sábado, 7 de julho de 2012

O MENINO JOSÉ MÁRIO

José Mário, paro ano, você vai para a escola
JOSÉ JORGE ANDRADE DAMASCENO

Naquela casa de taipa, coberta de telha vã e, sem reboco externo, o interno era feito a base de areia e cal; com pouca divisão em cômodos; na cozinha um fogão de lenha e/ou carvão vegetal; o banheiro de palha, separado do corpo da casa; o piso era de chão batido, mas muito limpo, morava dona Arminda com seus três filhos e seu companheiro.
Era uma mulher de seus trinta e poucos anos, forte de caráter e robusta de disposição para o trabalho, embora seu corpo nem sempre correspondesse àquela demanda pelo ofício de lavadeira de ganho, com o qual provia a si e aos seus, ajudada pelo companheiro ferroviário e pelo filho mais velho, primeiro como aguadeiro, depois como aprendiz de carpinteiro.
Mal o sol aparecia no horizonte, dona Arminda já se punha em pé, para enfrentar o seu labor diário. Depois de dar café aos filhos, arrumava três ou quatro trouxas de roupa em uma grande bacia, dava as instruções à filha do meio, com respeito ao almoço e saía em direção ao rio, não muito longe dali, para juntar-se a outras mulheres do seu mesmo ofício, para ensaboar, bater, "tirar o sujo", quarar, enxaguar, estender e enxugar as roupas que lhes eram confiadas, por patroas diversas, tarefa que lhes ocupava quase todo o dia.
Em tempos de sol abundante por volta das três ou quatro da tarde, já estava de volta, com parte da tarefa executada, não sem grande fatiga do corpo, que não teria descanso antes das nove ou dez da noite, pois teria que separar, dobrar e organizar cada peça, relacionando a cada patroa, não podendo perder a precisão de saber exatamente a qual delas pertencia cada lençol, cada vestido, camisa, calça, toalha de banho ou de mesa; não poderia chegar para a entrega e ouvir desta ou daquela patroa que, tal peça não viera; ou que qual peça não lhe pertencia!
Depois de separar e organizar cada peça de acordo com suas respectivas donas, era hora de botar brasa e carvão no ferro e, pô-lo para "pegar", a fim de com ele, iniciar a segunda parte de sua tarefa semanal: passar, engomar e preparar cada roupa para ser entregue na tarde da sexta ou na manhã do sábado, esperando a remuneração pelo seu trabalho, para com ela fazer o "arranjo", que permitiria mitigar a fome dela e dos seus filhos.
Corria o ano de 1968. A cidade passava por transformações estruturais de grande impacto no modo de viver de sua elite social, na medida em que se implantava o serviço de fornecimento de água, que até ali era feito no lombo de jegues e, uma vez concluída a construção da estação de capitação e a instalação da tubulação, passaria a ser encanada e tratada.
Ali, bem ali, às margens daquele rio onde dona Arminda e suas companheiras desenvolviam as atividades por meio das quais levavam o sustento para casa, começava a ser erguida a construção sobre a qual seriam instalados os equipamentos que fariam funcionar a estação de capitação, tratamento e distribuição de água, por meio de redes de encanamentos e reservatórios, que levaria aos lares dos ricos da cidade, aquele precioso líquido, agora tratado e distribuído, segundo os mais modernos métodos e processos então existentes.
Dando vasão a sua fama de cidade sempre a frente nos processos de modernização da vida urbana, Alagoinhas vivia aquele momento ímpar de sua história, aguardando com grande expectativa o instante em que as torneiras não mais seriam abertas por algum tempo, com seu abastecimento individual feito por jegues ou bombas, mas teria vasão constante, no momento em que precisasse, pois suas caixas d'água estariam sempre cheias, pois agora, receberiam automaticamente aquele valioso líquido, impulsionado pelo sistema operado pelo serviço autônomo de água e Esgoto.
Talvez por volta de setembro ou outubro daquele ano, dona Arminda se encontrava já em casa, realizando a segunda parte de sua faina cotidiana, quando recebe a inesperada visita de uma senhora rica, bem vestida, que fizera parar seu automóvel na frente daquela tosca residência, ainda sem energia elétrica, incrustada em uma rua sinuosa, poeirenta, apertada e sem qualquer tipo de pavimentação, por onde passavam as boiadas com destino ao matadouro público municipal. Por ali, raro era chegar um automóvel, menos ainda, um em cujo interior, se encontrasse uma autoridade.
Por isso mesmo, não foi sem surpresa que, naquela tarde morna de primavera, dona Arminda recebera em sua casa, aquela senhora de fino trato, bem vestida, bem arrumada, de mãos finas e delicadas, tão contrastantes com as suas, já grossas e ásperas, embora ainda não tivesse trinta e três anos completos.
Aquela mulher que se achava diante de dona Arminda, não era ninguém mais, ninguém menos, do que a professora Dilse, uma das autoridades da cidade e, na educação era a maior delas. Por suas mãos passavam as nomeações das professoras, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino público e a vida escolar dos alunos matriculados na rede estadual.
Aquela distinta senhora da sociedade Alagoinhense, ocupava o cargo de "Delegada escolar", posto a partir do qual exercia o poder político de uma das famílias tradicionais da cidade e, exercia grande influência, no que respeita a cooptação de votos e correligionários para com isso, poder manter o status de autoridade política e educacional que lhe fora atribuída.
- Boa tarde,dona Arminda. Posso entrar?
- Boa tarde minha senhora. Entre, sente...
Tendo entrado e se acomodado naquela cadeira rústica de compensado envernizado, a visitante tratou de ser direta e objetiva, passando imediatamente a tratar do motivo que a houvera levado até aquele lugar.
- Dona Arminda, eu estou aqui, pois fiquei sabendo que, a senhora tem um filho que não enxerga e ainda está fora da escola.
Sim, dona Arminda de fato tinha um filho que, pouco antes de completar o segundo ano de vida, ela descobrira que suas desconfianças de meses se faziam reais. O menino não enxergava. Era o menor dos três filhos que a ela cabia sustentar com seu trabalho duro de lavadeira de ganho.
O pai do garoto era um açougueiro conhecido no lugar, cujo único apoio que dera àquela mulher, fora, não sem muito custo, o reconhecimento da paternidade, através do registro de nascimento.
Talvez, sua história e a existência do garoto, que no momento da visita da Delegada escolar, contava sete anos, tivesse chegado ao conhecimento daquela autoridade, através de alguma das patroas de dona Arminda, pois algumas vezes, levara consigo seu filho, para alguma de suas muitas entregas de roupa.
Diante do espanto da dona da casa, a professora prosseguiu:
- Estamos aqui para dizer a senhora que, a partir do próximo ano, já será possível colocar seu filho na escola.
- Sim senhora! Mas...
- No prédio escolar Brasilino Viegas - interrompe a professora -, vai funcionar uma escola para cegos, com professores que darão a seu filho a oportunidade de estudar, sem que precise ir para o Instituto de Cegos em Salvador. A senhora entendeu?
- Entendi sim senhora.
- Onde está o menino?
- Tá no quintal, responde dona Arminda,voltando-se para o fundo da casa:
- Oh Zé Mário!...
José Mário se encontrava no amplo quintal, mergulhado em areia e brinquedos improvisados, alheio ao que se passava no interior da casa, visto procurar envolver-se naquela que era sua única forma de passar o tempo, que já lhe parecia longo, vivendo da casa para o quintal, com alguns momentos esporádicos de brincadeiras com as outras crianças de sua idade, tendo que ficar em casa quando todos os demais estavam ocupados e ele ali, sem que pudesse estudar como seus demais colegas e irmãos.
Não tendo o menino atendido ao chamado da mãe, esta manda que outra pessoa o vá chamar, pois a professora Dilse estava ali e o queria ver.
Chegando no interior da casa, sem que houvesse tempo de ao menos disfarçar o emburralhamento que se encontrava, ainda sem entender bem o que fizera com que sua mãe o chamasse até ali, visto não ser ainda a hora do café, ouve a pergunta da delegada escolar, a pessoa estranha que se encontrava a sua espera:
- José Mário, você quer estudar?
- Claro! Claro que quero! Todos aqui estudam; eu não, responde o menino.
- E você já estudou alguma vez?
- Um pouquinho; fiquei no Instituto em Salvador, mas, mãe não deixou eu voltar, porque quando vim de férias, estava muito magro e ...
Dona Arminda interrompeu para explicar:
- Acho que os maió, maltratava muito ele. Ele chegou aqui com uma laranja nas costa e outra na coxa... Dei a ele sumo de vassourinha, mastruz e, foi o que melhorou.
A professora Dilse retoma a palavra e afirma ao menino:
- Paro ano, você vai estudar. Vamos trazer professores aqui, para você estudar no Brasilino Viegas. Tá contente com a notícia?
- Tô, tô, responde o menino, com alguma euforia e grande surpresa, dado o inesperado da novidade.
Feitas as tratativas e acertadas as coisas com dona Arminda, a professora Dilse se despede, garantindo ao menino que no ano que vem, ele estará freqüentando a escola, como faziam seus colegas e irmãos.
Alguns meses se passaram depois daquela visita da delegada escolar a casa de dona Arminda. O menino vivia uma intensa ansiedade e tinha grandes expectativas do chegar o dia da ida para a escola. José Mário, contava as horas e, para ele os dias quase que não passavam. Não pensava em outra coisa, não queria outra coisa. Esperava com ansiedade, o momento em que voltaria a tomar contato com o Braille, o Cubarítimo; enfim, que passaria a ser chamado de estudante, seria aluno de algum professor, como o eram todos os da sua idade.
Mas, ao mesmo tempo, grandes eram as dúvidas que povoavam a cabeça de dona Arminda. Entre elas, de qual seria o modo como isso se daria, visto que os recursos daquela mulher, mesmo somados aos do seu companheiro, mal chegavam para o provimento do dia a dia: alimentos, roupas, calçados, higiene... Como então seria para mandar o menino para a escola, uma vez que quem o levasse teria que pagar a passagem na Kombe? E a farda do menino? Com qual roupa ou calçado iria ela mandar o filho para a escola?

PROFESSORDAMASCENO@GMAIL.COM; HISTORIADORBAIANO@GMAIL.COM

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