sexta-feira, 16 de junho de 2023

História e Música - I

História e Música Parte I - A Guerrilheira

 

Há um tempo que se apresenta difícil de precisar com exatidão, pouco a pouco a densa floresta do isolamento a que as pessoas cegas estavam imersas, começava a ser bafejada pelos raios primaveris produzidos por alguns desenvolvimentos tecnológicos iniciados com os primeiros esforços que resultaram na criação de um conjunto de programas que permitiriam acesso aos computadores, mediante a utilização de vozes sintetizadas. O primeiro dos movimentos exitosos naquela direção foi o “Sistema Dosvox”, que se apresentava à pessoa cega, que, quase deslumbrada diante de um equipamento pensado e desenvolvido para aqueles que vêm, esperando que respondesse:

- ”[...], o que você deseja”?

 

Previamente instruído a respeito do modo como responder ao sistema que passava a permitir a sua interação com os computadores pessoais, a pergunta era respondida e a pessoa cega começava a perceber as clareiras que se faziam abrir, a cada operação que conseguia executar com independência, indo de árvore em árvore, de bosque em bosque, até se embrenharem em grutas, cavernas e rios caudalosos, largos e fundos, que, por sua complexidade e abrangência, se convencionou chamar, acertadamente , “revolução tecnológica, dali em diante, acessível às pessoas cegas.

Assim, a espessa floresta onde errava grande parte das pessoas cegas, passa a contar com caminhos e estradas bem arquitetadas em um “sistema operacional” frágil nos primeiros anos e que foram robustecidos algum tempo depois, fazendo possível trafegar com segurança e, permitindo até mesmo o desenvolvimento de atalhos e desvios mais arriscados.

É assim que se constrói um programa que passaria a estabelecer contatos entre aquelas pessoas que antes, se se conhecessem, só se falariam pessoalmente, por telefone – quem o tivesse – ou pelos Correios em suas longas jornadas de saídas e chegadas de cartas – em braile; mas também, escritas à máquina: chegara o “Papovox”.

Com um número de usuários razoável e com uma diversidade – no início pequena – de possibilidades, aquele programa se firmou como um meio seguro e de comunicação virtual, cheio de surpresas. Ali, vários de seus usuários se tornaram “amigos”, ainda que nunca houvessem se encontrado no mundo real, em algum lugar real. Muitas foram as noites viradas por este escrevedor, em salas públicas ou privadas; muitas foram as confabulações que varavam a madrugada, sem que os seus protagonistas se dessem conta do passar do tempo.

Pois bem: foi neste ambiente de muitas permutas, que surgiram projetos de pesquisas, namoros virtuais; enlaces e rompimentos; não faltando calorosos debates, altercações e reflexões; brigas, ciúmes que quase sempre resultavam em homéricas discussões que, por vezes, resvalaram na rispidez e grosseria generalizada entre os envolvidos.

Em uma daquelas madrugadas em que este escrevedor entrara para mais uma jornada de confabulações e trocas de amenidades, surge uma “guerrilheira”, como um raio avassalador, trovejando com a sua metralhadora bafejando inteligência aos borbotões. Talvez contasse dezesseis ou dezoito anos e, já esbanjava segurança, força de caráter e firmeza de palavras e atitudes. Tão veloz entrara e atirara algumas palavras pouco compreendidas por grande parte dos circunstantes, quanto ainda mais veloz saíra, quase sem deixar vestígios, como deve ser, em sua ação de guerrilhar, esboroando as defesas mais robustas.

Aquela Guerrilheira, em princípio inofensiva e frágil, avançou firme e resoluta no seu afã de revolucionar, deixando para trás de si, um velho soldado ferido, indefeso e enfermo, necessitado do seu socorro médico e, sobretudo, do seu cuidado. Qual! Ela o deixaria desfalecer; outros soldados, igualmente feridos pela fúria do seu metralhar, certamente, teria melhor sorte do que aquele que, apenas passava pelo local, como um caminhante distraído, desacreditando haver naquela guerrilheira, alguma intenção de o ferir. Para que? Sequer valeria a pena gastar a sua munição com aquele soldado andarilho, que nem parecia que estivesse em condições de lutar.

Aquela Guerrilheira deixou marcas indeléveis no espírito daquele soldado, que, por já haver vivido o dobro de sua vida e, por se acreditar experiente o suficiente para não se deixar atingir pelas suas balas de raríssima inteligência, sucumbira ao seu jeito  tão eficaz de manusear a palavra como arma de encantamento; pelo seu ágil modo de guerrilhar e de escapar aos revides da defesa; antes mesmo que fosse possível esboçar-se qualquer movimento no sentido de ser alvejada, a sua capacidade de fuga e de alto-proteção já se fazia sentir e, ela escapava e se protegia.

Crê-se que uma ilustração perfeita da Guerrilheira e o seu guerrilhar com o cérebro e a palavra que facilmente brotava dos seus dedos ágeis, velozes e irrequietos, seja a canção que tão bem representa este tipo de guerrilhar: “Canción para Mi América”, magnificamente interpretado por Mercedes Sosa.

 

https://youtu.be/o5Uuh6k7mJI

 

José Jorge Andrade Damasceno -17 de junho de 2023.