segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Voltando aos escritos de Maria Feijó - depois de seis anos

             

Histórias e memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó – XVI: retomando

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno

 

É a partir do ano de 2012, que este autor começa a tomar contato, ler  e se interessar pela produção literária – sobretudo a prosa - de Maria Feijó e, entre os anos de 2013e 2014, entre os meses de outubro e maio, escreveu uma série de dezesseis pequenos textos que publicou no jornal eletrônico “Alagoinhas Hoje”. As quatro primeiras daquelas publicações, após receberem uma redação acadêmica, resultaram no capítulo intitulado “Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria Feijó —1972-1988”, publicado em 2015, no livro “Alagoinhas: histórias e historiografia”, organizado pela professora Eliana Evangelista Batista. Outros daqueles arrazoados foram incorporados a outras publicações, como por exemplo, o artigo intitulado “ESCRITA DA HISTORIA DA CIDADE – MEMÓRIAS E NARRATIVAS: ALAGOINHAS COMO OBJETO DE ATENTOS VIAJANTES E MEMORIALISTAS (1889-1960)”, publicado na revista eletrônica “Veredas da História.

Aqui, se pretende retomar a série de publicações, depois de seis anos da última, que aliás, será o ponto da retomada da aludida série, uma vez que através dela, se pretende – como já indicava – aprofundar o exame da obra “pelos Caminhos ... de uma Professora Primária”, prosa que este articulista pensa tratar-se de um tratado memorialístico, hipótese que espera deixar clara ao finalizar o último dos arrazoados.

Assim, a ideia é retomar o fio da meada, publicando na íntegra o último dos textos, sem grandes alterações.

Espera-se contribuir para um diálogo em torno desta obra monumental que joga luzes e sombras sobre as “Histórias e memórias de Alagoinhas”, encontradas em grande monta na obra que aqui se pretende discutir.

 

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Há já largas semanas, se vem discorrendo sobre as histórias e memórias de Alagoinhas, que podem ser apreendidas na prosa de Maria Feijó, publicada entre as décadas de 1970 e 1980.

Tendo nascido naquela Alagoinhas ainda muito pacata dos idos de 1918 e nela vivido até os finais da década  de 1940 ou inícios da década seguinte, ocasião em que, segundo informa Eliana Batista em sua dissertação de  mestrado intitulada “A NORMALISTA COMO INTERSEÇÃO: ESCOLA, LITERATURA, IMPRENSA E ESTRATÉGIAS POLÍTICAS NO ESTADO NOVO (ALAGOINHAS / 1937-1945)”,defendida em 2012, "a escritora abandona o magistério primário", na década de 1950, a jovem Feijó se lança em busca de alargar seus horizontes, rumando para a então Capital do Brasil, para nela prosseguir vivendo e ali, escrever grande parte de sua obra, que teve os jornais locais como viveiros nos quais, ainda nos seus tenros anos, semeou as sementes e viu crescer as primeiras mudas do seu bosque literário.

Assim é que, com base na sua vivência profissional e na convivência sociocultural com o cotidiano em que esteve inserida, Marijó, como assinava seus escritos nos periódicos da cidade e da região, tece os fios de sua memória, entrelaçando-os aos muitos fios de outras memórias individuais e coletivas, com os quais acaba construindo um tecido narrativo que entrega ao exame de seu leitor , sobretudo, em “Alecrim de Tabuleiro”, “Pensionato Paraíso das Moças outros ensaios” e “Pelos Caminhos da Vida ... de uma Professora Primária”, o mais alentado dos três volumes, por isto mesmo o de maior complexidade e de mais difícil leitura.

Nos arrazoados já escritos até aqui, o material em exame provinha de textos diretos, nos quais, a própria cronista era ao menos uma das protagonistas das suas narrativas, envolvendo-se com as mais diversas situações, vivendo as mais diferentes circunstâncias. Neles, ela dá a conhecer suas formas de pensar, suas visões de mundo, seus hábitos, gostos e costumes, sempre se apresentando como agente ativo da narrativa. Suas observações acerca do desenvolvimento urbano da cidade natal; suas críticas mais ácidas a comportamentos de pessoas e/ou de grupos de pessoas; seus elogios mais rasgados a alguém e/ou a alguma coisa que lhe agrada, na cidade distante, que ela não perde de vista; mesmo os enlevos reminiscentes de tempos de há muito vividos, aparecem naqueles textos de Feijó que até aqui foram apreciados, sem que ela procure esquivar-se à sua identidade ou esgueirar-se por trás de alguma árvore frondosa, para não ter seu rosto reconhecido.

No entanto, quando se toma a sua mais alentada obra e, se percorre as oitocentas páginas de “Pelos Caminhos da vida ... de Uma Professora Primária”,visto que, como bem observou a professora Eliana Batista, em dissertação já aludida acima, "as duas outras prosas de sua lavra, não ultrapassava o limite de cento e cinquenta páginas", nota-se que a escritora alagoinhense procura lançar mão de técnicas narrativas que lhe permitam sair do texto enquanto protagonista, colocando-se como aquela que dá voz a uma narradora, a partir de quem desenvolverá todo o trabalho de escrita do romance.

Assim é que, logo nas primeiras páginas da obra, destinadas ao que se convencionou chamar de “pré-textos”, Maria Feijó procura se cercar de cuidados relacionados ao teor das páginas que se seguirão, tratando de construir uma espécie de escudo, por meio do qual possa defender-se de eventuais problemas que suas afirmações e/ou informações possam trazer.

É esta, e não outra, a razão que leva a autora a afirmar que “As páginas que se seguem, apresentando semelhança com fatos e pessoas vivas ou mortas, é apenas coincidência...”.

Ao comentar esta afirmativa em arrazoado publicado na revista eletrônica “Veredas da História, foram feitas algumas observações que aqui serão transcritas. Ali, este autor pondera que “já na página seguinte” [Feijó], “trata de advertir ao leitor que”:

 

Luísa Peixoto? Não. Ela não existe em particular e, sim, em todas as Professoras Primárias do Interior da Bahia. Em todas elas há uma Luísa Peixoto. Sem tirar nem pôr. Os outros personagens? [...], não existe A, B ou C nestas páginas. Meus personagens se locomovem, vivem,” figuram” em todas as Professoras Primárias do Interior. Um pouco de cada uma em todas elas. Dessa maneira, ninguém precisa ficar preocupado, porque não se achará. Nem a própria Luísa Peixoto! Apenas... procurei alguns fatos, avulsamente, aqui. ali., e os romanceei, a fim de dar um toque mais interessante e colorido a este narrar-de-coisas. [...].[1]

 

O autor prossegue sua análise, afirmando que:

“Tamanha precaução, lembra o recurso utilizado pelo escritor baiano Jorge Amado 1912-2001, ao apresentar o livro Farda fardão, camisola de dormirfábula para acender uma esperança. Como se percebe, o autor informa já no subtítulo da obra, tratar-se de uma “fábula”. Era a história de uma conturbada sucessão na Academia Brasileira de Letras, que se apresentaria diante do seu leitor. Diz Jorge Amado uma página antes de iniciar sua narrativa:

 

“Esta fábula conta como dois velhos literatos, acadêmicos e liberais, partiram em guerra contra o nazismo, a ditadura e a prepotência. Toda e qualquer semelhança com tipos, organizações, academias, classes e castas, figuras e sucessos da vida real será pura e simples coincidência, pois a anedota é produto exclusivo da imaginação e da experiência do autor. Reais são apenas a ditadura do Estado Novo com a Lei de Segurança, a máquina de repressão, as prisões cheias, as câmaras de tortura e o obscurantismo, e a Segunda Grande Guerra Mundial, desencadeada pelo nazifascismo, em seu pior momento, quando se dava tudo por perdido e a esperança fenecia.[2]

 

É assim que, daqui por diante, se pretende discorrer sobre a obra “Pelos caminhos ... de uma professora primária”, publicada em 1978, salientando nela os aspectos memorialísticos em torno das “histórias” envolvendo Alagoinhas e alagoinhenses encontrados ao longo daquelas oitocentas páginas de escrita corrida, de leitura quase sem tomar fôlego, observando-se as descrições e ideias inerentes àquele tipo de prosa.

Saliente-se outrossim, que outros estudiosos da obra de Maria Feijó de Souza, como é o caso da professora Eliana Evangelista Batista, terão os seus trabalhos utilizados como referências que ajudarão a desenvolver este arrazoado.



[1] FEIJÓ, Maria. Op. Cit., 1978.

[2] AMADO, Jorge. Farda Fardão Camisola de Dormir- Fábula para Acender uma Esperança. 16ª Edição, Record, Rio de Janeiro, Rj, 1997.(A primeira edição é de 1979).


"Viva a Uneb Campus II" - Texto da professora Iraci Gama Santa Luzia.

 Viva a UNEB - Campus II.pdf

Viva a UNEB - Campus II 

Na memória política do Brasil, 24 de agosto é uma data de 

triste lembrança, porque em 1954,o Presidente Getúlio Vargas 

desistiu da vida, ou, como disse ele: " saio da vida, para entrar na 

história". Mas, quarenta anos depois, um fato especial, entra na 

história de Alagoinhas: 24 de agosto de 1994, inaugura-se o prédio 

próprio da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas - 

FFPA, na área do Campus Universitário de Alagoinhas. Vitória da 

comunidade alagoinhense - estudantes, professores e funcionários, 

junto com a comunidade não acadêmica, ou seja, a sociedade em 

geral, que participou de entrevistas, de pesquisas, de visitas dentro 

da cidade - sede e das vizinhas, que para cá, mandavam seus 

conterrâneos. Aqui todos se transformavam em membros de uma 

sociedade que lutava pelo mesmo objetivo: melhorar o nível 

educacional e socio-cultural da região. Em sala, não havia 

Alagoinhas, Aramari, Araçás, Entre Rios, Catu, Pojuca, Mata de São 

João, Camaçari, Pedrão, Olindina, Conde, Acajutiba, e até mais 

distantes, como Ri Real, Feira e Salvador. Nossa, não posso 

esquecer Inhambupe ( ventre desse Território), Aporá. Discutíamos 

a realidade e buscávamos melhorar a situação de todos. E fomos 

sentindo necessidade de maior espaço para abrigar outros cursos, e 

principalmente, ter cursos de duração plena que nós permitissem 

formar profissionais que pudessem se qualificar em cursos de Pós-

Graduaçao ,para assumir a docência entre nós , acabando com a 

aflição da dependência de professores de Salvador ,de um modo 

geral, e às vezes, de Feira. 

Em 1983, surge a Lei Delegada número 66 criando a 

Universidade do Estado da Bahia - UNEB, pelo processo de inclusão 

de algumas Faculdades, dentre as quais, a nossa. Começou uma luta 

interna, e aqui, formamos equipes de trabalho, dentre as quais, 

assumi a Coordenação Geral e a Coordenação da Comissão Pró 

Campus Universitário de Alagoinhas. Localizamos várias áreas, mas 

nós apaixonamos pela da antiga Fazenda Experimental de 

Citricultura, e lutamos, por ela. De 1983 até 1989, quando a 

recebemos, por transação entre a Secretaria de Educação e a 

Secretaria de Agricultura, com a intermediação do Reitor da UNEB. 

E fizemos uma festa na área da sede da Fazenda, com a presença 

dessas autoridades. E começamos a nova luta - a da construção do 

prédio próprio , com laboratórios específicos da área de Ciências, 

para a mudança da instituição, o que aconteceu em julho de 1994. 

Imediatamente, começamos a discutir a montagem de novos 

cursos, e o primeiro deles foi de Análise de Sistemas, na nossa 

gestão. Sim, porque em dezembro de 1993, a comunidade 

acadêmica me elegeu Diretora da FFPA, o que valia por quatro anos. 

Portanto, na transferência, inauguração, do pré dio e área do 

Campus, encerramos a missão de coordenar a Comissão Pró 

Campus, no dia 24 de agosto de 1994. Mas essa alegria não era 

isolada. Havia outra, igualmente importante: a Biblioteca Municipal, 

reativada pela Casa da Cultura de Alagoinhas e entregue à 

Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, em 1988, estava pronta para 

ocupar o seu próprio, situado na Praça Conselheiro Rui Barbosa, 

onde você pode ler, agora na fachada - BIBLIOTECA PÚBLICA 

MUNICIPAL MARIA FEIJÓ. Que orgulho sinto, minha Alagoinhas, de 

ter essas lembranças de ações dignificantes, em favor de nosso 

querido povo. E aproveito para externar, publicamente, os 

agradecimentos a Murilo Cavalcanti que honrou o nosso 

compromisso de tirar a Faculdade e colocar a Biblioteca, que, por 

incrível coincidência, foi um prédio construído por ele, para ser a 

Biblioteca , em 1972, e foi emprestado, por Judelio Carmo, Prefeito 

de 1973, para o Estado acomodar a FFPA. Em 1994, Murilo 

novamente Prefeito. A FFPA/UNEB, em casa nova e a Biblioteca de 

volta à sua casa! E os meus passos intermediando os fatos, com a 

ajuda de toda essa nossa querida Alagoinhas! Viva a continuidade 

administrativa! Viva a EDUCAÇÃO!!! 

Professora Iraci Gama 

Vice-prefeita de Alagoinhas 

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Quando a Feira era do Pau e a Primeira Igreja era Batista - algumas notas

 

Quando a feira era do Pau e a Primeira Igreja era Batista – 1980-1981: algumas notas

 

I.                     - Logo após a realização da feira, no seu dia mais efervescente, chegava à tarde do sábado e o trabalho de desmonte das barracas e de limpeza do local resultava grande. Um bom número de servidores da prefeitura era mobilizado a partir das duas, pouco mais ou menos; também se mobilizavam aqueles que só teriam alimentos, caso pudessem retirar as frutas, verduras e legumes que eram descartados. Há que se imaginar quão volumoso fora aquele material recolhido por aqueles que não os pudera comprar; quantos não foram aqueles que só puderam alimentar/ser alimentado, mediante o trabalho de recolhimento daqueles produtos que não puderam ser vendidos em razão do rebaixe de qualidade?

Por outro lado e no rastro do desenvolvimento da feira em sua realização fora dos parâmetros convencionais, uma parte de comerciantes e fregueses se dirigia até as tabernas para a bebedeira que se faria longa, varando a noite e a madrugada, algumas vezes entrando pelo domingo. As casas de “facilidades” também contribuíam com a sua parte naquele espaço de sociabilidade, proporcionando aos frequentadores, os momentos de desaceleração das tensões vividas no mourejar entre mercadores e mercadorias, entre compras e vendas de produtos, apurando as entradas e as saídas, contando os resultados... As tardes, noites e madrugadas eram intensamente desfrutadas em danças, cantos, bebedeiras, brigas, intrigas, refregas... o que permitia a circulação de outras mercadorias que não aquelas destinadas ao consumo das casas.

II.                   - Nas manhãs de domingo, o espaço ocupado por uma parte da feira, era transitado pelos crentes que se dirigiam à sua Igreja, para lá tomar parte das atividades relacionadas ao culto: escola bíblica dominical; cantos e declamações; o sermão dominical, regularmente proferido pelo seu pastor, momento áureo daquelas celebrações. E, os cheiros da feira passada, ainda se podia sentir, nas frescas manhãs em que este escrevedor se dirigia àquele espaço de culto. Mesmo tendo sido lavada na tarde anterior, a feira mantinha quase intacto o seu cheiro característico de vegetais abandonados ao processo de putrefação, mas ainda não tendo chegado àquele estado. Para lá convergiam os irmãos, em geral de ônibus ou a pé – os carros eram poucos: o Dodge Polara do pastor Jamim, a variante do irmão Cassemiro, a Brasília do pastor Jessé, eram os automóveis (talvez mais alguns poucos) -, saídos dos mais diversos espaços de sua habitação.

III.                 Aqui se poderia lembrar de alguns irmãos do Barreiro como por exemplo o irmão Zuca –José Marcelino  com o seu vozerio e gargalhar característico -e Clementina, Durval Leite – que no meio da semana rumava para os cultos nas residências com a sua inconfundível lâmpada - e sua esposa, irmã  Ana Leite; Ana Pereira e seus filhos Pedro e Luciano; Cassemiro e Isauri com as filhas Zuleide e Zulene; Maria da Paz e filhas; Áurea e filhas deixavam suas casas no Silva Jardim; Astrogildo e Antônia, por sua vez, saíam da praça Santa Isabel; Dilza Augusto e sua filha Janete Rose, saíam da Urbes I; irmã Madalena Leite – com quem este garatujador mantinha longas e agradáveis conversas nas frescas tardes do 2 de julho -, as irmãs Inês e a filha Analice, Miriam e alguns dos filhos, Gracinha, Dinha e filhos, o casal Paulo e Ivone e, este escrevedor, entre muitos outros irmãos, cuja citação nominal não é possível neste espaço, todos tomavam os ônibus que partiam dos seus bairros e se dirigiam até o terminal, para dali igualmente se deslocar ao local onde se reuniriam para adorar ao Deus Eterno, aprender na Escola Bíblica Dominical e serem edificados pela mensagem matinal, encontrada no sermão proferido pelo pastor.

IV.                - Já se vão distantes os dias em que se ouvia hinos cantados a capela – como “junto a Jesus, a minha estrada esplende, meu cálice se extravasa de prazer[...] Junto a Jesus o fardo faz-se leve, e o meu dever, deleita-me e seduz[...] Se perto está,”, se tenho junto a mim, Jesus, os meus anseios todos satisfaz; se perto estás, me inunda o coração de paz: num paraíso estou se perto está Jesus [...] cantado pela professora Maria Rita Borges (https://youtu.be/lP-EKd8zaws) -; o sereno e tranquilo diácono José Santana, também fazia o seu “solo” com voz firme e afinada, a despeito dos longos dias já percorridos na sua existência – “[...], eis a mensagem que ele deu; os anjos cantam lá no céu... reconciliai-vos já, é a ordem que ele deu [...] reconciliai-vos já, com Deus” (cantor cristão) -, além da voz bonita e forte da irmã Isauri, também presente entre os “solistas” dos cultos daqueles já longínquos momentos aqui lembrados; ou acompanhados por violão/guitarra sob o protagonismo do então jovem irmão Edmilson e os hinos congregacionais acompanhados pelo velho harmônio executado pelo irmão Cassemiro e, mais tarde, pelo novíssimo e moderno órgão elétrico, executado pelas musicistas Débora e Edileusa; as declamações de poesias de Mirtes Martins, quase sempre na voz de Zuleide; o conjunto “Som Celeste”, fazia harmônicas apresentações, sob a regência da irmã Edileusa; entre tantas lembranças daqueles já distantes tempos, que ainda assomam os sentidos.

V.                  - Era naquelas tardes de fim de feira, que a Primeira Igreja buscava semear aquilo que era parte inerente à sua razão de ser: o Evangelho. Naquelas incursões, fazia-se o trabalho de levar o conhecimento da “fé que salva”, para aquela gente que labutava naquele ir e vir de dias, pessoas, mercadorias, tensões, alegrias, tristezas, buscando constituir-se em uma alternativa àqueles que já não mais se quisessem manter vivendo da forma que viviam, pensando da forma que pensavam, agindo da forma que agiam.

Foi assim que, em uma daquelas tardes em que feirantes e fregueses se dispunham a voltar para as suas casas ou dirigirem-se aos espaços de refúgio ali próximos, a Primeira Igreja, sob a liderança do seu então pastor, promoveu um culto ao ar livre, com o fito de levar alguns dos rudimentos do Evangelho salvífico aos ouvidos daqueles que se dispusessem a ouvir. Vários membros daquela instituição Batista ali se reuniram: leram a Bíblia, distribuíram folhetos, falaram diretamente aos transeuntes naquele entorno, cantaram hinetos de fácil compreensão e memorização, bem como alguns hinos tradicionais, talvez até já ouvidos por alguns dos assistentes daquele culto quase improvisado. Requisitado pelo seu pastor, este escrevedor tomou parte daquela atividade evangelística e, em tarde quase crepuscular, fez lá o que acreditava saber fazer: cantou. Mas, na sua inexperiência juvenil, cantou um hino que acreditava seria de grande impacto para aquela gente. No entanto, hino grande, com letra forte, porém inacessível à compreensão de grande parte do público que ali se acotovelara, mormente movidos pela curiosidade do inusitado acontecimento que ali se dava. O hino cantado tinha um título bonito e convidativo, “Eterno Lar” - https://www.youtube.com/watch?v=JuV2iKE5gKk -, que o solista usou o seu próprio violão como acompanhamento, o que talvez tenha trazido ainda mais dificuldade, uma vez que precisava estar atento ao texto da letra e aos jogos de notas musicais que teria de executar simultaneamente à interpretação vocal.

Como se disse, letra precisa, teologicamente sustentável, mas com pouca clareza – embora dura e direta – para os que nunca houvera tido contato com aquele tipo de prédica. Não é possível saber se daquele evento houve algum fruto imediato ou mediato. No entanto, o trabalho foi feito e a semente foi lançada, conforme o propósito do evento.

 

Professor Jorge Damasceno

domingo, 16 de agosto de 2020

QUANDO A FEIRA ERA DO PAU E A PRIMEIRA IGREJA ERA BATISTA

 

Quando a feira era do “pau” e a Primeira Igreja era Batista – 1980-1981 – Memória e memorialística: algumas reflexões

 

Já se disse em escritos anteriores, que a “feira do pau” era um espaço marcado pela presença de algumas edificações que acabavam por destoar das representações que ela despertava no imaginário coletivo, sobretudo, aquelas relacionadas com a miséria – física e “moral” – que marcava aquele espaço de convivência plural. o simples uso da expressão “feira do pau”, produzia naquele que a ouvia ou lia, um “quê” de repulsa moralizante ou, em outros casos, uma espécie de “compaixão” intelectual – ambas quase sempre estéreis -, ensejando as mais diversas reações, em consonância  com o “impulso” despertado diante da leitura ou da audição da expressão.

Uma vez mais, precisa-se evocar Pierre Nora, com a sua noção de “lugares de memória”, pois aquele espaço da parte central de Alagoinhas, frequentado pelos seus já cerca de 90 mil habitantes e, que foi “lugar” de vivências e convivências diárias até o início da década de 1990, é um “lugar de memória” por excelência, uma vez que persiste nos rememorares de tantos quantos por lá passaram ou lá viveram. Diz o historiador francês, dedicado estudioso de fenômenos ligados à memória:

 

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. [...]” (Nora, 1993, P. 13).

 

É assim a “Feira do Pau”, conforme as premissas contidas no trecho acima transcrito: gerações de feirantes e fregueses viveram e conviveram naquele espaço de venda/compra de aves, roupas, calçados, móveis de fabricação artesanal e produtos de toucador; produção/consumo de alimentos; de ações e interações entre pessoas, vidas e mortes, ao longo de mais de uma centena de anos. Ali, lado a lado com as precárias barracas de madeira, muitas vezes feitas com as sobras reaproveitadas dos caixotes em que eram acondicionados alguns tipos de mercadorias comercializadas, também erguiam-se casas comerciais de pequeno, médio e grande porte, que orgulhosamente se elevavam em troça desdenhosa contra as frágeis e rudes “lojas” de madeira reciclada.

Assim, estavam instaladas naquele mesmo espaço pleno de rusticidades, padarias, armazéns de “sêcos e molhados”, farmácias, açougues, empórios, casas de produtos agrícolas e de jardinagem; também ali se podia encontrar casas de ervas e demais produtos relacionados com o sincretismo religioso e aos cultos de “matriz africana” e, devidamente abrasileirados. Outrossim, era naquele mesmo espaço de circulação popular, que se erigia o prédio onde fora a sede do “Alagoinhas Jornal.

Fora também ali que se fizera funcionar as escolas  “Betel” – que por um tempo esteve inserida no espaço da igreja, para depois ser edificada Na Aristóteles de Souza Dantas, Mangalô, com o nome de escola Manoel Góes –, bem como o “Brasilino Viegas” – que até os dias de hoje, ali está situado.

Ainda na “feira do pau”, se encontrava na esquina que leva ao Teresópolis, o prédio do “mercado da Farinha”, local de grande fluência das gentes e convivência social, onde se podia conversar, rir e chorar, comer e beber fartamente – feijoadas, fatadas, peixes fritos, mingaus, dentre outras iguarias da culinária popular.

Talvez, um pouco mais abaixo do mercado da farinha, já descendo na direção da “linha do Timbó” - ou aos fundos do prédio escolar Brasilino Viegas, não está claro para este escrevedor, pois, lá nunca fora -, podia ser encontrado o “posto de saúde”. Muitos outros edifícios estavam fincados naquele espaço onde a “feira” se realizou por mais de cem anos. Porém, a tentativa de os alistar de modo exaustivo, poderia se fazer enfadonho e dispersar os leitores, no que tange ao objetivo deste garatujar.

Será preciso recorrer uma vez mais ao historiador francês Pierre Nora, para aclarar um pouco mais a noção de “Lugares de Memória”.

“[...]. Diferentemente de todos os objetos da história, os lugares de memória não têm referentes na realidade. Ou melhor, eles são, eles mesmos, seu próprio referente, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro. Não que não tenham conteúdo, presença física ou história; ao contrário. Mas o que os faz lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam da história. Templum: recorte no indeterminado do profano - espaço ou tempo, espaço e tempo - de um círculo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade; e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações” (Nora, 1993: P. 27). 

 

 

 

Já o sociólogo Maurice Halbwach (1877-1945), também francês, é trazido aqui para destacar algumas observações acerca da “Memória Coletiva”. Em uma obra póstuma com o este título, Halbwach assevera que:

 

“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. [...], cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social”. (HALBWACH, 2003, p. 69). 

 

Sendo assim, se “[...], são os indivíduos que se lembram [...], este escrevedor tem muito nítido no seu rememorar o espaço – tanto físico quanto social -, as sensações olfativas e auditivas que conformam a “feira do Pau”. Estes e outros materiais – sem perder de vista os elementos “imateriais” – formam o todo por meio do que se constrói a “memória coletiva” daquele que é um “lugar de memória” indelevelmente inserido naqueles que já tenham passado dos cinquenta anos de idade.

Entre os elementos conformadores do espaço da Feira do Pau, aqui se quer evocar um edifício específico, que acabou por se tornar um “lugar de memória” deste garatujador. Ele se localiza na esquina da rua Alcindo de Camargo com a Marechal Bitencourt, a direita, no sentido de quem caminha do então terminal de coletivos, na rua Castro Leal, em direção à “feira do pau”. Naquele prédio se reunira por vários anos, a Primeira Igreja Batista de Alagoinhas. Durante muito tempo, muitos foram os pés que aos domingos pela manhã e à noite e nas quartas feiras, igualmente à noite, palmilharam as cinco calçadas que terminariam naquele espaço de culto protestante. E, por um breve período de vinte e dois meses, também os pés deste escrevedor se encaminharam até lá.

Era janeiro de 1980, uma noite de domingo quando lá chegou. Conhecia alguns que lá cultuavam, por isso não tendo dificuldades de ambientação; fora conduzido à “União de treinamento”, onde esteve até o momento em que todos foram dirigidos ao “santuário” para participar do serviço religioso. Sentado no último banco, visto não se sentir à vontade para ficar entre aqueles que já eram frequentes assistentes daqueles cultos, teve a agradabilíssima surpresa de ser cumprimentado pelo pastor da Igreja. Tal gesto do Reverendo Jessé da Silva, era-lhe habitual; mas aquele visitante se surpreendera, por acreditar que o iminente líder daquele lugar de culto, apenas cumprimentaria os seus já conhecidos, ainda que não já convertidos.

Convidado que fora para voltar ali na semana seguinte, ocasião em que se realizaria uma série de conferências “inspirativas” – expressão desconhecida pelo visitante -, alusivas ao aniversário de fundação daquela Igreja na cidade, que se dera em 1919, ali permanecera desde então, até 29 de novembro do ano seguinte.

Crê-se que aqui caberia a seguinte passagem extraída da já mencionada obra de Maurice Halbwachs, que diz  “[...].A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo,  pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACH, 2006: P. 69).

Este escrevedor tem na sua memória o “cultuar” Batista, apreendido e vivido naquele ambiente onde aprendera e convivera, ainda que por um “tempo breve”. Ele tem no seu rememorar, igualmente claro, os elementos constitutivos do “ser” e do “crer” Batista, na medida em que as experiências por ele vividas posteriormente ao seu desligamento daquela convivência, ajudaram na cristalização daqueles elementos, visto que tais experiências apontavam à modos de “ser” e de “crer” diferentes e, até mesmo antagônico àqueles preconizados no modo de “ser” e de “crer” Batista. E, certamente, isto se deve ao conjunto formado pelos membros da então “Primeira Igreja Batista de Alagoinhas”, que, ao interagir com este escrevedor e com ele trocar as experiências coletivas inerentes àquele processo de sociabilidade cúltica. Tal compreensão é reforçada por mais uma passagem encontrada na clássica “A Memória Coletiva”, de Maurice Halbwachs:

 

“É muito comum atribuirmos a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias, reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspiradas pelo nosso grupo. Estamos em tal harmonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos outros. Quantas vezes expressamos, com uma convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou de uma conversa! Elas correspondem tão bem à nossa maneira de ver, que nos surpreenderíamos ao descobrir quem é seu autor e constatar que não são nossas.” Já havíamos pensado nisso” — não percebemos que somos apenas um eco. [...] (HALBWACHS, 2006, p. 63

Mas, passado já um bom punhado de tempo, aquele prédio não é mais “igreja”; não abriga mais homens e mulheres que se ajuntaram durante longo tempo para “invocar” o nome do Senhor e a Ele prestar culto. Já está em outro lugar; no preciso momento em que estas linhas são escritas, já não é mais Batista, ao menos, no modo de cultuar, de “ser” e de “crer”.

 

Professor Jorge Damasceno