Puxando pela Memória: “Seu” Cabral –
Iraci Gama Santa
Luzia
Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 21 de abril de
2013 | 20:53
A minha vida tem sido repleta de situações
extraordinárias, que hoje reputo
contributivas e fundamentais na minha formação pessoal e
política. Ainda na
infância participei de algumas greves dos ferroviários,
levada pelas mãos do meu
tio Zeca da Gama e, por esse intermédio, estreei falando
em público, já
adolescente, em substituição à profª Agal Máxima
Conceição, na greve de 1960.
Conheci várias pessoas importantes e vivi momentos
especiais, com algumas delas,
como as três professoras primárias: Maria de Lourdes
Saback, Maria José Bastos –
Zezé e Ana de Oliveira Campos – Noquinha. Conheci alguns
políticos, como
Fernando Santana – Deputado Comunista de vários mandatos
que, no comício de
campanha de Murilo Cavalcante para Prefeito de
Alagoinhas, na Rua 2 de julho, em
1962, após minha fala, tomou o microfone e disse, com sua
voz possante, dentre
outras coisas: “(…) ainda ouviremos falar muito dessa jovem,
pois ela vai muito
longe (…)” e me levantou do chão, num abraço
inesquecível.
Conheci também algumas figuras humanas, típicas, como
“Dedé doido” que vinha
todos os dias à minha casa conversar com meu avô, pedia
pimenta malagueta e a
machucava, com uma pedra, no parapeito da janela. Comia e
perguntava: “Seu
Pedro”, se a gente amarrar uma escada na outra, um bocado
de escada, a gente
chega no céu? E meu avô, com toda paciência para ouvir
seus questionamentos,
conversava com ele, assim como conversava com outras
pessoas menos sociáveis.
Havia alguns vizinhos de nossa casa que vinham a essa
mesma janela, para falar
com meu avô sobre diferentes assuntos, como “Seu” João
Pereira – fã de Getúlio
Vargas; “Nenenzinho”, filho de dona França – fã de Luiz
Carlos Prestes – que
dizia “eu sou uma brasileira russa”; “Seu” João Batista
que falava sobre
religião, sobre espiritismo, dentre outros.
Mas, sem sombra de dúvidas, uma personagem desse tempo, a
cada dia se agiganta,
no meu interior, pois, com o passar do tempo e pelos
contatos com pesquisadores
de nossa história, fomos descobrindo a grande importância
desse meu “guru” da
infância: “Seu” Cabral. Joaquim Cabral de Souza era um
sapateiro “remendão” que
morava na Rua 2 de julho, perto da minha casa, bem em
frente ao trecho da
entrada para a Oficina São Francisco. A casa era muito
grande e a primeira sala,
a sala de entrada servia de “ateliê” do morador que aí
colocava todo seu
material de trabalho.
No centro dessa sala, uma cadeira de madeira, com encosto
e assento de couro em
tiras, era o local onde esse homem passava o dia sentado,
na atividade rotineira
de consertar calçados. Sempre sem camisa, exibia um
tronco forte – apesar da
idade denunciadora de alguns janeiros – e de muita
resistência, provocada talvez
pelo movimento repetitivo e constante do martelo, na sola
do sapato sobre aquele
“pé de ferro” que ele usava como suporte para o serviço
de colocação de um novo
solado, de meio solado a famosa “meia sola” que renovava
os calçados já usados.
Lembrando, depois de tantos anos, o que acontecia naquele
espaço, vem uma
reflexão: como é que aquele homem aguentava o peso da
batida do martelo sobre o
calçado apoiado no pé de ferro que ele colocava sobre a coxa
esquerda, perto do
joelho onde punha uma cobertura protetora de um pedaço de
couro? A perna recebia
toda a carga do peso da batida do martelo, para juntar o
novo solado lambuzado
por aquela cola de cheiro forte – a cola de sapateiro ou
sobre pequenos pregos
que ele usava para reforçar a ligação do novo material
com a base do calçado que
ele consertava, encaixado no pé de ferro. Como é que
aquele homem aguentava
tanta pancadaria, todo dia, o dia todo? É verdade que à
frente dele, havia uma
bancada, mas era usada para guardar alguns materiais
importantes, em divisões
próprias, como: cola, água, pregos, brochas, ferramentas
indispensáveis no
trabalho do remendo. Mas batida de martelo, só mesmo
sobre o joelho do
sapateiro!
Era, portanto um homem forte, na casa dos cinquenta anos,
de pele curtida e
escura. Pela cor da pele seria negro, mas o cabelo não
era encarapinhado, pelo
contrário, era muito liso – um negro, de cabelo bem liso,
o que caracterizava a
designação “cabo verde”. E o corte de cabelo, muito comum
nesse tempo, era a
cabeleira inteira – o fio reto da testa até o pescoço,
com costeletas curtas e
cangote bem aparado.
Ele gostava assim. Quando sentava na cadeira para
trabalhar, de manhã, estava
pronto – rosto bem lavado, cabelo bem penteado, bem
assentado. Não me lembro de
ter visto, uma só vez, um único fio de cabelo suspenso, e
cabelo assanhado,
jamais. Esse tipo de corte só serve mesmo para quem tem
cabelo liso e eu tive o
prazer de conviver com uma cabeleira assim, naquela minha
infância – a de Zeca
da Gama que me deixava pentear constantemente, sempre que
pedia, inclusive
fazendo trança, só não me permitia colocar laço de fita
nas pontas. Eu prometia
concordar e por isso, ele sentava no banco eu ficava de
joelhos, por traz dele,
fazia e desfazia as tranças (…) e ele dormia.
Em “Seu” Cabral, o cabelo liso, bem penteado, da cor da
pele era contraste que
chamava atenção, à primeira vista, quando ele estava
sério. Mas quando dava
risada, um outro traço o distinguia: a gengiva bem
corada, cenoura, sem um só
dente. E hoje dá para pensar: por que será que ele não
tinha dentes? Opção,
falta de recursos, displicência, simplicidade? Quem sabe
tudo isso misturado. E
ele ria livremente, enquanto conversava com quem estava à
sua volta, sem
qualquer preocupação com a falta de dentes que dava à
fisionomia daquele homem
simples, o toque de naturalidade de sua alma livre e
ansiosa por mais liberdade
para todos. A preocupação não estava com a boca, mas com
a palavra que saía
dela!
A cadeira do sapateiro ficava no centro da sala, em
frente à janela da rua, o
que permitia a visão desse homem, do outro lado da linha
do trem. Em volta da
cadeira, muitas tiras de pneus usados em pequenos pedaços
ou pedaços grandes e
até pneus inteiros, além de tiras e pedaços de couro
curtido. Cabe lembrar que,
nessa época, os solados dos sapatos, de um modo geral,
eram de pneus, inclusive,
os escolares, como aqui, em Alagoinhas, o nosso sapato da
farda diária do
Colégio Santíssimo Sacramento, o que o tornava muito
pesado, desagradável. Os
sapatos, sandálias, chinelos, aguardando conserto, se
misturavam aos materiais
espalhados pelo chão da sala. E, por cima de tudo, em
folhas soltas, para
leitura de diferentes assuntos, conforme o interesse de
quem chegava, estava o
jornal.
O jornal “A Tarde” comprado diariamente era o elemento
indispensável para aquele
homem e sua comunidade. Por isso, não só o jornal do dia
ficava à disposição,
mas também o dos dias anteriores. Dinheiro era coisa rara
naquela casa, porque
os “remendos” custavam pouco e “Seu” Cabral não cobrava
de famílias mais pobres…
O do jornal, porém, era sagrado! viver era verbo de
difícil conjugação por
aquela família e dependia, muitas vezes, de dona Cota –
mulher de Cabral –
especialista em transformar cabelo crespo em liso, pelo
processo de alisamento a
ferro quente. A vizinhança (e até gente de longe)
entregava a sua cabeleira à
competência de dona Cota que o espichava nos moldes da
época e todos elogiavam a
transformação efetuada.
O que a chapinha faz hoje com o poder da eletricidade,
dona Cota fazia naquele
tempo com a força dos braços num processo que pode ser
assim descrito: uma
porção pequena de cabelo apoiado num pedaço de pano em
várias dobras, para
evitar quentura maior na mão esquerda, enquanto o ferro
esquentava no fogão a
carvão e, na mão direita, o ferro, fechado, deslizava
sobre aquele pedaço de
cabelo puxando-o delicadamente, mas com firmeza. Depois,
com o ferro aberto, a
porção do cabelo entre as duas chapinhas, segurava e
puxava aquele pedaço de
cabelo da cabeça às pontas até que ele ficasse
completamente liso.
E essa porção de cabelo já pronta vai sendo colocada
sobre as outras, enquanto
ela põe novamente o ferro sobre a brasa, a esquentar,
para alisar novo pedaço
que ela prepara cuidadosamente, até espichar toda a
cabeleira. Esse trabalho
começava sempre pela base do cabelo – o cangote e ia
subindo aos poucos,
contornando toda a cabeça. Claro que a cabeça ficava
quente, mas o cabelo
amansado, mais fácil de pentear, compensava o calor
daquele instante.
Isso acontecia na área próxima à cozinha, nos fundos da
casa. Na frente, na sala
do sapateiro, ele gastava saliva e sorriso, conversando
com seus clientes, seus
amigos, seus ouvintes, seus “aprendizes”. No meio desses,
eu me incluo, porque
acompanhava meu avô, todos os dias, até a casa de “Seu”
Cabral para aquela
conversa. O meu avô já tinha certa idade e não enxergava
direito e a criança que
vinha pela sua mão, era guia e companhia e, sem querer,
tornou-se testemunha do
modo de vida desse homem que, para ela, era um sapateiro
que falava de política
e vivia cercado de gente que ela já conhecia da
convivência familiar ou ia
conhecendo naquele ambiente.
Ferroviários e sindicalistas chegavam, entravam, pegavam
aquelas páginas de
jornal, faziam leitura de determinadas matérias ou
trechos específicos, sempre
para provocar discussão ou reforçar a discussão já
iniciada. Era um entre e sai
de gente, sem licença, nem interrupção. Quem entrava,
ficava de pé, encostado na
parede, ou de cócoras ou sentado no chão, quando o
cansaço aumentava. Isso
mostra a escassez de apoio logístico para quem chegava,
pois além da cadeira do
sapateiro, só havia uma outra – a do meu avô. Eu mesma
ficava de pé ou de
cócoras ou sentada no chão, como todos os visitantes, até
que recebi um presente
de “Seu” Cabral: um banquinho feito com pedaços de
madeira e tiras de pneu.
Ele ficava encostado na parede junto da cadeira do velho
e saía dali somente
para a “dona” sentar. Certamente essa foi a primeira
“carteira escolar” em que
sentei e aquela sala o primeiro espaço de aula explícita,
na minha vida. Só não
posso dizer que “Seu” Cabral foi meu primeiro professor,
porque Deus já me havia
dado o privilégio de viver numa família, onde a prática
de vida aliada à
palavra, aos conselhos, era um manancial de ensinamentos,
e principalmente pelo
exemplo, é que fui aprendendo.
E o chefe dessa família era amigo de “Seu” Cabral. Amigo,
mesmo, porque, de vez
em quando, ele entrava no quarto, trocava os chinelos, às
vezes a camisa, pegava
o chapéu e ouvia da minha avó: “já vai Pedro?” E ele
respondia: ”Vou ver
Cabral”. Eu estranhava aquela resposta, porque ele não me
levava. Aquela não era
nossa viagem diária, constante. Ele ia sozinho. Só depois
fiquei sabendo que ele
ia à delegacia, quer dizer, ia primeiro ao prefeito Pedro
Dórea – seu compadre –
pedir por aquele “preso” que era seu amigo e, com a ordem
da autoridade, voltava
com o “preso” para casa. Só agora depois de adulta e
pelas lições dos
pesquisadores, entendi o que se passava – “Seu” Cabral
era comunista e
perseguido político que, quando a autoridade policial
queria, o levava, sem
qualquer explicação ou justificativa, para trás das
grades. E voltava sempre
para aquela mesma cadeira de sapateiro, no meio de botas,
sapatos e chinelos
velhos, recortes de couro e pneus, e folhas abertas de
jornais, para continuar
sua missão de libertador de mentes.
A escola de “Seu” Cabral teve muitos alunos. Os
ferroviários faziam ponto no
sapateiro, para atualizar as informações, saber das
novidades, fazer
questionamentos, interagir. A Oficina de São Francisco
apitava às onze horas
para a saída dos operários, doze e trinta fechava o
portão novamente para o
turno vespertino, liberando todos os operários às
dezesseis e trinta. E esses
horários controlavam as visitas ao “professor”. Alguns
paravam lá às onze horas,
outros preferiam almoçar e chegar antes do horário de
fechar o portão e outros,
ainda, optavam pela parte da tarde, porque ficavam com
mais tempo para esses
contatos.
Verdade é que, entre o portão da Oficina e a sala de aula
do sapateiro,
formava-se uma linha imaginária – uma estrada do
conhecimento que atraía esses
ferroviários e os mantinha ligados e “viciados” em
discutir a situação política
do país, o que os afinava com as questões gerais e
específicas do operariado
brasileiro e internacional. Para nós, que acompanhávamos
essa movimentação, de
perto, muitas vezes sentada no banquinho de tira de pneu,
a lição maior era do
valor da diversidade, pois ali todos tinham vez e voz e a
divergência acontecia
em clima de respeito. O jornal era lido e comentado,
indistintamente.
Às vezes, alguém dizia: ““Seu” Pedro, pede pra menina ler”. E eu lia, com
desenvoltura, palavras que nunca tinha visto/ouvido na
minha escola primária e
assim ia enriquecendo o meu vocabulário com aqueles
textos e seus significados.
Foi aí na escola de “Seu” Cabral que ouvi falar, pela
primeira vez em “trustes”;
na juventude, o combate aos “trustes” americanos era a
tônica nos discursos,
mas, naquele tempo, eram trustes japoneses. Na década de
oitenta, em conversa
com o Sr. Ildefonso, na preparação de uma carta dele para
o Presidente da
República (desde a infância, sirvo de “escriba” para
muita gente) ele me contava
que se lembrava de mim, sentada e lendo o jornal na casa
de “Seu” Cabral e
depois, na adolescência, estudando e lendo em voz alta,
cedinho, andando na Rua
2 de julho – da Estação São Francisco até a porta de
“Seu” Durval.
Fiquei emocionada com essa declaração porque o senhor
Ildefonso era um operário
aposentado do curtume (no fim do 2 de julho havia uma
concentração de 3
curtumes: O Santo Antonio, O São Francisco e o São
Paulo); era um comunista
respeitado pelos seus pares, pela tradição de seriedade
dentro do PC do B. E
quando ele falava em “Seu” Cabral eu sentia que, para
ele, a minha presença lá
era referência de credibilidade. Temos certeza, pois, de
que aquele homem pobre,
sapateiro, desdentado, conversador, alegre, risonho,
questionador, crítico, é o
símbolo de uma época em que o operariado buscava se
fortalecer pela informação,
se unir para as reivindicações. E aquela sala de “Seu”
Cabral era oficina de
comportamento, na área de localização, ponto de encontro
dos ferroviários/
operários de Alagoinhas, ávidos por progresso, mas também
por respeito aos seus direitos.