“Um dia, o trem atropelou um jegue”
Alagoinhas, é uma daquelas cidades baianas, que
emergiu nos meados do século XIX, cuja a emancipação política, o
desenvolvimento urbano, social e econômico está diretamente relacionado, com a
vaga de construções de ferrovias, que abriram as vastas plagas do território da
Província, ligando os seus diversos e distantes rincões, à Baía de Todos os
Santos, onde se localizava sua capital.
Keite Lima, em sua dissertação, cujo excelente texto
ainda está inédito, assegura que:
“Para os alagoinhenses, o trem, principal instrumento de circulação da
Era mecânica simbolizava a iminência de um progresso que possibilitaria a
expansão de negócios para os donos de engenhos, a circulação de mercadorias
para os comerciantes e a possibilidade de a população em geral conhecer outras
regiões, outras pessoas, já que viviam praticamente isoladas”.
Nesta Perspectiva, os primeiros cem anos de
existência de Alagoinhas, enquanto Vila e cidade emancipada, correspondem ao
predomínio do transporte ferroviário como forma de socialização, promoção de
emprego e renda, além de meio de transmissão das idéias. Era no trem que se
discutiam inumerável gama de temas; pelo trem viajava o Jornal; no trem
circulava a moda, a novidade vinda da capital.
As notícias, boas ou ruins, primeiro chegavam pelo
trem, sobretudo, até o advento do rádio, que só aparece na Bahia, nos meados da
década de 1920, quando é inaugurada a rádio sociedade da Bahia, em Salvador. Em
Alagoinhas, é preciso esperar os meados da década de 1950, para que se disponha
de uma emissora de rádio local: a Rádio Emissora de Alagoinhas, inaugurada em 2
de julho de 1954. Ainda assim, para que a notícia do rádio chegasse até as
pessoas, fazia-se necessário ter o aparelho que a pudesse captar, o que não era
comum na cidade.
Conforme o que já se apontou neste mesmo espaço, o
trem significou também, o aumento da velocidade dos deslocamentos, apresentando
um crescimento constante, desde os primeiros implantados nos meados do século
XIX, até o final da década de 50 do XX, quando entra em lenta decadência, para
finalmente, ser superado pela versatilidade e ultrapassado em velocidade e
importância, pelos veículos automotores.
É neste contexto, que acontece o aumento do número de
atropelamentos de pessoas e animais, sobretudo dos jegues.
Elementos
constitutivos da paisagem econômica e social da pacata cidade de Alagoinhas, os
asnos eram utilizados juntamente com os muares, como animais de montaria das
pessoas. Era, por assim dizer, o meio de
transporte de quem os podia possuir, levando e trazendo seus proprietários para
os diversos pontos, com os mais diversos objetivos: levar e/ou trazer
mercadorias; tracionar as carroças; prover as residências abastadas do suprmimento
de água para beber, para o asseio; levando lenha e carvão para preparo e
cozimento de alimentos, além do querosene necessário para a iluminação.
Com tantas utilidades, o jumento acabava por ser, em
muitos casos, meio de distribuição de bens e serviços, formas de obtenção dos
meios de subsistência, a partir dos quais, várias famílias alcançavam o
provimento de suas necessidades básicas. Muitos deles, no entanto, ficavam
soltos, pastando quase sempre ao redor da estrada de ferro, aproveitando-se a
grande quantidade do chamado “capim de
burro, que acabava por servir de complemento alimentar ao animal.
Outro fator de grande risco para os jegues era a
falta de algum tipo de barreira que impedisse ou dificultasse o acesso ao leito
ferroviário”, o que os deixava sujeitos aos perigos dos atropelamentos por
trens e/ou locomotivas, o que acontecia com alguma freqüência, precisamente,
pelo descompasso entre o passo lento do animal solitário e a marcha mais rápida
do trem, associado á dificuldade de frenagem ou manobras de desvio, que
aquele equipamento ferroviário oferece
ao seu condutor.
Assim, estes dois elementos que, em grande medida, são os ingredientes
responsáveis pela conformação imagética de Alagoinhas e pela construção do
imaginário dos alagoinhenses,entram em choque, na medida em que suas marchas
ssão inconciliáveis. Diante do desenvolvimento da cidade, do avanço
populacional, cada vez chegando-se mais para perto da ferrovia, tornava-se
constante o atropelamento dos jegues, se constituindo fato tão recorrente, que
se insere como parte integrante do
cootidiano da cidade.
Como exemplo, umaprofessora, quase septuagenária, nascida e criada na Rua
2 de julho, local em que, já na década de 1950, ferrovia e residências já se
faziam muito próximas, contou ao autor destas linhas, um episódio que lhe marcara
a infância, ao se deparar com um, dentre muitos jegues atropelados por
composições ferroviárias. Dê-se-lhe a palavra, para que possa narrar sua
experiência.
- “Uma vez, o trem atropelou um jegue. ... O trem atropelou um jegue.. (...)
isso era muito freqüente ali.. mas esse jegue, ele teve um problema na perna,
não é.., ficou ... a perna ficou assim... em frangalho, assim, balançando..., o
coitado não podia andar, mas tava ainda cheio de energia, não é?
- “Então, ele ficou na frente de lá de casa. E eu inventei que tinha que
dar comida a este jegue, que eu não ia ver aquele jegue morrer ali, de fome e
sede. Então eu ia e botava água, e botava milho...
- “Aí, Zeca me chamou e disse:
“olha, é perigoso, o animal não ta podendo se movimentar e, você vai... Então,
deixe que eu faço isso”.
- “Aí, Zeca arranjou um... um cocho, daquele que prende... que amarra
aqui...botava o milho pra ele poder comer ali e, água.
- “Aí, eu comecei a chorar, porque
ele ficava tomando sol o dia todo, o sol tava muito quente...
- “Aí, Zeca fez uma cobertura de
cabo de vassoura com esteira, pra
proteger este jegue;
- “e eu ia pra escola, quando voltava ... uma agonia com esse jegue... E
ele já sabendo q ue não tinha jeito que o animal não tinha como
sobreviver...
- “Aí, um dia... acho que esse jegue ficou bem uns cinco dias ali...
naquela agonia, eu botando aquela comiida... ele ia comigo, pra dar comida e a
água... Aí, ele acertou lá com o pessoal pra me contar a história quando eu
chegasse da escola.
- “Ele disse que os homens da prefeitura tinham ido buscar ... os homens
da prefeitura tinham vindo buscar o animal
e... porque eles é quem podiam dar um tratamento... direito, e tal...
- “Aí, eu fiquei contente porque o jegue ia ser cuidado... mas, mentira.
Tinham levado o animal pra... não tinha outro jeito, né?(...)”.
É necessário salientar, que episódios semelhantes ao narrado pela
interlocutora, se repetiram por todo o tempo em que a ferrovia esteve em
atividade na cidade, não se limitando ao atropelamento de jegues, que não foram
poucos, tendo havido acidentes e incidentes marcantes na história recente deAlagoinhas,
com mortes e mutilações de várias pessoas.
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