História e Música Parte I - A Guerrilheira
Há um tempo que se apresenta difícil de precisar com exatidão,
pouco a pouco a densa floresta do isolamento a que as pessoas cegas estavam imersas,
começava a ser bafejada pelos raios primaveris produzidos por alguns desenvolvimentos
tecnológicos iniciados com os primeiros esforços que resultaram na criação de
um conjunto de programas que permitiriam acesso aos computadores, mediante a utilização
de vozes sintetizadas. O primeiro dos movimentos exitosos naquela direção foi o “Sistema
Dosvox”, que se apresentava à pessoa cega, que, quase deslumbrada diante de um
equipamento pensado e desenvolvido para aqueles que vêm, esperando que
respondesse:
- ”[...], o que você deseja”?
Previamente instruído a respeito do modo como responder ao
sistema que passava a permitir a sua interação com os computadores pessoais, a
pergunta era respondida e a pessoa cega começava a perceber as clareiras que se
faziam abrir, a cada operação que conseguia executar com independência, indo de
árvore em árvore, de bosque em bosque, até se embrenharem em grutas, cavernas e
rios caudalosos, largos e fundos, que, por sua complexidade e abrangência, se
convencionou chamar, acertadamente , “revolução tecnológica, dali em diante,
acessível às pessoas cegas.
Assim, a espessa floresta onde errava grande parte das
pessoas cegas, passa a contar com caminhos e estradas bem arquitetadas em um “sistema
operacional” frágil nos primeiros anos e que foram robustecidos algum tempo
depois, fazendo possível trafegar com segurança e, permitindo até mesmo o
desenvolvimento de atalhos e desvios mais arriscados.
É assim que se constrói um programa que passaria a
estabelecer contatos entre aquelas pessoas que antes, se se conhecessem, só se
falariam pessoalmente, por telefone – quem o tivesse – ou pelos Correios em
suas longas jornadas de saídas e chegadas de cartas – em braile; mas também,
escritas à máquina: chegara o “Papovox”.
Com um número de usuários razoável e com uma diversidade –
no início pequena – de possibilidades, aquele programa se firmou como um meio
seguro e de comunicação virtual, cheio de surpresas. Ali, vários de seus
usuários se tornaram “amigos”, ainda que nunca houvessem se encontrado no mundo
real, em algum lugar real. Muitas foram as noites viradas por este escrevedor,
em salas públicas ou privadas; muitas foram as confabulações que varavam a
madrugada, sem que os seus protagonistas se dessem conta do passar do tempo.
Pois bem: foi neste ambiente de muitas permutas, que
surgiram projetos de pesquisas, namoros virtuais; enlaces e rompimentos; não
faltando calorosos debates, altercações e reflexões; brigas, ciúmes que quase
sempre resultavam em homéricas discussões que, por vezes, resvalaram na
rispidez e grosseria generalizada entre os envolvidos.
Em uma daquelas madrugadas em que este escrevedor entrara
para mais uma jornada de confabulações e trocas de amenidades, surge uma “guerrilheira”,
como um raio avassalador, trovejando com a sua metralhadora bafejando
inteligência aos borbotões. Talvez contasse dezesseis ou dezoito anos e, já
esbanjava segurança, força de caráter e firmeza de palavras e atitudes. Tão
veloz entrara e atirara algumas palavras pouco compreendidas por grande parte
dos circunstantes, quanto ainda mais veloz saíra, quase sem deixar vestígios,
como deve ser, em sua ação de guerrilhar, esboroando as defesas mais robustas.
Aquela Guerrilheira, em princípio inofensiva e frágil,
avançou firme e resoluta no seu afã de revolucionar, deixando para trás de si,
um velho soldado ferido, indefeso e enfermo, necessitado do seu socorro médico
e, sobretudo, do seu cuidado. Qual! Ela o deixaria desfalecer; outros soldados,
igualmente feridos pela fúria do seu metralhar, certamente, teria melhor sorte
do que aquele que, apenas passava pelo local, como um caminhante distraído,
desacreditando haver naquela guerrilheira, alguma intenção de o ferir. Para
que? Sequer valeria a pena gastar a sua munição com aquele soldado andarilho,
que nem parecia que estivesse em condições de lutar.
Aquela Guerrilheira deixou marcas indeléveis no espírito
daquele soldado, que, por já haver vivido o dobro de sua vida e, por se
acreditar experiente o suficiente para não se deixar atingir pelas suas balas
de raríssima inteligência, sucumbira ao seu jeito tão eficaz de manusear a palavra como arma de
encantamento; pelo seu ágil modo de guerrilhar e de escapar aos revides da
defesa; antes mesmo que fosse possível esboçar-se qualquer movimento no sentido
de ser alvejada, a sua capacidade de fuga e de alto-proteção já se fazia sentir
e, ela escapava e se protegia.
Crê-se que uma ilustração perfeita da Guerrilheira e o seu
guerrilhar com o cérebro e a palavra que facilmente brotava dos seus dedos ágeis,
velozes e irrequietos, seja a canção que tão bem representa este tipo de guerrilhar:
“Canción para Mi América”, magnificamente interpretado por Mercedes Sosa.
José Jorge Andrade Damasceno -17 de junho de 2023.