idade, tendo que ficar em casa quando todos os demais estavam ocupados e ele ali, sem que pudesse estudar como seus demais colegas e irmãos.
Não tendo o menino atendido ao chamado da mãe, esta manda que outra pessoa o vá chamar, pois a professora Dilse estava ali e o queria ver.
Chegando no interior da casa, sem que houvesse tempo de ao menos disfarçar o emburralhamento que se encontrava, ainda sem entender bem o que fizera com que sua mãe o chamasse até ali, visto não ser ainda a hora do café, ouve a pergunta da delegada escolar, a pessoa estranha que se encontrava a sua espera:
- José Mário, você quer estudar?
- Claro! Claro que quero! Todos aqui estudam; eu não, responde o menino.
- E você já estudou alguma vez?
- Um pouquinho; fiquei no Instituto em Salvador, mas, mãe não deixou eu voltar, porque quando vim de férias, estava muito magro e ...
Dona Arminda interrompeu para explicar:
- Acho que os maió, maltratava muito ele. Ele chegou aqui com uma laranja nas costa e outra na coxa... Dei a ele sumo de vassourinha, mastruz e, foi o que melhorou.
A professora Dilse retoma a palavra e afirma ao menino:
- Paro ano, você vai estudar. Vamos trazer professores aqui, para você estudar no Brasilino Viegas. Tá contente com a notícia?
- Tô, tô, responde o menino, com alguma euforia e grande surpresa, dado o inesperado da novidade.
Feitas as tratativas e acertadas as coisas com dona Arminda, a professora Dilse se despede, garantindo ao menino que no ano que vem, ele estará freqüentando a escola, como faziam seus colegas e irmãos.
Alguns meses se passaram depois daquela visita da delegada escolar a casa de dona Arminda. O menino vivia uma intensa ansiedade e tinha grandes expectativas do chegar o dia da ida para a escola. José Mário, contava as horas e, para ele os dias quase que não passavam. Não pensava em outra coisa, não queria outra coisa. Esperava com ansiedade, o momento em que voltaria a tomar contato com o Braille, o Cubarítimo; enfim, que passaria a ser chamado de estudante, seria aluno de algum professor, como o eram todos os da sua idade.
Mas, ao mesmo tempo, grandes eram as dúvidas que povoavam a cabeça de dona Arminda. Entre elas, de qual seria o modo como isso se daria, visto que os recursos daquela mulher, mesmo somados aos do seu companheiro, mal chegavam para o provimento do dia a dia: alimentos, roupas, calçados, higiene... Como então seria para mandar o menino para a escola, uma vez que quem o levasse teria que pagar a passagem na Kombe? E a farda do menino? Com qual roupa ou calçado iria ela mandar o filho para a escola?

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