domingo, 16 de agosto de 2020

QUANDO A FEIRA ERA DO PAU E A PRIMEIRA IGREJA ERA BATISTA

 

Quando a feira era do “pau” e a Primeira Igreja era Batista – 1980-1981 – Memória e memorialística: algumas reflexões

 

Já se disse em escritos anteriores, que a “feira do pau” era um espaço marcado pela presença de algumas edificações que acabavam por destoar das representações que ela despertava no imaginário coletivo, sobretudo, aquelas relacionadas com a miséria – física e “moral” – que marcava aquele espaço de convivência plural. o simples uso da expressão “feira do pau”, produzia naquele que a ouvia ou lia, um “quê” de repulsa moralizante ou, em outros casos, uma espécie de “compaixão” intelectual – ambas quase sempre estéreis -, ensejando as mais diversas reações, em consonância  com o “impulso” despertado diante da leitura ou da audição da expressão.

Uma vez mais, precisa-se evocar Pierre Nora, com a sua noção de “lugares de memória”, pois aquele espaço da parte central de Alagoinhas, frequentado pelos seus já cerca de 90 mil habitantes e, que foi “lugar” de vivências e convivências diárias até o início da década de 1990, é um “lugar de memória” por excelência, uma vez que persiste nos rememorares de tantos quantos por lá passaram ou lá viveram. Diz o historiador francês, dedicado estudioso de fenômenos ligados à memória:

 

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. [...]” (Nora, 1993, P. 13).

 

É assim a “Feira do Pau”, conforme as premissas contidas no trecho acima transcrito: gerações de feirantes e fregueses viveram e conviveram naquele espaço de venda/compra de aves, roupas, calçados, móveis de fabricação artesanal e produtos de toucador; produção/consumo de alimentos; de ações e interações entre pessoas, vidas e mortes, ao longo de mais de uma centena de anos. Ali, lado a lado com as precárias barracas de madeira, muitas vezes feitas com as sobras reaproveitadas dos caixotes em que eram acondicionados alguns tipos de mercadorias comercializadas, também erguiam-se casas comerciais de pequeno, médio e grande porte, que orgulhosamente se elevavam em troça desdenhosa contra as frágeis e rudes “lojas” de madeira reciclada.

Assim, estavam instaladas naquele mesmo espaço pleno de rusticidades, padarias, armazéns de “sêcos e molhados”, farmácias, açougues, empórios, casas de produtos agrícolas e de jardinagem; também ali se podia encontrar casas de ervas e demais produtos relacionados com o sincretismo religioso e aos cultos de “matriz africana” e, devidamente abrasileirados. Outrossim, era naquele mesmo espaço de circulação popular, que se erigia o prédio onde fora a sede do “Alagoinhas Jornal.

Fora também ali que se fizera funcionar as escolas  “Betel” – que por um tempo esteve inserida no espaço da igreja, para depois ser edificada Na Aristóteles de Souza Dantas, Mangalô, com o nome de escola Manoel Góes –, bem como o “Brasilino Viegas” – que até os dias de hoje, ali está situado.

Ainda na “feira do pau”, se encontrava na esquina que leva ao Teresópolis, o prédio do “mercado da Farinha”, local de grande fluência das gentes e convivência social, onde se podia conversar, rir e chorar, comer e beber fartamente – feijoadas, fatadas, peixes fritos, mingaus, dentre outras iguarias da culinária popular.

Talvez, um pouco mais abaixo do mercado da farinha, já descendo na direção da “linha do Timbó” - ou aos fundos do prédio escolar Brasilino Viegas, não está claro para este escrevedor, pois, lá nunca fora -, podia ser encontrado o “posto de saúde”. Muitos outros edifícios estavam fincados naquele espaço onde a “feira” se realizou por mais de cem anos. Porém, a tentativa de os alistar de modo exaustivo, poderia se fazer enfadonho e dispersar os leitores, no que tange ao objetivo deste garatujar.

Será preciso recorrer uma vez mais ao historiador francês Pierre Nora, para aclarar um pouco mais a noção de “Lugares de Memória”.

“[...]. Diferentemente de todos os objetos da história, os lugares de memória não têm referentes na realidade. Ou melhor, eles são, eles mesmos, seu próprio referente, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro. Não que não tenham conteúdo, presença física ou história; ao contrário. Mas o que os faz lugares de memória é aquilo pelo que, exatamente, eles escapam da história. Templum: recorte no indeterminado do profano - espaço ou tempo, espaço e tempo - de um círculo no interior do qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa. Nesse sentido, o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade; e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações” (Nora, 1993: P. 27). 

 

 

 

Já o sociólogo Maurice Halbwach (1877-1945), também francês, é trazido aqui para destacar algumas observações acerca da “Memória Coletiva”. Em uma obra póstuma com o este título, Halbwach assevera que:

 

“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. [...], cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social”. (HALBWACH, 2003, p. 69). 

 

Sendo assim, se “[...], são os indivíduos que se lembram [...], este escrevedor tem muito nítido no seu rememorar o espaço – tanto físico quanto social -, as sensações olfativas e auditivas que conformam a “feira do Pau”. Estes e outros materiais – sem perder de vista os elementos “imateriais” – formam o todo por meio do que se constrói a “memória coletiva” daquele que é um “lugar de memória” indelevelmente inserido naqueles que já tenham passado dos cinquenta anos de idade.

Entre os elementos conformadores do espaço da Feira do Pau, aqui se quer evocar um edifício específico, que acabou por se tornar um “lugar de memória” deste garatujador. Ele se localiza na esquina da rua Alcindo de Camargo com a Marechal Bitencourt, a direita, no sentido de quem caminha do então terminal de coletivos, na rua Castro Leal, em direção à “feira do pau”. Naquele prédio se reunira por vários anos, a Primeira Igreja Batista de Alagoinhas. Durante muito tempo, muitos foram os pés que aos domingos pela manhã e à noite e nas quartas feiras, igualmente à noite, palmilharam as cinco calçadas que terminariam naquele espaço de culto protestante. E, por um breve período de vinte e dois meses, também os pés deste escrevedor se encaminharam até lá.

Era janeiro de 1980, uma noite de domingo quando lá chegou. Conhecia alguns que lá cultuavam, por isso não tendo dificuldades de ambientação; fora conduzido à “União de treinamento”, onde esteve até o momento em que todos foram dirigidos ao “santuário” para participar do serviço religioso. Sentado no último banco, visto não se sentir à vontade para ficar entre aqueles que já eram frequentes assistentes daqueles cultos, teve a agradabilíssima surpresa de ser cumprimentado pelo pastor da Igreja. Tal gesto do Reverendo Jessé da Silva, era-lhe habitual; mas aquele visitante se surpreendera, por acreditar que o iminente líder daquele lugar de culto, apenas cumprimentaria os seus já conhecidos, ainda que não já convertidos.

Convidado que fora para voltar ali na semana seguinte, ocasião em que se realizaria uma série de conferências “inspirativas” – expressão desconhecida pelo visitante -, alusivas ao aniversário de fundação daquela Igreja na cidade, que se dera em 1919, ali permanecera desde então, até 29 de novembro do ano seguinte.

Crê-se que aqui caberia a seguinte passagem extraída da já mencionada obra de Maurice Halbwachs, que diz  “[...].A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo,  pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACH, 2006: P. 69).

Este escrevedor tem na sua memória o “cultuar” Batista, apreendido e vivido naquele ambiente onde aprendera e convivera, ainda que por um “tempo breve”. Ele tem no seu rememorar, igualmente claro, os elementos constitutivos do “ser” e do “crer” Batista, na medida em que as experiências por ele vividas posteriormente ao seu desligamento daquela convivência, ajudaram na cristalização daqueles elementos, visto que tais experiências apontavam à modos de “ser” e de “crer” diferentes e, até mesmo antagônico àqueles preconizados no modo de “ser” e de “crer” Batista. E, certamente, isto se deve ao conjunto formado pelos membros da então “Primeira Igreja Batista de Alagoinhas”, que, ao interagir com este escrevedor e com ele trocar as experiências coletivas inerentes àquele processo de sociabilidade cúltica. Tal compreensão é reforçada por mais uma passagem encontrada na clássica “A Memória Coletiva”, de Maurice Halbwachs:

 

“É muito comum atribuirmos a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias, reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspiradas pelo nosso grupo. Estamos em tal harmonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos outros. Quantas vezes expressamos, com uma convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou de uma conversa! Elas correspondem tão bem à nossa maneira de ver, que nos surpreenderíamos ao descobrir quem é seu autor e constatar que não são nossas.” Já havíamos pensado nisso” — não percebemos que somos apenas um eco. [...] (HALBWACHS, 2006, p. 63

Mas, passado já um bom punhado de tempo, aquele prédio não é mais “igreja”; não abriga mais homens e mulheres que se ajuntaram durante longo tempo para “invocar” o nome do Senhor e a Ele prestar culto. Já está em outro lugar; no preciso momento em que estas linhas são escritas, já não é mais Batista, ao menos, no modo de cultuar, de “ser” e de “crer”.

 

Professor Jorge Damasceno

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