Histórias e memórias de uma tarde de domingo
Os anos sessenta e setenta, foram marcados por grandes
movimentos sociais e culturais, envolvendo várias gerações de jovens, de ambos
os sexos, que desejavam “revolucionar” os costumes e rasgar toda e qualquer
tentativa de regramento de seus impulsos e/desejos e, sacudir para longe de si,
todo corolário de construções normativas, que até os meados dos anos 50, trazia
os “novos rebeldes”, ou, como foram denominados os “rebeldes sem causa”, como
que “represados” no que respeita ao comportamento sexual, às expressões
culturais e às manifestações artísticas.
No campo da expressão
musical, o “Rock and roll”, personificado nos “quatro rapazes de Liverpool”,
que deram ao mundo o estrondoso sucesso aos Beatles e no cantor norte-americano
Elvis Presley – para citar apenas estes -, encontra campo amplo e terreno
fértil para sua difusão, trazendo consigo a implosão de grande parte dos arcabouços
que forjaram um “modus vivendi”,, construído e apreendido, por longos séculos de
dominação de uma cultura burguesa conservadora.
Portanto, o “rock and roll”, a ousadia, a intrepidez e o
destemor do novo, foram as marcas daquela geração que, enfim, segundo suas
premissas, reconfiguraria a sociedade ocidental, no sentido de demonstrar suas
propostas de novas formas de convivência social, não mais sobre estruturas sólidas
e “petrificadas”, exigindo uma flexibilidade que permitisse a coexistência de
uma ampla gama de “micro-sociedades”, o
que promoveria, forçosamente, maior empenho coletivo, no intuito de obter cada
vez maiores espaços de liberdade social e participação política.
No Brasil, o movimento tem suas especificidades, que não cabe discutir neste espaço. Mas a
“jóvem Guarda”, com sua música sob a forte influência dos Beatles, Rolling Stones
e seus similares, provoca uma
“revolução” em alguns setores da juventude brasileira, fazendo explodir pelo
país, para além do eixo Rio-São Paulo, os conjuntos musicais, com o
instrumental elétrico.
Sob a inspiração dos
conjuntos nacionais de grande sucesso entre os jovens dos “anos dourados”, como
os de Renato e seus Blue Kaps, The Fevers, entre outros, muitas cidades do
interior e/ou capitais de menor porte, viram nascer e sobreviver por alguns
anos, os conjuntos Formados basicamente por órgão, guitarra, contrabaixo e
bateria, estribados em uma aparelhagem possante, que fazia a alegria das festas
juvenis. Alagoinhas teve alguns conjuntos com estas características, sendo os
Milionários, os Caciques e o grupo Manifesto, os mais lembrados dentre eles.
Tais conjuntos se apresentavam com excelentes cantores,
também denominados de “crooners”, como Enéias Santana, cuja lembrança daqueles
que o ouviram, sempre se apresenta nítida, ao recordar o grande momento vivido
pelos Caciques, conjunto que levou sempre a sua marca, até sair para criar e
dirigir o conjunto “os Magníficos”, segunda geração daquele tipo de grupo
musical, pouco a pouco reorientado, até se tornar “Banda”, modo como passou a
ser denominado a partir dos meados dos anos 1980.
Nas décadas em que a jovem guarda e a “dence music”
assumiram lugar de proa no gosto musical da juventude brasileira em geral e
baiana em particular, pelo menos quatro grandes
clubes de Alagoinhas, se constituíam em lugares de encontro, lazer e
entretenimento, onde algumas gerações alagoinhenses viveram grandes momentos,
com festas arrojadas, muitas vezes trazendo conjuntos de outras cidades, que
rivalizavam com os locais, sendo o mais memorável deles, o conjunto “Los
Guaranis”, ainda hoje em atividade, no vizinho estado de Sergipe.
O Alagoinhas Tênis
Clube, a Associação Atlética Banco do Brasil, a Associação Cultural e
Recreativa de Alagoinhas ou (clube Acra), como todos o conheciam e a Associação
Cultural Vencedor (na praça Maestro Santa Isabel), marcaram as noites dos
sábados e as tardes-noites dos domingos, promovendo concorridos e animados
bailes, apesar dos limites de seus espaços físicos e, evidentemente, o custo
dos ingressos, que, para grande parte da população era um fator inibidor do
desejo de participar ativamente das festas promovidas por aquelas agremiações.
Durante os primeiros anos de existência e funcionamento, os
clubes se constituíam em espaços privilegiados dos sócios e familiares, onde
eram promovidos os encontros sociais, aniversários, recepções e outros tipos de
eventos reservados ,dispondo de espaços de convivência, como bar, restaurante e
piscina, cujo acesso era restrito aos sócios em dia com suas obrigações
financeiras.
Em alguma longínqua tarde de domingo, em algum mês de 1978
ou 1979, tocavam os Caciques, ou eram os Milionários... Certo mesmo é que o
Tênis promovia uma animada festa, talvez exclusiva para os seus sócios...
Lá estava um sujeito, que não era sócio, não tinha dinheiro
para o ingresso, nem mesmo para a bebida, ainda que não alcoólica: estava ali,
como se dizia, um “penetra”. Ele importunava as damas, procurava convencer a
alguma dentre elas a dançar consigo, mediante abordagens desajeitadas,
inoportunas, deselegantes mesmo, ao ponto de se sentir acuado, diante da ameaça
de alguma delas pedir a intervenção do namorado ou, quiçá, do marido, afim de
interromper aquele abuso!
Constrangido, humilhado e, porque não dizer, amedrontado, o
penetra procurou um lugar onde se refugiar, contentando-se em ouvir as músicas
que o conjunto executava, com a qualidade que era a marca daqueles grupos.
Em dias como aqueles, a ainda pacata Alagoinhas, via surgir
as gentes, chegando das ruas no entorno do Tênis, cuja frente era voltada para
o largo do estádio Carneirão, de onde se via o Ginásio Alagoinhas e o “Estadual”;
a lateral esquerda dava para os fundos do Hospital Dantas Bião.
Embora fossem poucas e dispersas as residências que
circundavam aquele clube social, que não distava muito do seu oponente, o ACRA,
ele era freqüentado pela fina flor da elite alagoinhense. A rua Elvira Dórea,
tinha seu início na esquina da rua Marechal Deodoro e se estendia até a esquina
do Dantas Bião. Nela se localizava a clínica
Cetro (clínica de traumatologia), a Santa casa de Misericórdia, a maternidade,
o Instituto Mauá e, era habitada por gente como o então prefeito Miguel Fontes,
o dentista paulista doutor Faria, entre outras famílias de algum prestígio na
cidade.
Havia algumas poucas ruas transversais a Elvira Dórea, sem
calçamento e, ainda menos habitadas. Pois foi da casa de uma delas, que Maria
Isabel se arrumou e saiu, para também ir abrilhantar aquela tarde de festa.
Aquela jóvem esbelta, de estatura mediana, senhorita envolta
em agradável perfume, de trato amável, de palavras doces e gestos gentis, se dispusera a tirar aquele
anônimo da suprema humilhação de quedar-se só,como se fora ela, uma princesa
que, vinda de límpida fonte, resolvera dar um pouco de água fresca, àquele
plebeu sedento.
Sem tomar conhecimento do desalinho do cavalheiro, sem censurar
visível descompasso dos passos de quem escolhera para par na dança, aquela moça
deu ao rapaz solitário e escanteado, o prazer de bailar consigo, várias
daquelas excelentes melodias tocadas pelos exímios músicos que animavam o
lugar.
De estilo todo próprio, aqueles conjuntos apresentavam o que
havia de mais moderno em aparelhagem, acessórios e instrumental, o que
impulsionava seus músicos a esmerar-se na execução das melodias do modo mais
aproximado que pudessem, de suas gravações originais, sendo seus crooners, os
responsáveis por fazer o público viajar nas boas letras que se produziam na
ocasião, evidentemente, excetuando-se as músicas em inglês, cuja pronúncia
arranhada e forjada da língua de Shakespeare,seguramente, a violentava, palavra pós palavra!
Foram tornadas clássicas e de execução obrigatória, algumas composições
nacionais da jóvem guarda como Diana,versão
imortalizada por Carlos Gonzaga, Coração de Cristal, Coração de Papel, Avemaria no Morro, versão
de Eduardo Silva. No repertório também apareciam composições internacionais. Apesar
de alguns apreciarem muito a “chançon Française”, as músicas tocadas pelos
conjuntos eram quase sempre em inglês, tais como Marie Julie, Daniel, Happy Man, Tell me onbce again, felling’s, We Said
Goodbye.
Entretanto, o ponto mais alto da festa foi, o momento da magistral
Execução de uma das músicas de maior sucesso nos salões dos clubes, no repertório
dos conjuntos e perene lembrança na memória daquele dançarino descompassado: “do
you wanna dance”, que foi, precisamente, a música que lhe propiciou o
indescritível prazer de dançar com aquela gazela delicada, de quem nunca mais
esquecera e, poucas vezes encontrara, após aquela tão memorável e já longínqua
tarde