Quando a feira era do “pau” e a Primeira Igreja era Batista
– 1980-1981 – Memória e memorialística: algumas reflexões
Já se disse em escritos anteriores,
que a “feira do pau” era um espaço marcado pela presença de algumas edificações
que acabavam por destoar das representações que ela despertava no imaginário
coletivo, sobretudo, aquelas relacionadas com a miséria – física e “moral” –
que marcava aquele espaço de convivência plural. o simples uso da expressão
“feira do pau”, produzia naquele que a ouvia ou lia, um “quê” de repulsa
moralizante ou, em outros casos, uma espécie de “compaixão” intelectual – ambas
quase sempre estéreis -, ensejando as mais diversas reações, em
consonância com o “impulso” despertado
diante da leitura ou da audição da expressão.
Uma vez mais, precisa-se evocar
Pierre Nora, com a sua noção de “lugares de memória”, pois aquele espaço da
parte central de Alagoinhas, frequentado pelos seus já cerca de 90 mil habitantes
e, que foi “lugar” de vivências e convivências diárias até o início da década
de 1990, é um “lugar de memória” por excelência, uma vez que persiste nos
rememorares de tantos quantos por lá passaram ou lá viveram. Diz o historiador
francês, dedicado estudioso de fenômenos ligados à memória:
“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento
que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, atas,
porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias,
de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados
nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de
memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São
bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse
ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos
verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em
compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los,
transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de
memória. [...]” (Nora, 1993, P. 13).
É assim a “Feira do Pau”, conforme as premissas contidas no
trecho acima transcrito: gerações de feirantes e fregueses viveram e conviveram
naquele espaço de venda/compra de aves, roupas, calçados, móveis de fabricação
artesanal e produtos de toucador; produção/consumo de alimentos; de ações e
interações entre pessoas, vidas e mortes, ao longo de mais de uma centena de
anos. Ali, lado a lado com as precárias barracas de madeira, muitas vezes feitas
com as sobras reaproveitadas dos caixotes em que eram acondicionados alguns
tipos de mercadorias comercializadas, também erguiam-se casas comerciais de
pequeno, médio e grande porte, que orgulhosamente se elevavam em troça
desdenhosa contra as frágeis e rudes “lojas” de madeira reciclada.
Assim, estavam instaladas naquele mesmo espaço pleno de
rusticidades, padarias, armazéns de “sêcos e molhados”, farmácias, açougues, empórios,
casas de produtos agrícolas e de jardinagem; também ali se podia encontrar
casas de ervas e demais produtos relacionados com o sincretismo religioso e aos
cultos de “matriz africana” e, devidamente abrasileirados. Outrossim, era naquele
mesmo espaço de circulação popular, que se erigia o prédio onde fora a sede do
“Alagoinhas Jornal.
Fora também ali que se fizera funcionar as escolas “Betel” – que por um tempo esteve inserida no
espaço da igreja, para depois ser edificada Na Aristóteles de Souza Dantas,
Mangalô, com o nome de escola Manoel Góes –, bem como o “Brasilino Viegas” – que
até os dias de hoje, ali está situado.
Ainda na “feira do pau”, se encontrava na esquina que leva
ao Teresópolis, o prédio do “mercado da Farinha”, local de grande fluência das
gentes e convivência social, onde se podia conversar, rir e chorar, comer e
beber fartamente – feijoadas, fatadas, peixes fritos, mingaus, dentre outras
iguarias da culinária popular.
Talvez, um pouco mais abaixo do mercado da farinha, já descendo
na direção da “linha do Timbó” - ou aos fundos do prédio escolar Brasilino
Viegas, não está claro para este escrevedor, pois, lá nunca fora -, podia ser
encontrado o “posto de saúde”. Muitos outros edifícios estavam fincados naquele
espaço onde a “feira” se realizou por mais de cem anos. Porém, a tentativa de
os alistar de modo exaustivo, poderia se fazer enfadonho e dispersar os
leitores, no que tange ao objetivo deste garatujar.
Será preciso recorrer uma vez mais ao historiador francês
Pierre Nora, para aclarar um pouco mais a noção de “Lugares de Memória”.
“[...]. Diferentemente de todos os
objetos da história, os lugares de memória não têm referentes na realidade. Ou
melhor, eles são, eles mesmos, seu próprio referente, sinais que devolvem a si
mesmos, sinais em estado puro. Não que não tenham conteúdo, presença física ou
história; ao contrário. Mas o que os faz lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente,
eles escapam da história. Templum: recorte no indeterminado do profano -
espaço ou tempo, espaço e tempo - de um círculo no interior do qual tudo conta,
tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar
duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua
identidade; e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a
extensão de suas significações” (Nora, 1993: P. 27).
Já o sociólogo Maurice Halbwach (1877-1945), também francês,
é trazido aqui para destacar algumas observações acerca da “Memória Coletiva”.
Em uma obra póstuma com o este título, Halbwach assevera que:
“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como
base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto
integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas
outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles.
[...], cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo
lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de
surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando
tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de
influências que são todas de natureza social”. (HALBWACH, 2003, p. 69).
Sendo assim, se “[...],
são os indivíduos que se lembram [...], este escrevedor tem muito nítido no seu
rememorar o espaço – tanto físico quanto social -, as sensações olfativas e auditivas
que conformam a “feira do Pau”. Estes e outros materiais – sem perder de vista
os elementos “imateriais” – formam o todo por meio do que se constrói a “memória
coletiva” daquele que é um “lugar de memória” indelevelmente inserido naqueles
que já tenham passado dos cinquenta anos de idade.
Entre os elementos conformadores
do espaço da Feira do Pau, aqui se quer evocar um edifício específico, que
acabou por se tornar um “lugar de memória” deste garatujador. Ele se localiza
na esquina da rua Alcindo de Camargo com a Marechal Bitencourt, a direita, no
sentido de quem caminha do então terminal de coletivos, na rua Castro Leal, em
direção à “feira do pau”. Naquele prédio se reunira por vários anos, a Primeira
Igreja Batista de Alagoinhas. Durante muito tempo, muitos foram os pés que aos
domingos pela manhã e à noite e nas quartas feiras, igualmente à noite,
palmilharam as cinco calçadas que terminariam naquele espaço de culto
protestante. E, por um breve período de vinte e dois meses, também os pés deste
escrevedor se encaminharam até lá.
Era janeiro de 1980,
uma noite de domingo quando lá chegou. Conhecia alguns que lá cultuavam, por
isso não tendo dificuldades de ambientação; fora conduzido à “União de
treinamento”, onde esteve até o momento em que todos foram dirigidos ao “santuário”
para participar do serviço religioso. Sentado no último banco, visto não se
sentir à vontade para ficar entre aqueles que já eram frequentes assistentes
daqueles cultos, teve a agradabilíssima surpresa de ser cumprimentado pelo
pastor da Igreja. Tal gesto do Reverendo Jessé da Silva, era-lhe habitual; mas
aquele visitante se surpreendera, por acreditar que o iminente líder daquele
lugar de culto, apenas cumprimentaria os seus já conhecidos, ainda que não já
convertidos.
Convidado que fora para
voltar ali na semana seguinte, ocasião em que se realizaria uma série de
conferências “inspirativas” – expressão desconhecida pelo visitante -, alusivas
ao aniversário de fundação daquela Igreja na cidade, que se dera em 1919, ali permanecera
desde então, até 29 de novembro do ano seguinte.
Crê-se que aqui caberia
a seguinte passagem extraída da já mencionada obra de Maurice Halbwachs, que
diz “[...].A sucessão de lembranças,
mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em
nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em
definitivo, pelas transformações desses
ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACH, 2006: P.
69).
Este escrevedor tem na
sua memória o “cultuar” Batista, apreendido e vivido naquele ambiente onde aprendera
e convivera, ainda que por um “tempo breve”. Ele tem no seu rememorar,
igualmente claro, os elementos constitutivos do “ser” e do “crer” Batista, na
medida em que as experiências por ele vividas posteriormente ao seu
desligamento daquela convivência, ajudaram na cristalização daqueles elementos,
visto que tais experiências apontavam à modos de “ser” e de “crer” diferentes e,
até mesmo antagônico àqueles preconizados no modo de “ser” e de “crer” Batista.
E, certamente, isto se deve ao conjunto formado pelos membros da então “Primeira
Igreja Batista de Alagoinhas”, que, ao interagir com este escrevedor e com ele
trocar as experiências coletivas inerentes àquele processo de sociabilidade
cúltica. Tal compreensão é reforçada por mais uma passagem encontrada na
clássica “A Memória Coletiva”, de Maurice Halbwachs:
“É muito comum
atribuirmos a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias,
reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspiradas pelo nosso grupo.
Estamos em tal harmonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já
não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos
outros. Quantas vezes expressamos, com uma convicção que parece muito pessoal,
reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou de uma conversa! Elas
correspondem tão bem à nossa maneira de ver, que nos surpreenderíamos ao
descobrir quem é seu autor e constatar que não são nossas.” Já havíamos pensado
nisso” — não percebemos que somos apenas um eco. [...] (HALBWACHS, 2006, p. 63
Mas, passado já um bom
punhado de tempo, aquele prédio não é mais “igreja”; não abriga mais homens e
mulheres que se ajuntaram durante longo tempo para “invocar” o nome do Senhor e
a Ele prestar culto. Já está em outro lugar; no preciso momento em que estas
linhas são escritas, já não é mais Batista, ao menos, no modo de cultuar, de “ser”
e de “crer”.
Professor Jorge
Damasceno
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