domingo, 20 de janeiro de 2013

"Um dia o trem atropelou um Jegue"


“Um dia, o trem atropelou um jegue”

Alagoinhas, é uma daquelas cidades baianas, que emergiu nos meados do século XIX, cuja a emancipação política, o desenvolvimento urbano, social e econômico está diretamente relacionado, com a vaga de construções de ferrovias, que abriram as vastas plagas do território da Província, ligando os seus diversos e distantes rincões, à Baía de Todos os Santos, onde se localizava sua capital.

Keite Lima, em sua dissertação, cujo excelente texto ainda está inédito, assegura que:

 

“Para os alagoinhenses, o trem, principal instrumento de circulação da Era mecânica simbolizava a iminência de um progresso que possibilitaria a expansão de negócios para os donos de engenhos, a circulação de mercadorias para os comerciantes e a possibilidade de a população em geral conhecer outras regiões, outras pessoas, já que viviam praticamente isoladas”.

 

Nesta Perspectiva, os primeiros cem anos de existência de Alagoinhas, enquanto Vila e cidade emancipada, correspondem ao predomínio do transporte ferroviário como forma de socialização, promoção de emprego e renda, além de meio de transmissão das idéias. Era no trem que se discutiam inumerável gama de temas; pelo trem viajava o Jornal; no trem circulava a moda, a novidade vinda da capital.

As notícias, boas ou ruins, primeiro chegavam pelo trem, sobretudo, até o advento do rádio, que só aparece na Bahia, nos meados da década de 1920, quando é inaugurada a rádio sociedade da Bahia, em Salvador. Em Alagoinhas, é preciso esperar os meados da década de 1950, para que se disponha de uma emissora de rádio local: a Rádio Emissora de Alagoinhas, inaugurada em 2 de julho de 1954. Ainda assim, para que a notícia do rádio chegasse até as pessoas, fazia-se necessário ter o aparelho que a pudesse captar, o que não era comum na cidade.

Conforme o que já se apontou neste mesmo espaço, o trem significou também, o aumento da velocidade dos deslocamentos, apresentando um crescimento constante, desde os primeiros implantados nos meados do século XIX, até o final da década de 50 do XX, quando entra em lenta decadência, para finalmente, ser superado pela versatilidade e ultrapassado em velocidade e importância, pelos veículos automotores.

É neste contexto, que acontece o aumento do número de atropelamentos de pessoas e animais, sobretudo dos jegues.

 Elementos constitutivos da paisagem econômica e social da pacata cidade de Alagoinhas, os asnos eram utilizados juntamente com os muares, como animais de montaria das pessoas.  Era, por assim dizer, o meio de transporte de quem os podia possuir, levando e trazendo seus proprietários para os diversos pontos, com os mais diversos objetivos: levar e/ou trazer mercadorias; tracionar as carroças; prover as residências abastadas do suprmimento de água para beber, para o asseio; levando lenha e carvão para preparo e cozimento de alimentos, além do querosene necessário para a iluminação.

Com tantas utilidades, o jumento acabava por ser, em muitos casos, meio de distribuição de bens e serviços, formas de obtenção dos meios de subsistência, a partir dos quais, várias famílias alcançavam o provimento de suas necessidades básicas. Muitos deles, no entanto, ficavam soltos, pastando quase sempre ao redor da estrada de ferro, aproveitando-se a grande quantidade do chamado  “capim de burro, que acabava por servir de complemento alimentar ao animal.

Outro fator de grande risco para os jegues era a falta de algum tipo de barreira que impedisse ou dificultasse o acesso ao leito ferroviário”, o que os deixava sujeitos aos perigos dos atropelamentos por trens e/ou locomotivas, o que acontecia com alguma freqüência, precisamente, pelo descompasso entre o passo lento do animal solitário e a marcha mais rápida do trem, associado á dificuldade de frenagem ou manobras de desvio, que aquele  equipamento ferroviário oferece ao seu  condutor.

Assim, estes dois elementos que, em grande medida, são os ingredientes responsáveis pela conformação imagética de Alagoinhas e pela construção do imaginário dos alagoinhenses,entram em choque, na medida em que suas marchas ssão inconciliáveis. Diante do desenvolvimento da cidade, do avanço populacional, cada vez chegando-se mais para perto da ferrovia, tornava-se constante o atropelamento dos jegues, se constituindo fato tão recorrente, que se insere como parte integrante  do cootidiano da cidade.

Como exemplo, umaprofessora, quase septuagenária, nascida e criada na Rua 2 de julho, local em que, já na década de 1950, ferrovia e residências já se faziam muito próximas, contou ao autor destas linhas, um episódio que lhe marcara a infância, ao se deparar com um, dentre muitos jegues atropelados por composições ferroviárias. Dê-se-lhe a palavra, para que possa narrar sua experiência.

- “Uma vez, o trem atropelou um jegue. ... O trem atropelou um jegue.. (...) isso era muito freqüente ali.. mas esse jegue, ele teve um problema na perna, não é.., ficou ... a perna ficou assim... em frangalho, assim, balançando..., o coitado não podia andar, mas tava ainda cheio de energia, não é?

- “Então, ele ficou na frente de lá de casa. E eu inventei que tinha que dar comida a este jegue, que eu não ia ver aquele jegue morrer ali, de fome e sede. Então eu ia e botava água, e botava milho...

 - “Aí, Zeca me chamou e disse: “olha, é perigoso, o animal não ta podendo se movimentar e, você vai... Então, deixe que eu faço isso”.

- “Aí, Zeca arranjou um... um cocho, daquele que prende... que amarra aqui...botava o milho pra ele poder comer ali e, água.

- “Aí, eu comecei a chorar, porque  ele ficava tomando sol o dia todo, o sol tava muito quente...

 - “Aí, Zeca fez uma cobertura de cabo de vassoura  com esteira, pra proteger este jegue;

- “e eu ia pra escola, quando voltava ... uma agonia com esse jegue... E ele já sabendo q                 ue  não tinha jeito que o animal não tinha como sobreviver...

- “Aí, um dia... acho que esse jegue ficou bem uns cinco dias ali... naquela agonia, eu botando aquela comiida... ele ia comigo, pra dar comida e a água... Aí, ele acertou lá com o pessoal pra me contar a história quando eu chegasse da escola.

- “Ele disse que os homens da prefeitura tinham ido buscar ... os homens da prefeitura tinham vindo buscar o animal  e... porque eles é quem podiam dar um tratamento... direito, e tal...

- “Aí, eu fiquei contente porque o jegue ia ser cuidado... mas, mentira. Tinham levado o animal pra... não tinha outro jeito, né?(...)”.

É necessário salientar, que episódios semelhantes ao narrado pela interlocutora, se repetiram por todo o tempo em que a ferrovia esteve em atividade na cidade, não se limitando ao atropelamento de jegues, que não foram poucos, tendo havido acidentes e incidentes marcantes na história recente deAlagoinhas, com mortes e mutilações de várias pessoas.

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