terça-feira, 26 de junho de 2012

O AGUADEIRO, O JEGUE E O LAPO DE RELHO

O AGUADEIRO, O JEGUE E O LAPO DE RELHO.

JORGE DAMASCENO

Alagoinhas, naqueles idos e já bem distantes anos, era um aprazível lugar do interior, com grande diversidade de vegetação nativa, que servia a população de um modo geral e aquela parcela mais pobre em particular, fornecendo madeira dos mais variados tipos, para todos os fins: carvoaria, lenha para a preparação de alimentos; construção de casas e mobiliários; aquecimento e construção de cercas, fabricação de gaiolas e caixotes para os mais diversos usos.
Era também dona de um agradável desfilar de ervas e plantas, frutos dos mais variados matizes, que aguçavam o olfato e instigavam o paladar de todos quantos os pudessem saborear, em seu tempo, em sua estação. Laranjas, mangas, jacas, cajus, araçás, goiabas, abacates, cajás, cajaranas, tamarindos, graviolas (jaca de pobre), jambos e suculentas mangabas, são apenas alguns que ocorrem lembrar. Faziam parte inseparável do dia a dia das pessoas, sendo consumidos in natura ou, sob várias outras formas, como doces, sorvetes, picolés, abafabancas, geléias e, tantas quantas a imaginação culinária permitisse.
Neste desfilar fértil de cores, cheiros, sabores e ruídos, se levanta e se deita a cidade, ao som do “Pirulito”, permeado pelo mugir das vacas leiteiras, do cacarejar das galinhas nos muitos quintais, do burburinho dos rios e riachos que cortam a terra plena de ingazeiras, então abundantes naquela paisagem; pelo ruído monótono das casas de farinha e, aqui e ali, o miar de gatos e o uivar de cachorros, completam o caldal de sons que marcavam aqueles tempos em que, os sinos das igrejas e o apito da oficina ferroviária, que podia ser ouvido em toda a cidade, marcavam o amanhecer e anoitecer do viver do lugar.
Aquela em especial, era uma madrugada fria de agosto; estava ainda escuro, só a lua e algumas poucas estrelas, davam alguma luz; o vento de inverno soprava livre e gelado, naqueles já distantes anos 50 do século XX.
Três e meia ou quatro da manhã, não chovia e, talvez fizesse um 16 graus, aquele aguadeiro despertava para mais um dia duro de labutas. Era seu ofício, o modo de ajudar prover a subsistência de uma mãe lavadeira e mais dois irmãos menores, que com ele formavam aquela pequena e pobre família.
Zé Carlos, este era o nome pelo qual o chamavam a freguesia e os parentes. Era novo ainda, parecia ser mais velho do que o era de fato. Desde muito cedo, talvez entre os treze e quatorze anos, já estava acostumado no ir e vir de aguadeiro, nem precisava ser despertado no horário; o corpo já o fazia quase que automaticamente.
Deixando para trás a cama de tábuas, cujo colchão eram duas esteiras sobrepostas e as parcas cobertas de taco, que lhe aqueciam o sono, saía para procurar o animal com o qual contava para a sua labuta cotidiana: o jegue, que pastava apeado, ali por perto, visto ser aquele lugar, bem rico em feno com o qual recobrava um pouco das energias despendidas no dia anterior, no ir e vir carregando os quatro barris que lhe pesava no dorso de poucas carnes, mas muitas cargas.
Ao encontrar o pequeno asno, Zé Carlos o trazia para o lado da casa de taipa onde residia; dava algum milho misturado com farelo; água para que completasse seu repasto, enquanto trazia uma manta de palha, que minoraria o desconforto da cangalha que logo seria colocada, ajustada com cuidado e apertada com grossa chincha de couro cru, para evitar que, com o ir e vir do animal e o balançar da carga,aquela cangalha viesse a escorregar em seu dorso suado.
Tendo o jegue Acabado de comer sua ração, o aguadeiro trazia os quatro barris de madeira, que eram colocados equilibradamente nos suportes de ferro previamente presos na cangalha, de modo a ficarem dois barris em cada lado,talvez tivessem capacidade para vinte ou trinta litros de água cada um.
Aos poucos a manhã se fazia raiar, ouvindo-se pouco a pouco o chilrear dos muitos pássaros que viviam na região: garrinchas, Bem-te-vis, papa-capins, viuvinhas, sanhaços, azulões, que formavam a orquestra indescritível e deliciosamente agradável aos ouvidos dos que tem a ventura de estar de pé nas primeiras horas da madrugada, cujos maestros eram os diversos galos das redondezas, que conduziam o concerto à diversas distâncias, sem no entanto perder a sincronia da bela música que executavam em meio aos arvoredos, arbustos e grande variedade de perfumes naturais que invadem os pulmões daquele rapaz, que àquelas horas, já se botava para o chafariz ou riacho mais próximo, afim de encher seus barris e iniciar o trabalho de abastecer as casas de sua freguesia.
Atendendo a uma boa quantidade de fregueses, Zé Carlos conduzia seu jegue indo e vindo, a encher os barris e os transportar para as casas que servia com seu trabalho, dia pós dia, mês pós mês, anos pós anos.
Aquele dia então amanhece frio mas ensolarado,com uma paisagem formada não mais, apenas pela vegetação, pelos cheiros vindos dos laranjais abundantes e próximos,ou pelo cantar dos pássaros. Começam a aparecer as primeiras pessoas que se dirigem aos seus lidares diários; as lavadeiras que se dirigem ao rio com suas bacias de roupa por lavar; outros aguadeiros que lhe cruzam o caminho, no mesmo ofício, no mesmo mourejar; os homens da ferrovia que se dirigem para a oficina a fim de desenvolverem seu ofício de fazer reparos em locomotivas e vagões; pãozeiros, que ofereciam de casa em casa, aquele alimento tão do cotidiano de pobres, ricos ou “remediados”;trabalhadores outros, como os dos curtumes, dos trapiches, ofícios enfim, comuns a Alagoinhas fomageira e coureira dos inícios e meados do século.
Assim, homens, mulheres e crianças... Sim, crianças indo e vindo, de diversas idades, envergado diversas fardas escolares, davam o tom daqueles dias de inverno, se apresentando para as diversas atividades que cabia a cada um levar a termo, em todo o dia.
E o jegue? Ah, o jegue... Quem visse de longe, até poderia dizer que era um animal dócil, acostumado a transportar aquela carga; ajustado aquele ir e vir diário, em seu passo miúdo e constante... Ah, aquele jegue! Era um ser de pequeno porte, rijo, bom para transportar pequenas cargas, de grande utilidade para o homem simples que dele precisasse para atividades que não exigissem grande força muscular; de grande utilidade, mas de temperamento forte e tenaz, com manias e matreirices únicas.
Naquela manhã de terça ou quarta feira, não se sabe ao certo, Zé Carlos talvez estivesse fazendo a segunda ou terceira viagem do dia, no encalso de seu sustento, em um farfalhar constante, de encher e esvaziar barris; de carregar e descarregar os vazilhames, levando-os e despejando-os nos recipientes da freguesia; de tocar o jumento e, exigir dele empenho que, especialmente naquele momento, o animalzinho não se dispunha a obedecer.
Entre chicotadas e imprecações, iam-se os dois em um caminhar lento, nervoso mas, até ali, sem percalços. Seguiam ambos pela extensa rua 2 de julho, pouco depois da movimentada Estação Ferroviária, na direção do centro.
- Jegue!
Vociferava o rapaz, aos ouvidos insubmissos e lenientes do animal, quase louco de cólera, vendo passarem-se as horas e apertando o tempo para cumprir o dever com seus fregueses:
- Anda, jegue dos diabos! Táááá! Estalava o chicote e o animal pouco avançava, o que aumentava ainda mais o desconforto do pobre homem.
- Tááááá! Tááááá! Jeeegue! Gritava o aguadeiro.
- Táááá! Zip!
- Ai moço! O senhor me machucou!
Entre uma chicotada e outra, já se interpunha uma colegial. Uma garota, de seus doze ou treze anos presumíveis, fardada, saia e blusa bem engomadas, indignada por ver aquele animal tão surrado, em baixo de tão grande carga, se lança sobre o homem encolerizado, que não tivera tempo de reter o braço e, deixa um lapo de relho em suas costas!
- Arre menina; não basta este jegue dos diabos e você agora para me trazer mais desgosto? Que vou dizer a tua vó? Como me explicar aos teus tios, quando for a vez de entregar lá, a água?
Se inquietava e lastimava o homem, acabrunhado por ter lapeado a jovem com seu relho e, se sentindo culpado de ter interrompido o caminho da garota para a escola, o que lhe custaria um dia de aula, pois não poderia entrar no Colégio das Freiras onde estudava, com a blusa suja e, as costas machucadas.

terça-feira, 19 de junho de 2012

A CADEIRA DA PENSÃO DE SEU JOÃO BISPO

A cadeira da pensão de seu João Bispo

*Jose Jorge Damasceno

Ao amanhecer, aquele dia parecia que seria mais um como todos os que o senhor João Bispo houvera vivido até ali: o Pirulito partindo às quatro e meia da manhã, ou chegando à boquinha da noite..; o Rápido, o Misto, trens que enchiam a cidade com seu apito e com o resfolegar cansado de suas locomotivas, que quebravam o silêncio das horas, dando vida e trazendo ares de cidade àquela pacatíssima localidade do interior, mostrando ao observador descuidado, que aquele lugar não era feito só de marasmo e dos movimentos miúdos das crianças para a escola.
Ele acordou cedo, ergueu-se do leito, caminhou para o quintal, a fim de fazer sua higiene pessoal. Enquanto isso, pensava no trabalho daquele dia; no trato com os hóspedes habituais, se lhe chegaria algum novo; se daria conta do serviço que tinha sob sua responsabilidade, enfim, Seu João Bispo , como todos o chamavam, refletia naquele dia que se iniciara, como talvez o fizesse todos os dias.
Pelo meio dia, tudo dentro da normalidade: mesa preparada, os hóspedes de costume; algum outro que apenas ali se encontrava para a refeição, visto não ser possível ir até a própria casa, refazer as energias para continuar o seu trabalho.
Seu João Bispo a tudo observava, com cuidado e esmero, procurando fazer com que os que buscassem refúgio e restauro no seu estabelecimento, dali saísse satisfeito e atendido, o que, certamente, faria com que voltasse outras vezes.
Por sua vez, o dia se arrastava pesado. Talvez fosse um daqueles dias de verão de Alagoinhas, quente, com o sol em sua plenitude, forçando os que precisavam sair do interior das casas ou estabelecimentos comerciais, o enfrentar com galhardia, volta e meia limpando a testa com a mão, ou mesmo com algum lenço, talvez encontrando aqui, ou ali, uma sombra de árvore que lhe pudesse mitigar a inclemência do sol da uma ou duas da tarde, precisamente naquele horário em que a comida ainda trás ao transeunte, aquela sensação de moleza e cansaço.
Caía a tarde e, com ela, crescia a expectativa de seu João Bispo, em torno do que poderia trazer de novo e alvissareiro para os seus ganhos comerciais, a chegada do trem daquele início de noite, que lhe pudesse ajudar nos seus anelos de dono de pensão; ou que pudesse talvez lhe mudar um pouco a rotina e trazer alguma nova da Bahia, que tanto poderia ser de alegria, de preocupação, de aborrecimento ou, quem sabe o que traria o trem, àquele senhor de meia idade, que buscava o sustento diário, através daquela atividade, por vezes de ganho incerto, mas que tinha um ritmo que ele precisava manter, sob pena de ter dissabores, na hora de fechar as contas em torno do gasto e do obtido com seu trabalho.
A sirene da Leste marca quatro e vinte, logo depois quatro e meia; saem a toda pressa os funcionários da oficina que funcionava ali próxima, como próxima era da Estação a sua pensão.



Levas de operários borbulhavam da oficina, como se de repente um formigueiro abrisse suas portas e turbilhão de formigas operárias saísse para se refrescar, ver o fim da tarde, ou buscar algum repasto para lhe mitigar a fome que açoitava, visto já ter se passado quatro horas da última refeição...
Dali há pouco, em quase toda a cidade que abriga pouco mais de sescenta mil habitantes, ouve-se o apito do trem, ainda distante, que anuncia a sua aproximação e chegada para breve. e, não se fazendo esperar muito, surge imponente apontando na caixa d'água, vagarosa e confiantemente, chega a sua gare, parando o seu passo cansado, deixando escorregar de seu interior, as pessoas, as idéias, as mercadorias, as esperanças e expectativas, os comentários, as novidades, os mexericos e as miudezas que até então mantinha encerrados nos seus vagões, trazendo tudo isto, como se trouxesse segredos e preciosidades, que não podem escapar, antes que chegue a estação a que se destina.
De repente, ouvem-se gritos. Gritos que voam e vão longe, avançam a distância que separa a gare das casas mais próximas. E, logo voluntários acorrem ao ser que grita desesperado, grita de dor; algo não está bem consigo e, implora o socorro de alguém.
Homens fortes e voluntariosos, dispostos a compadecer-se daquela criatura mortificada pela dor, procuram tomar a seu cargo, a tarefa de a conduzir até sua casa, ou de algum dos seus, que lhe possa melhor assistir e amparar. Mas a dor era forte, o desconforto do transporte, a aumentava sobre maneira...
Ah, surge naquela cena, uma criança; uma garotinha de seus nove anos presumíveis, que, do portão de sua casa, não muito longe dali, também ouvira aqueles gritos e, em sua disposição infantil, se aproxima e, se propõe a ajudar...
- Esperem, esperem! Eu posso ajudar - brada a miúda.
- Esperem que eu vou buscar uma cadeira...
Veloz como sua idade permitia que fosse, atravessou os trilhos daquela estrada de ferro, aos saltos e, como um raio surge inesperado no céu, salta aquela criança na pensão de Seu João Bispo e, sem esperar que lhe perguntassem o que queria, foi bradando e logo passando do brado a ação:
- Seu João, vou panhar aqui uma cadeira!
Ato contínuo fez de sua pequena, mas fértil cabeça o meio de transportar aquela cadeira e, de novo aos saltos, surge outra vez na plataforma da estação ferroviária, munida daquilo que acreditava ajudaria a minorar o desconforto daquela mulher e ajudaria a mitigar seu sofrimento expresso pelos seus gritos de dor...
- Aqui, trouxe essa cadeira. Será que sentando aqui, ela não se sentiria melhor?
Os homens se entre olhavam e perguntavam de onde teria surgido aquele relâmpago, que eles só viram o seu reflexo na plataforma, pedindo que eles esperassem que ela iria trazer uma solução para aquela situação que eles não conseguiam atinar? Tão nova tão pequena e já tão engenhosa e astuciosa!
Acomodada na tal cadeira, a mulher agora é transportada com mais conforto e já não grita. A criança se alegra com o resultado obtido e, segue acompanhando os homens que conduzem aquela senhora, não se saberia precisamente para onde. O que importava, no entanto, é que estava melhor e que não sofria tanto, quanto antes.


Enquanto caminhavam e viam aquela garota se distanciar, sendo levada de volta para casa pelos seus, aqueles homens por certo matutavam de si para consigo: Afinal, quem era aquela menina arisca, que surgira de repente, como uma estrela que ilumina a estrada de um viajante e, o ajuda a encontrar o caminho que procura?
Seu João Bispo ficou estupefato ao ver aquela garotinha que apenas lhe avisara que pegaria uma cadeira e, sem esperar que lhe dissesse palavra, viu-a sair com aquele objeto, sem se intimidar, considerando apenas que, naquele momento, quem precisava daquela cadeira era ela, pois com ela, ajudaria alguém a sofrer menos!
Seu João Bispo refletia, talvez aborrecido com aquele contratempo e, enquanto seu olhar navegava na direção para onde fora a garota com sua cadeira, no cérebro, ziguezagueavam pensamentos que ele rebuscava com algum esforço, para tentar saber quem era aquela criança e, sobretudo, talvez querendo entender para quê, quereria ela a sua cadeira de pensão.
Em pé, com as mãos cruzadas nas costas, Seu João Bispo, inquiria se não era aquela a menina que passava acompanhando o avô, um ferroviário aposentado, quando aquele ia para o encontro diário com um certo Senhor Cabral, um sapateiro “remendão”, que morava ali por aquelas imediações,com idéias e comportamento de comunista; se não era ela quem o conduzia pela mão, devido ao seu olhar já quase escurecido pelo tempo...
A noite o encontrou envolto em tais pensamentos e, com o olhar ainda perscrutando a plataforma ferroviária, para onde foi levada a sua cadeira, talvez esperando que a menina ou quem se beneficiou daquele objeto de seu uso privado, a fizesse tornar ao lugar de onde fora apanhada, para quê, ele não saberia dizer.
Ah, definitivamente aquele não fora um dia como outro qualquer, como ele imaginara ao levantar para iniciar sua faina cotidiana.
Ao terminar em fim, o dia que se-lhe afigurara como mais um daqueles iniciar e findar de horas da Alagoinhas do início dos anos 50, o observador attento, como se pudesse ler os pensamentos que fervilhavam sob a cabeleira já escassa dohomem que vendia abrigo e alimento a forasteiros trazido pela ferrovia, no lento mas firme avançar da noite, concluiria facilmente que, para seu João Bispo, esse dia que fora de fato atípico.
Foi o dia que o veria voltar para a cama, recobrar-se do trabalhoso marchar de seus dias, com a certeza de que lhe faltava alguma coisa, na paisagem quase imóvel daquele lugar.
Faltava uma cadeira na sua pensão.