quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Alagoinhas 1970: a primeira vez que fui no “Estadual”.



 

Era março, talvez abril ou, quem sabe maio... Certo mesmo é que era noite.

Tendo saído logo depois do jantar aquele jantar de filhos de trabalhadora informal, sem patrão ou salário definidos, este autor e seu irmão mais velho, já falecido,nos dirigimos ao outrora calmo centro da cidade de Alagoinhas, levados pela kombe que realizava o transporte coletivo.

Tendo Chegado ao terminal situado à praça Castro Leal, tomou-se a rua lateral a delegacia, na direção da José Olímpio, virando a esquerda e, após virar a ddireita, pegou-se a Praça Ruy Barbosa,passando na frente de várias residências que ainda não tinham sido transformadas em clínicas ou simplesmente demolidas, como a casa dos Farane e a dos Rabelo, seguiu-se em frente, alcançando a Elvira Dórea,marcadamente residencial, sobretudo, dos “de posse”, avançou-se até uma vasta área de poucas habitações, cujo prédio mais imponente, não só pela sua construção, mas também por até então não possuir algum outro que lhe ofuscasse o brilho, era o Alagoinhas Tênis Clube.

Ao ingressar na rua para onde se voltava a frente do Tênis, ao lado esquerdo se eregia o que viria a ser o Estádio Municipal Antônio Carneiro. Mais adiante, do mesmo lado, quase comprimido se encontrava o até então imponente Ginásio de Alagoinhas, que doravante, ficara escondido pela impoonência do prédio que si fizera erguer logo ao seu lado: o Centro Integrado Luís Navarro de Brito, que ficou conhecido apenas pelo nome de “Estadual”.

Ali estava, diante de nós, aberto ao nosso ingresso, aquele complexo escolar, que saíra da idéia de Anísio Teixeira, com grandes pavilhões de salas de aula, amplas e arejadas, com áreas para instalação de oficinas, laboratórios, bibliotecas, precisamente como ele imaginara, estavelecer um espaço onde o aluno pudesse permanescer a maior parte do seu tempo de aprendizagem.

Era um prédio novíssimo; com seus cheiros de tintas e madeiras ainda frescas; e com suas portas de vidro na entrada dos pavilhões de aulas; com grandes intervalos entre eles; era grande e promissor aquele centro integrado, mesmo que à autura daquela visita, algumas áreas ainda estivessem em processo de construção e/ou conclusão.

Ali estava o Estadual,diante do torpor que este escrevente experimentava, visto ser estudante do minúsculo Brasilino Viegas, espaço que ele tinha plenamente sob seus pés; agora estava ali, extasiado, diante de uma imensidão que, para os seus nove anos completados, parecia-lhe inalcansável. Ah, como queria estar adiantado na seriação, para poder ser matriculado, para poder esquadrinhar todo aquele espaço de pavilhões de aulas e laboratórios; para poder orgulhosamente dizer a todos que estudaria no estadual.

Tal desejo só veio a se consumar cinco anos depois, quando ali entrou para cursar a quinta série do primeiro grau, em uma das salas do pavilhão Luís viana, momento de alegria indescritível, aquele em que se assentou pela primeira vez naquelas carteiras que, na quela noite, só se lhe afigurara na imaginação.

O que foram fazer lá, não me ocorre precisar. Certo mesmo é que aquela noite, talvez depois de um dia chuvoso, ficou na memória olfativa deste autor, o cheiro da vegetação ainda abundante naquelas cercanias, os cheiros sentidos dentro daquele prédio, talvez ainda com pouquíssimos alunos, os cheiros das pessoas, bem como das casas por onde passou ou entrou, além dos cheiros produzidos pelos poucos carros que já circulavam na cidade, brotam-lhe na lembrança, como se tivessem sendo sentidos no preciso momento em que as palavras se me escoam dos dedos.

sábado, 30 de julho de 2016

Republicando 9 - Histórias e memórias de uma imprensa viciada


Histórias e memórias de uma imprensa viciada – José Jorge Andrade Damasceno

 

Publicado originalmente no Alagoinhas Hoje em  19 de maio de 2013

 

Sem eleições presidenciais desde aquela realizada em 1960, que conduziu Jânio Quadros ao Palácio do Planalto, o Brasil se reencontra com esta modalidade de escrutínio no ano de 1989, após os 21 anos de regime civil-militar e pouco mais de um ano após a promulgação daquela que foi decantada como sendo a “Constituição Cidadã”.

 

Marcada pela presença de nomes já consagrados na política brasileira, como os de Ulysses Guimarães e Leonel Brizola, para citar apenas dois, a primeira eleição presidencial após as grandes mobilizações sociais e políticas do início da década de 80 do século XX, se apresenta, como tendo sido aquela, na qual os meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão, tiveram efetiva participação, na construção de uma espécie de “vontade popular”. Driblando as restrições legais relativas à exposição dos candidatos e, aproveitando-se de sua quase absoluta penetração em todos os recantos do País, mesmo os mais longínquos, a Rede Globo de Televisão, associada a outros setores da imprensa -, jogou papel decisivo na pavimentação da estrada que levou ao segundo turno, o candidato filiado ao inexpressivo PRN, Fernando Collor de Melo, até então, um obscuro governador de Alagoas, embora de família politicamente tradicional, cuja raiz remonta aos anos 30.

 

Seu contendor era o metalúrgico e ex-deputado Constituinte, Luís Inácio Lula da Silva, cuja origem política é encontrada nas mobilizações operárias, que tinham como berço o ABC Paulista, desencadeadas a partir do final da década de setenta daquele mesmo século.

 

Aquele foi um pleito amplamente polarizado em torno de duas propostas sócio-políticas bem delineadas. Por um lado, Fernando Collor de Mello, representava a proposta de manutenção do status quo das “elites” políticas e empresariais brasileiras que tinham como seu porta-voz principal o complexo sistema de comunicação de massas, capitaneado pelas Organizações Globo. Por outro lado, Lula da Silva representava o ideal de mudança social preconizada pelo Partido dos Trabalhadores, agremiação nascida da confluência de diversos movimentos sociais que encontravam lastro e ressonância em uma considerável parcela do setor “progressista” da sociedade civil brasileira.

 

Longe de ser um elemento neutro na formação da opinião pública, neste e em diversos outros episódios da história recente, a imprensa brasileira em geral e a televisiva em particular, vê-se como instrumento de persuasão e/ou convencimento, a partir do qual, se apresenta com a finalidade de desempenhar papel relevante, que expressasse na prática a vontade de uma massa formatada para responder positivamente aos anseios sócio-políticos de uma facção dominante do setor comunicacional brasileiro e internacional.

 

Já em 1982, incomodado com a possibilidade de ver no comando do estado fluminense um político que não fosse afinado com seus interesses empresariais, para dizer o mínimo, o núcleo dirigente das Organizações Globo, empreendeu esforços no sentido de evitar a eleição de Leonel Brizola para governar o estado do Rio de Janeiro.

 

O rumoroso caso “Proconsult” deu uma dimensão daquilo que seria a atuação dos meios de comunicação de massa, alguns anos mais tarde, quando empreendeu um gigantesco esforço para evitar que vencesse as eleições presidenciais de 1989, um segmento político partidário que representava perigo à hegemonia comunicacional do império comandado por Roberto Marinho.

 

Um dos episódios mais obscuros daquela campanha eleitoral, sem a menor sombra de dúvidas, foi o último debate entre os candidatos ao segundo turno, Collor de Melo e Lula da Silva.

 

Cheio de lances espetacularizados, nos quais o candidato apoiado abertamente pelas Organizações Globo apresentou fatos da vida pessoal/privada do candidato Lula da Silva, amplamente explorados no momento de editar para a última edição do principal jornal da rede de emissoras, colocando em grandes dificuldades o candidato prejudicado, visto que não haveria mais tempo para exigir direito de resposta e/ou de reparação, pois faltavam apenas algumas horas para o processo eleitoral ter início.

 

As manipulações do último debate entre os postulantes ao Planalto e as repercussões das “denúncias” trazidas a público pelo candidato “global”, foram decisivas para a definição do pleito em seu favor, pois, embora tendo cometido o mesmo erro de que acusara o candidato Lula da Silva, não houve tempo nem competência da organização da campanha petista, para desmascarar a hipocrisia sócio-religiosa, lançada pela campanha de Collor de Melo para desmoralizar seu opositor.

 

Prevalecendo-se do falso moralismo coletivo de que se ufana grande parte da sociedade brasileira, principalmente suas elites culturais/religiosas, as Organizações Globo, os organizadores e condutores da campanha de Collor de Melo, associados aos seus demais apoiadores na imprensa nacional, viram exitosa sua trama maquiavélica contra o PT e seu candidato, no sentido de vê-los derrotados nas urnas e fazer subir a rampa do Palácio do Planalto o candidato que apoiavam aberta e despudoradamente.

 

Logo que assume a mais alta magistratura do País, o ex-caçador de “marajás”, mostra toda sua empáfia e despreparo para o cargo que ocupava, se apresentando mais como um “pop star”, do que propriamente como um presidente da República, cônscio de seus deveres constitucionais. Desprezando elementos-chave característicos de um chefe de Estado, despindo-se inúmeras vezes da “liturgia do cargo”, colecionando fama midiática, mas também, acumulando ódio de uma parcela daqueles mesmos que contribuíram com sua eleição, por conta das medidas econômicas que adotara, a mais rumorosa e polêmica delas, foi, sem dúvida o tal “confisco dos ativos financeiros”, o que provocou entre outras coisas, uma onda de suicídios e desorganização de diversos compromissos já previamente assumidos, por um número considerável de pessoas físicas e, até mesmo, de pessoas jurídicas.

 

A partir dali, se faz sentir o início do declínio de seu meteórico “boom” político/midiático, embora as Organizações Globo e seus outros aliados, tenham envidado grandes esforços para não deixar transparecer o já perceptível desgaste social, político e o mais grave deles, o institucional.

 

Começam a espocar os escândalos, os desvios de conduta e recursos, as “carteiradas”, os jeitinhos, os deslumbramentos de ministros, assessores diretos e indiretos, além de esbanjamentos de diversas ordens, a despeito das restrições impostas pela equipe econômica, que só atingiam àqueles “menos iguais” perante a lei e a sociedade.

 

Até que, menos de dois anos de seu mandato, explode a maior, mais complexa e decisiva das crises políticas que aquele governo e, de resto, todo o País tivera que enfrentar: o rumoroso caso PC Farias.

 

Enquanto as denúncias apareciam na “periferia” do jornalismo dito “revanchista”, ganhava pouco a pouco outros setores da mídia, até que, três reportagens publicadas pela revista ISTO É abalam de vez a pseudo solidez do governo Collor e rompe o “cordão sanitário” no qual fora envolto. As entrevistas de Pedro Collor, irmão do presidente; a entrevista de Egberto Batista, motorista diretamente ligado à cúpula paralela do presidente, além da entrevista/depoimento da secretária Sandra, foram os estopins que, uma vez acesos, implodiram irremediavelmente o governo patrocinado pelas Organizações Globo e virou o jogo em favor dos outros setores da mídia, contrários e alijados do processo político, precisamente por ter um posicionamento diferente daquele preconizado pela referida organização midiática.

 

Após consumada a votação no Congresso que permitiria a abertura do processo de impeachment do presidente Collor, a imprensa internacional, mais precisamente, a BBC de Londres afirmava em seu noticiário, alguma coisa mais ou menos assim: que “a Globo ergueu e as outras emissoras derrubaram o presidente brasileiro”.

 

Nos governos seguintes, Itamar Franco, Fernando Henrique (dois mandatos), Lula da Silva (dois mandatos) e Dilma Rousseff (primeiro ano de mandato), esta imprensa viciada em erguer e defenestrar, empenha-se em derrubar ministros, assessores diretos; também se empenha em emplacar auxiliares diretos para atuar junto aos mandatários republicanos. É um vício que ela traveste de “vigilância” democrática, para passar ao público a idéia de um quarto poder, capaz não só de fiscalizar, mas também de se impor enquanto formadora de opinião e, sustentada por princípios e valores morais e éticos, a partir dos quais pautam suas reportagens, denúncias, campanhas contra corrupção e pelo zelo da coisa pública, segue impondo sua vontade e seus interesses, sempre pintados como defesa dos interesses públicos.

 

Com este chavão tão agradável aos olhos dos leitores e telespectadores e aos ouvidos dos que ainda apreciam o rádio, eles torcem e distorcem a realidade, impondo a verdade que interessa ao órgão no qual esteja prestando serviço. Mas se posiciona como formador de opinião pública e, ao mesmo tempo, porta-voz desta mesma opinião, por ele engendrada pouco antes.

 

Até quando? Qual será o próximo alvo?

 

Ao juízo do autor destas linhas, neste momento em que elas estão sendo escritas, a imprensa está enveredando por uma linha de conduta arriscada. Ela está escorregando para uma partidarização perigosa! Dúvidas, caro leitor? Dê-se ao trabalho de fazer uma incursão pelas publicações que antecederam e precederam a eleição da presidente Dilma Rousseff; dê-se uma rápida garimpada no noticiário entre sua posse e a sua histórica participação na abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em setembro, na cidade de Nova York; verifique-se como se utilizou no período pré e pós-eleitoral de 2012, o vastíssimo material impresso, televisivo e radiofônico produzido durante o pretenso “mensalão”, tido como o processo mais bem conduzido por uma corte superior. E, assim, tire suas próprias conclusões.

 

José Jorge Andrade Damasceno é Doutor em História social pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia; professor adjunto no Colegiado de História, do Departamento de Educação, Campus II da UNEB, Alagoinhas, BA.

 

professordamasceno@gmail.com

 

@JorgeDamasceno1

Republicando 8 - Os cheiros da infância - Alagoinhas, 1965-1974.


Os cheiros da infância – Alagoinhas 1965-1974 – José Jorge Andrade Damasceno

 

 Originalmente publicado no jornal Alagoinhas Hoje em 12 de maio de 2013

 

Como grande parte das cidades de seu porte, Alagoinhas exala cheiros que marcam a vida dos que aqui nasceram ou viveram desde a infância. O período aqui especificado relaciona-se diretamente com os primeiros anos de vida do autor destas linhas, mas pode muito bem relacionar-se com lembranças de muitos dos que lerão os próximos parágrafos deste arrazoado.

 

De modo análogo ao tratamento que se tem dado às memórias de diversas pessoas, das quais foram recolhidas impressões, que depois foram transformadas em textos lidos neste espaço, recorrer-se-á à própria memória para tentar descrever um pouco das lembranças olfativas que repousam no âmago das reminiscências deste escrevente. Reitera-se, que, a despeito de algumas destas lembranças serem individuais, não impede que outras pessoas as tenham, se não na mesma dimensão ou no mesmo grau de intensidade, ao menos de modo a se poder dizer tratar-se de uma memória olfativa comum a diversos indivíduos que viveram à mesma época aqui evocada.

 

A região da cidade onde vive este autor, sempre foi um arrabalde apartado do centro da cidade, umlogradouro quase rural forjado a partir de loteamentos de fazendas desativadas. Ali predominava atividades de criação de gado leiteiro, abate de animais de pequeno porte para abastecer a feira local, até mais ou menos o período final de que se ocupará este texto.

 

Por conseguinte, o cheiro mais comum e mais marcante no quotidiano dos moradores daquele local era o dos currais próximos, muitas vezes, contíguos às residências dos pequenos criadores ali estabelecidos.

 

Área abundante em vegetação rasteira e, nos anos iniciais aqui balizados, ainda nativa, dava às noites e amanheceres um toque todo especial, com aromas deliciosamente indescritíveis, muitas vezes exalados não se sabendo exatamente de onde. Eram as “quaranas”, cujas flores davam ao olfato uma sensação muito agradável, envolvendo os apreciadores com um cheiro levemente adocicado, indicando uma noite estrelada de céu limpo e pronto para o alvorecer de uma nova manhã.

 

Já o luxuriante desfilar de árvores de grande porte, como as jaqueiras, ingazeiras, mangueiras, jambeiros e cajueiros, abundantes em toda a área que vai das margens da linha férrea até perder-se na imensidão da serra alcançada apenas se atravessasse o rio Aramari, dava um toque especial ao ambiente, sobretudo, quando em processo de floradas, indicando abundância daqueles frutos que faziam a alegria dos paladares aguçados da garotada.

 

Pessoalmente, é possível evocar e trazer de volta aos sentidos, aquele cheiro inconfundível de café, que enchia o as casas e se espalhavam pelo ar, fosse ao raiar da manhã, ou no cair da noite.

 

E o que dizer daquele “cheiro” quase nauzeabundo de sebo cozinhando em uma fábrica de sabão, que por muitos anos, marcou o fim da tarde e o início da noite da rua 2 de Julho e suas cercanias?

E os cheiros de fritura de toicinho, de carne de sertão ou de peixes secos e baratos, que eram a base alimentar de grande parte dos moradores da área aqui evocada? Tais aromas enchiam os ares, sobretudo, ao cair da noite, quando os frugais jantares eram preparados e servidos, após um dia de trabalho para os adultos e de traquinagens para as crianças!

 

Não dá para esquecer o cheiro dos fogões de lenha, que logo pela manhã eram acesos, a fim de que, depois de feito o café e cozido o cuzcuz de fubá de milho, durante todo o resto do dia, se pudesse preparar a alimentação da família, para atender as necessidades de cada membro, desde os mais tenros bebês, aos mais idosos anciãos, cujo aroma se perdeu no tempo, na medida em que foram substituídos pelos práticos e versáteis fogões a gás. Aqueles, mesmo nas residências dos mais pobres, acabaram por se tornar inexoráveis, visto que, a lenha que alimentava o velho, rústico e cada vez menos eficiente fogão, em geral, artesanalmente construído de barros ou tijolos, já não mais se podia encontrar com facilidade nas redondezas.

 

Já cercadas para formação de pastos ou reservas de outra ordem, as áreas onde se obtinha a lenha que alimentava o voraz fogão, se faziam cada vez mais escassas, como escasso se fazia o exalar do cheiro de sua combustão.

 

Para falar de modo mais geral, como esquecer o cheiro do “Café O Barão”, que marcou a memória olfativa daqueles que estudaram no Brasilino Viegas, trabalharam no comércio ou venderam na “Feira do Pau”?

 

Era um cheiro luxuriante, convidativo a acercar-se do balcão do local onde se torrava, moía aquele famoso café da cidade, para lá saborear o cafezinho sempre quente que por muitos anos foi prodigamente distribuído aos freqüentadores daquele estabelecimento. Era uma marca indelével de Alagoinhas, o cheiro do “Café O Barão”, sendo torrado. O centro de Alagoinhas, que já não tem mais esta marca, se caracterizava pelo cheiro do café, pelo movimento de manobra dos trens e pela feira que ocupava toda a área que vai desde os muros do prédio da escola Brasilino Viegas até as imediações do prédio da Prefeitura, quando nas sextas e nos sábados, todo aquele espaço estava tomado por grande variedade de mercadorias e de mercadores, além de imiscuírem-se todos os tipos de aromas, para alegria dos olfatos mais apurados ou repugnâncias dos organismos mais frágeis.

 

Outros cheiros poderiam ser aqui evocados, como o de “Seu “Joãozinho da Injeção”, ou o das  bananas cozidas” quando das febres; ou os oriundos dos banhos com sabonetes Phebo, produto raro, que só aparecia em ocasiões especiais; produtos Gessy; cheiros de roupas lavadas, tão comum no dia a dia deste autor; ou mesmo os cheiros de quintais. Mas é já hora de terminar, deixando aberto o espaço para o leitor fazer suas próprias evocações daqueles cheiros que lhes possam remeter aos idos de sua infância e/ou juventude, talvez já distantes como a do escrevente; talvez ainda menos longínqua, quem sabe!

 

Jose Jorge Andrade Damasceno é doutor em História Social e professor da UNEB, Campus II, Alagoinhas.

domingo, 12 de junho de 2016

Republicando - 7


Primeiros passos de uma trajetória – José Jorge A. Damasceno

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 5 de maio de 2013 | 09:29

 

Aqui, uma vez mais, retoma-se a idéia já esboçada há algumas semanas, a partir da qual já foram escritos três arrazoados. Trata-se da idéia de tomar a memória de algumas pessoas cuja trajetória tem relação com a história de Alagoinhas, entre as décadas de 60 e 70, para retirar elementos que permitam refletir sobre a cidade e seu desenvolvimento social, cultural, político e econômico, para com tais elementos buscar compreender a história social de uma cidade que, a despeito de ter se mostrado bastante dinâmica e pujante em um determinado período, sobretudo, quando se fez tronco ferroviário e entreposto, a partir do qual mercadorias, pessoas e idéias eram transportadas para as mais diversas regiões do estado e do nordeste.

 

Isto só era possível pela existência da ferrovia Bahia São Francisco, que nas décadas de 1940 e 1950, chegou ao seu ápice e iniciou seu declínio vertiginoso e, por conta da prevalência da política de rodovias, em detrimento daquela que favorecera a ferrovia, entra em franco processo de estagnação.

 

E na esteira da falência do complexo ferroviário instalado nesta cidade, também ela entra em franco declínio, que atinge as diversas áreas nas quais era essencial a utilização daquele meio de transporte, que permitia a circulação de mercadorias, idéias e pessoas.

 

Também já se salientou que o recurso utilizado para obter as informações com as quais se pretende trabalhar, é o de “documentação oral”, cujo principal pilar é a memória do entrevistado, que no geral é uma memória social, mas que está sujeita ao indivíduo, no seu exercício de escolhas, por meio do qual seleciona o que lembrar, como lembrar e para que lembrar.

 

Nesta perspectiva, cabe ao historiador relacionar os diversos fios das muitas memórias, a partir dos quais ele tecerá a história, que por sua vez, será colocada entre as ferramentas por meio das quais a sociedade pode construir as bases sobre as quais erguerá o seu devir.

 

Para este arrazoado, a entrevista concedida a este escrevente, pelo militar reformado Reginaldo José de Santana, conhecido por todos como Major Reginaldo, será evocada, na medida em que tem uma grande contribuição a dar ao intento que se vem indicando aqui, qual seja: o que se pretende é que, a partir da memória de alguns indivíduos, se busque apreender uma parte da memória social de Alagoinhas.

 

Inicie-se, pois, trazendo ao leitor algumas informações de caráter biográfico, a partir das quais, se pode depreender o que pensa e como pensa o entrevistado, visto que ele é “filho de seu tempo” e fala de um “lugar dado”. Assim, ele inicia respondendo a pergunta do entrevistador, no que respeita ao seu nome, lugar de nascimento e no qual viveu sua infância, bem como onde tomou contato com o mundo das letras e da formação profissional.

 

“Reginaldo José de Santana, nascido no dia primeiro de março de 1940, na localidade de Salinas da Margarida, a essa altura, distrito de Itaparica, no município da /Bahia. Mais tarde foi emancipado. Filho de Acúrci José de Santana e Maria da Glória de Santana. Eles são de Santo Amaro, Bom Jesus, aquela área, que pertenceu a Santo Amaro e, minha mãe, vivia mais em Salvador.Meu pai em Santo Amaro… Bom Jesus dos Pobres… Salinas, encarnação…Fui pra Salvador aos treze anos, estudar,  fiquei com… na casa de uma madrinha e tia; irmã de um médico que esteve em Alagoinhas, que tinha o apelido de “Fumo Fino”.”Doutor Fumo Fino”. Ele com dois metros e dez de altura … Foi médico da Leste”.

 

O entrevistador indaga se fora aquele que o colocara em contato com Alagoinhas, ao que responde o entrevistado:

 

“Não. Mas ele já me falava de Alagoinhas. Inclusive, casou com uma moça daqui, que trabalhava num trapiche. [...]. Mas ele já me falava; eu já conhecia a laranja daqui, me falava do racismo, entendeu? Me falava do racismo; os negros praticamente não podiam freqüentar a Rádio Clube, que hoje é Acra, entendido? Uma cidade grupista, como ainda é, até hoje, não é? O grupo de fulano, [...].

 “Tem até um que chama senadinho, que fica ali defronte o… entendeu? Que agora está em decadência, porque tem todo tipo de gente. Antigamente eram os importantes da classe média, mas agora já tem povão também. [...]”.

 

O entrevistado retoma as informações familiares:

 

“Sim… mais três irmãos, fui pra Salvador estudar, lá, estudei em colégio particular, o Instituto Baiano de Ensino, depois Severino Vieira da Bahia. Estes foram os dois colégios, pelos quais eu passei.

 “Depois, trabalhei no comércio, uma temporada; cheguei a ser gerente de uma firma pequena; e fui auxiliar de escritório (na Mongeroth Leone, onde soube da notícia do senhor Mâncio Pimentel. Muito dinheiro fui buscar no banco, com os companheiros, para mandar para o senhor Mâncio Pimentel pagar o fumo em Alagoinhas e, Chiquinho, em Feira de Santana; e tive também notícias de seu Júlio Carmo , pai de Juscélio, que era um dos agentes fumageiros importantíssimos daqui. Ele já não estava mais em ação não. Ele já estava parado.Mas, Mâncio Pimentel estava em ação.

 

Agora, já mais adiante, inicia a descrição de sua inserção profissional:

 

E aí,” fui pra…. pra polícia; um amigo meu me deu notícia de que havia um concurso para a polícia, que a gente (…) podia fazer o concurso. Eu já era contador. Formei-me em contabilidade pelo colégio da … o Instituto Baiano de ensino mas, no curso médio, naquele tempo.

 

“E, fui pro Exército; servi o Exército em 1960, foi quando passei aqui, em Alagoinhas, indo pra Paulo Afonso, minha unidade foi Paulo Afonso, onde eu era o dois meia sete, do pelotão de Petrechos  leves, na primeira companhia  independente de fuzileiros, QMP77101. Este é meu número militar.

 

“E ao passar aqui,eu vi um jardim bonito,cheio de dálias, rosas e, aquelas árvores cortadas como uns animaizinhos; uns tipos de animais. E aquelas palmeiras imperiais majestosas… Lugar bonito, o centro era bonito, meu amigo…

 

E eu disse a um amigo meu, de Exército, eu digo: Ainda vou morar nesse lugar”.

 “Ele disse: deixa de besteira, meia sete… deixa de bobagem… Eu digo: oxente, eu vou morar nesse lugar.

 

Neste ponto, o entrevistado narra, como conseguiu concretizar o vaticínio que ele fizera a respeito de seu intento de vir viver em Alagoinhas:

 

“E, coincidentemente,  eu fui pra polícia militar, levei dez meses, eu fui cabo (… e sargento, no mesmo dia, no mesmo boletim. E fui orador

 da minha turma.

 

“Depois fiz curso de monitoria, não me deixaram sair da escola onde me formei, eu fiquei como monitor, daí com três anos, eu vou para a escola de oficiais, faço a primeira tentativa, perdi matemática, e aí, fui tomar um curso com o professor Hilton, lá na Liberdade. Grande professor! E consegui, no exame seguinte, passei. “Passei quatro anos na escola de oficiais. Quando é na hora de sair da escola, um amigo meu, que hoje é advogado, major também, Amadeu Gesteira do Nascimento, o pai dele morreu, ele era arrimo, praticamente, o chefe da casa, e, meu lugar era Feira de Santana, pela minha classificação. E a dele, era Alagoinhas.

 

“Ele aí veio me pedir: Reginaldo, dá pra você abrir mão de sua classificação de ir pra Feira, e eu ir pra seu lugar? Aliás, de eu ir pra Feira e você ir pra o meu lugar? Então eu disse: onde é seu lugar, rapaz? – porque é muito amigo meu; eu gosto muito dele e me parece que ele também de mim, a gente se entende muito bem -; ele aí disse: é Alagoinhas. Eu digo: como rapaz? É. Eu digo é isso mesmo, é a voz do anjo! Eu disse: eu quero é agora. Vamos lá em cima no comando pra fazer as tratativas e tudo… Oxente… Aí o Coronel trocou, eu vim pra Alagoinhas, ele foi pra Feira.

 

“Aí começou a minha luta dentro da corporação, sempre escola e instrução, instrução, instrução, instrução….  e, chegou a hora de vir para um Batalhão. Foi o primeiro e único que eu conheci. Foi o quarto Batalhão da Polícia militar.

 

“Aqui, fiz todo meu serviço, quase anônimo, Estou vendo esta violência terrível, passeata, isso e aquilo, no meu tempo, não tinha nada disso e, Alagoinhas não era tão pequena assim.

 

Aqui ele elabora uma explicação do que aconteceu em Alagoinhas, entre o tempo balizado em 1971, quando ele chega para servir no Batalhão da Polícia Militar e o instante em que falava aos entrevistadores:

 

“O que é que houve em Alagoinhas? Uma redistribuição populacional, e um aumento do espaço, no mapeamento predial. Por quê? Nosso sistema é o sistema português, muito comum ainda, na área rural: em uma casa, o pai, a mãe, o tio, a avó, o avô, o primo…, todos numa casa. Com a chegada desses conjuntos, o que é que aconteceu em Alagoinhas? Alguém conseguia uma casa, saía com o filho; o outro conseguia e… saía…  e, a população foi se tornando, o que? A família rarefeita; cada uma indo para seu lugar e assim, Alagoinhas cresceu”.

 

E o major Reginaldo, prossegue dando informações valiosas, que permitirão ao pesquisador formular questões que ensejem um aprofundamento de estudos de comportamento, mudanças no que respeita ao modo de ser e pensar do alagoinhense, na medida em que ele toma contato com uma determinada realidade geopolítica e social, que ele vê ser modificada e acompanha alguns dos desdobramentos decorrentes de tais mudanças. Diz ele:

 

“Cheguei aqui no dia primeiro de fevereiro de 1971, pelo carro de seu Altino Rocha, empresa, Cidade de Alagoinhas. Saltei ali, defronte ali, onde hoje é o fórum, tinha um pé de eucalipto grande; o batalhão era ali, onde é ainda hoje. 

Totalmente diferente, mas era ali

 

“Nesse dia estava de serviço o Tenente Venceslau. E aí, me apresentei a ele,  e tal; eu era aspirante. Viemos pr’aqui três aspirantes: Ivanilson Oliveira Santos, que hoje mora na praia, comandante do quinto batalhão; Capitão Renivaldo Pimentel Carvalho, que está na prefeitura, entendido? E eu; Reginaldo José de Santana.

 

 

Republicando - 6


Os primeiros passos de uma trajetória – “Sou dona do meu nariz. Não vou ser nomeada, mas não vou me dobrar a político…” – José J. A. Damasceno

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 28 de abril de 2013 | 09:20

 

Conforme foi indicado nos dois textos anteriores, a memória da professora Iraci Gama seria a base dos arrazoados publicados neste espaço, nos quais, uma parte da história de alagoinhenses pode ser contada tomando-se a perspectiva da interlocutora, cujas lembranças estão registradas em diversas entrevistas que concede aos que a procuram para falar de sua trajetória pessoal, a partir da qual se pode construir uma parte da memória coletiva da Alagoinhas dos anos 60 e 70, período que mais de perto interessa ao autor destas linhas.

 

Do mesmo modo que um dado historiador elege um período para tomar como referência, os entrevistados acabam por selecionar o que lembrar, como lembrar e, sobretudo, o que esquecer. É significativo o fato do pesquisador que utiliza a técnica de documentação oral lidar com “arquivos vivos”, na medida em que o entrevistado, ao rever alguma nota, ou reler a entrevista concedida, depois de transcrita, pode rever, reformular, remover informações fornecidas, na medida em que tem a chance de refletir sobre o que disse, sobre as circunstâncias do que disse ao entrevistador, possibilitando correções e reparos.

 

É precisamente o que acontece no caso específico da entrevistada que tem sido alvo das considerações aqui publicadas. No mesmo dia em que se postou o arrazoado no qual este autor traz ao leitor fragmentos da memória a partir dos quais a professora Iraci Gama narra sua primeira participação em uma atividade política como oradora e descreve sua primeira participação em uma campanha eleitoral (21 de abril de 2013), um texto de sua própria lavra, é publicado, neste mesmo espaço, com o título de “Puxando pela memória: seu Cabral”, no qual ela reformula pelo menos duas informações que houvera passado para diversos entrevistadores.

 

A primeira reformulação feita diz respeito à pessoa que não pudera comparecer ao evento, fato que abriu-lhe a possibilidade de nele tomar parte. Ao invés de ter sido a professora Aidée Amorim, aquela a quem Iraci Gama substituíra como oradora, tratava-se, da também professora, Agal Máxima Conceição. Durante as entrevistas gravadas por este autor, o nome de Agal sempre apareceu; mas como tendo sido a primeira das oradoras. Portanto, como tendo comparecido ao evento.

 

A segunda informação que Iraci reformula, logo ao abrir o mencionado texto, é o ano em que ocorre a greve dos ferroviários, situada não mais em 1959, como dissera nas várias entrevistas, mas em 1960, conforme assevera no excelente texto no qual discorre sobre o Senhor Cabral, que ela considera seu primeiro professor de política, excetuando-se, evidentemente, o seu avô Pedro da Gama e seu tio, Zeca da Gama.

 

Logo ao abrir o seu corolário de reminiscências infanto-juvenis, a professora Iraci Gama assevera que:

 

“A minha vida tem sido repleta de situações extraordinárias, que hoje reputo contributivas e fundamentais na minha formação pessoal e política. Ainda na infância participei de algumas greves dos ferroviários, levada pelas mãos do meu tio Zeca da Gama e, por esse intermédio, estreei falando em público, já adolescente, em substituição à profª Agal Máxima Conceição, na greve de 1960”.

 

Isto significa que, ao encontrar o texto de sua primeira intervenção pública em uma greve de trabalhadores, identificou ter havido uma discrepância entre o que estava registrado por ela em suas anotações, há muito esquecidas em meio ao seu turbilhão de papéis e, aquilo que retivera na memória e, a partir dela transformara em informação passada inclusive, ao texto que ela escrevera, como apresentação ao livro da professora Aidée Amorim.

 

Assim, o que se deve levar em conta, não são os detalhes inarredáveis daquilo que se lembra. Mas sim, o que se lembra. O lembrado é o centro da atenção do pesquisador que toma a memória como referência. O objeto da lembrança da professora Iraci é a sua primeira intervenção pública em uma atividade política.

Isto aparece muito claro em todas as manifestações orais e/ou escritas, feitas aos seus diversos interlocutores. O que ela traz ao conhecimento do pesquisador é o fato de que seu processo de iniciação política se deu em um determinado tempo de sua vida e, sob a influência de um determinado movimento grevista de trabalhadores ferroviários, em luta por melhores condições de trabalho e salários.

 

Assim pensando, pode-se retomar a narrativa da professora Iraci a respeito de sua participação na campanha que elegeu Murilo Cavalcante para o seu primeiro mandato como prefeito de Alagoinhas.

 

Desta vez, aparece em sua memória, um dos desdobramentos de sua atuação na campanha eleitoral, na condição de líder estudantil. Retome-se a narrativa, do ponto em que foi interrompida, quando tece considerações acerca do momento político que o País vivia no início dos anos 1960, quando asseverava que:

 

“Eu me lembro quando a gente ia pra rua fazer essa campanha pra Murilo… Veja, dentro do Santíssimo era proibido falar de política, era proibido sair… vir pra rua acompanhada… Não se acompanhava… Nem o pai acompanhava a filha, quando estava fardada, não era permitido e, nós fundamos esse comitê pró Murilo Cavalcante, com nome, lá na frente e tudo, ali no centro da cidade, a casa vizinha a Zé Maia, Zé Maia que era o chefe da família Maia, considerada a família de “sangue azul” de Alagoinhas, a família mais nobre de Alagoinhas, no campo da direita e, nós estávamos ali, bem de junto dele, provocando, ameaçando, participando de noite de todos os comícios e tal…

 

“Então, isso era uma prova de que a democracia que o País vivia, influenciava e dava para aquelas pessoas que tinham aquela liderança aprendida ali no meio dos trabalhadores ferroviários,  dava essa, como vou dizer, ousadia, de achar que aquilo era o normal: de poder dizer a sua palavra, de fazer a sua reivindicação”.

 

Quando Murilo ganhou as eleições, os Azi … Zequinha Azi tinha uma casa, ali na hoje Praça da Bandeira – nesse tempo não era Praça da Bandeira; passou a ser Praça da Bandeira, com Judélio; Judélio que transformou aquele largo ali, em Praça da Bandeira, na década de 70, no primeiro governo dele; então, eu estou falando de dez anos antes. Quando passou … Sim, então a casa era a Pioneira do Lar. Era uma casa que vendia produtos eletrodomésticos (…), [...].

 

“Nesta loja, a Pioneira do Lar, se davam os encontros políticos. E eles mandaram me chamar. Você vê: uma pobretona, que não tinha onde cair morta, mas era a liderança estudantil que tinha fundado o comitê estudantil pró Murilo Cavalcante; e que fazia aqueles discursos; e que afrontava Dilce Maia, … Então, mandaram me chamar.

 

“Zequinha Azi e Jairo. Queriam que eu assumisse o compromisso com eles, de não fazer mais campanha pra Murilo. E eu disse pra eles que …  não tinha como assumir este compromisso com eles, porque eu estava assumindo … tinha assumido a campanha pra Murilo, em função da experiência vivida com ele, junto aos ferroviários; era essa prática dele, que nos levava a este tipo de postura. Enquanto ele tivesse essa postura, nós estaríamos com ele.

 

Conforme segue em sua narrativa, os homens da casta política local na época, talvez surpresos por aquela menina atrevida não lhes ter dado ouvidos, reforçaram para ela o que outro membro de grupo político importante da cidade, já houvera lhe dado a conhecer. Diz ela que eles teriam assim reagido:

 

“Ah, mas você não pode fazer isso, porque você sabe que isso vai lhe trazer, como conseqüência, não ser nomeada.

 

Ao que ela retruca:

 

“[...], ah, isso eu já sei, porque a professora Dilce já me disse, ainda dentro da sala de aula. … Oh, isso já tinha passado a eleição. … Já me avisou dentro da sala de aula, que eu não vou ser nomeada, então…, pra mim, não é novidade”.

 

E conclui a narrativa:

 

“Agora oh, (aí eu batia o dedo no nariz, viu?). Sou dona do meu nariz. Não vou ser nomeada, mas não vou me dobrar a político… Não sei mais dizer direito, o que foi que eu disse… mas devo ter dito uns desaforos, a eles, batendo o dedo na ponta do nariz, pra não me dobrar a eles, e, saí de lá, tendo mais um inimigo porque, como se não bastasse os Maia, agora os Azis, que tinham o; porque tinham o poder econômico e o poder político, porque Zequinha Azi quando saiu da prefeitura como prefeito, ele foi deputado estadual.

Republicando - 5


Os primeiros passos de uma trajetória:1959-1962 – “Quando teve esta greve, que eu tive a minha primeira fala, [...], eu era ainda, quarta série de ginásio”.

 

José Jorge Andrade Damasceno

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 21 de abril de 2013 | 18:32

 

Conforme já foi dito ao paciente leitor, aqui se prossegue no intento de trazer à lume, algumas facetas da trajetória social, política e cultural de alguns alagoinhenses, que vivenciaram ou ainda vivenciam a história da cidade, na medida em que contribuem com o esforço empreendido por estudiosos e pesquisadores, no sentido de uma compreensão do processo histórico da cidade.

 

Ainda uma vez, a ainda pacata Alagoinhas do final da década de 1950 e do início da década de 1960, será mostrada a partir da memória da professora Iraci Gama, de quem este autor recolheu grande número de informações preciosas, acerca daquilo que ela vivenciara, que estão armazenadas em gravações de entrevistas, nas quais ela desfila suas lembranças com grande desenvoltura, permitindo ao pesquisador interessado em conhecer melhor o tempo “lembrado”, desenvolver análises do processo histórico, identificar questões de grande relevância a serem postas, com o fim de refletir no passado vivido pela entrevistada e sobre o seu impacto no presente que é vivenciado pela atual geração.

 

O lapso de tempo aqui evocado situa-se entre período que se inicia em 1958 e se estende até 1962. O Brasil experimentava um processo de transformações culturais, políticas, sociais e econômicas tão volumoso e abrangente, indo desde a “Bossa Nova”, passando pela fabricação e venda do “Fusca”, alcançando o programa de metas do presidente que pretendia levar a capital federal para o Brasil Central. É também o tempo em que as ligas camponesas são tidas como uma “ameaça”, sobretudo no sertão pernambucano e paraibano, na medida em que seus idealizadores, organizadores e principais líderes, preconizavam a “reforma agrária”, assustando os grandes latifundiários, ao ponto de verem nas ligas todos os fantasmas que sempre lhes tirara o sono: comunismo, socialismo, revolução no campo, etc., etc.

 

É também o tempo do surgimento de novos e grandes líderes políticos e sociais, na medida em que o movimento operariado urbano ganha força, lastreado em greves de vários setores da economia, o que acaba incorporando-se ao medo do movimento camponês, colocando as elites políticas, sociais, econômicas e partidárias, em pé-de-guerra contra a frágil democracia instaurada após o “Estado Novo”.

 

Os episódios protagonizados pela professora Iraci, quando se encontrava entre o fim do curso ginasial e o fim do curso pedagógico, cuja conclusão a possibilitaria atuar como professora primária acabam por fazer parte de seu processo de formação política, na medida em que atuam como elementos de lapidação de seu perfil de liderança, caracterizado por uma atuação sempre intensa e iminentemente voltada para o esforço em propiciar às pessoas em particular e à sociedade alagoinhense em geral, as ferramentas políticas e culturais no sentido de promover a justiça social e a equidade.

 

Dê-se-lhe, pois, a palavra para que a partir de sua memória e de sua visão de mundo, relate, ela mesma, situações que vivenciou. Convém salientar que a memória não é neutra. Ela é fruto de escolhas. Há aquilo que se quer lembrar; aquilo que não se quer lembrar; aquilo que é lembrado, mas que é silenciado, deliberada ou forçosamente. Neste sentido, faz-se necessário ter sempre em conta que, apesar de grande parte da memória individual ser ao mesmo tempo memória coletiva, ou social, ela não está isenta de reconfigurações, reelaborações ou reacomodações.

 

Dito isto, crê-se não restar dúvidas de que a memória da professora Iraci, muitas vezes será memória de vários outros indivíduos, constituindo-se uma memória coletiva. Mas, ao entremear-se com outras fontes, também passíveis de elaborações e reelaborações, chega-se à percepção do processo histórico, eivado de mediações entre as diferentes memórias e como elas foram apreendidas e reelaboradas com o passar do tempo e o contato com os desdobramentos posteriores ao vivido e ao lembrado.

 

Em entrevista gravada em setembro de 2011, antes que fosse iniciada a conversa com a professora Iraci Gama, deu-se-lhe para que lesse o texto introdutório do livro “1958: o ano que não devia terminar”, escrito pelo jornalista carioca Joaquim Ferreira dos Santos, com o fito de saber-se e em que medida aqueles fragmentos da memória do jornalista, encontrava ressonância em sua memória e, se ensejaria reavivar algum registro que estivesse, por assim dizer, adormecido.

Depois de tecer algumas considerações sobre o que leu e, salientar que grande parte dos fragmentos de memórias listados pelo autor da obra, também povoavam a sua, observando que alguns outros ele não fizera menção. Talvez as omissões se devessem precisamente às escolhas feitas em torno de “o que lembrar”, “para que lembrar”; e ainda outra: “o que dizer”, ou “o que silenciar”, sobre o que fora “lembrado”.

 

Assim, desta entrevista foram separados dois trechos, considerados pelo autor destas linhas como elementos chave para o seu propósito nesta série. O primeiro deles, a passagem na qual a entrevistada tece considerações gerais sobre o momento político local e Nacional, que, segundo sua percepção, estava lastreado em uma democracia onde a liberdade de expressão e associação era notável, o que permitiu sua inserção, ainda que precoce, em movimentos sociais e políticos daquele período, aparecerá já neste texto. O segundo, onde o destaque é um dos desdobramentos de sua participação ativa na campanha eleitoral que marcou o seu último ano como colegial, será apresentado no próximo arrazoado.

 

Em palavras claras, algumas vezes cheias da empolgação que caracteriza o seu peculiar modo de exprimir-se, diz a professora que:

 

“[...]. Lá dentro das Freiras, a gente já está criando um Grêmio Estudantil. O que significava a vontade de esses estudantes se pronunciarem. Os discursos eram feitos, de cima ali do muro. O muro até hoje tá lá; aquele pedaço inicial, ali na frente; ali não mudou nada. Então, era ali que a gente subia pra fazer os discursos, não é? [...].

 

“Isso 58. Em 59, a gente vai ganhando mais … como é que eu diria … vai ficando com o pescoço mais duro, porque já está encerrando o curso ginasial. Naquele tempo, quando se terminava o curso ginasial, se fazia festa. [...] era uma coisa … era uma formatura, terminar um curso ginasial. [...].”

 

“[...]. Então, nesse período a gente vai se fortalecendo. 59 já teve uma greve muito forte de ferroviários, com a presença de Murilo; o próprio dirigente da Associação .. não estou me lembrando o nome agora, mas eu tenho lá um livreto da Associação dos Ferroviários… Diógenes. Diógenes … Não. Não me lembro do outro nome (…)”.

 

A entrevistada assevera que “eram pessoas que vinham constantemente aqui. Alagoinhas era o foco. Era a sede. Muitas vezes, o trabalho aqui, rendia mais, do que em Salvador. Talvez porque o pessoal de Salvador tivesse outras áreas de atuação.

 

“Mas aqui, o foco no ferroviário era muito grande, porque você tinha o ferroviário que estava dirigindo a estação, como os agentes de estação, os escriturários, os telegrafistas; tinha o pessoal nas oficinas, que era a grande produção, tanto Alagoinhas quanto Aramari, era a produção do trem, porque era o conserto, o fabrico de locomotivas e de vagões; e ainda tinha o pessoal e todo apoio para o trem: os manobristas, os chefes de trem e, por aí vai.

 

“Então, este pessoal todo, ele se encontrava aqui; tinha o depósito; a área do depósito também era uma área muito forte; e esse pessoal se encontrava aqui em Alagoinhas e, tomava as decisões. Alagoinhas tomava as decisões até Sergipe. [...], como havia as reuniões e o pessoal vinha de Sergipe, pra cá. Também pela facilidade do trem, porque você se deslocava de uma capital para a outra. Mas aqui, você já tomava todas as decisões, não precisava ir para Salvador.

 

“Então, Alagoinhas era esse ponto de encontro e esse ponto forte de encontro do mundo ferroviário e eu acompanhava tudo isto, participava dessas discussões todas. Quando teve essa greve que eu tive a minha primeira fala, substituindo Aidée Amorim, eu era ainda quarta série de ginásio.

 

Quer dizer, esse envolvimento com os ferroviários em si, com os trabalhadores de forma direta, com as pessoas que conduziam o movimento, que discutiam ali, como era a greve e, também na hora das decisões finais, porque a gente vinha pra rua. A finalização da greve, ali na frente da estação de Alagoinhas, o Murilo lá em cima…  Murilo, Diógenes e outros, participando dessas discussões aqui, aqueles discursos inflamados, aí, você…”

 

Como se estivesse fazendo uma análise retrospectiva, cuja base é a sua própria experiência recuperada das lembranças, Iraci assegura que:

 

“Esse período que foi um período fantástico no Brasil, porque era período de liberdade, não é … a liberdade foi ficando tão forte e a gente tinha tanta ousadia com essa liberdade, que o governo americano não agüentou e começou a ir trabalhando lá e, botando os “milico” aqui… Aqui somente não, aqui na América Latina toda, pra tomar a frente e acabar com a democracia… Mas era um … era um período de muita democracia (…). Um período bonito, bonito, forte assim… bom de se viver.

 

E arremata, em um tom mesclado de nostalgia e orgulho daquilo que vivera, quando dava os primeiros passos no seu processo de formação política e cultural:

 

“Eu me lembro quando a gente ia pra rua fazer essa campanha pra Murilo… Veja, dentro do Santíssimo era proibido falar de política, era proibido sair… vir pra rua acompanhada… Não se acompanhava… Nem o pai acompanhava a filha, quando estava fardada, não era permitido e, nós fundamos esse Comitê Pró Murilo Cavalcante, com nome, lá na frente e tudo, ali no centro da cidade, a casa vizinha a Zé Maia, Zé Maia que era o chefe da família Maia, considerada, a família de “sangue azul” de Alagoinhas, a família mais nobre de Alagoinhas, no campo da direita e, nós estávamos ali, bem de junto dele, provocando, ameaçando, participando de noite de todos os comícios e tal…

 

“Então, isso era uma prova de que, a democracia que o País vivia, influenciava e dava para aquelas pessoas que tinham aquela liderança aprendida ali, no meio dos trabalhadores ferroviários, dava essa, como vou dizer, ousadia, de achar que aquilo era o normal: de poder dizer a sua palavra, de fazer a sua reivindicação”.

sábado, 11 de junho de 2016

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Iraci Gama Santa Luzia - republicação


Puxando pela Memória: “Seu” Cabral –
Iraci Gama Santa Luzia

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 21 de abril de 2013 | 20:53

 

A minha vida tem sido repleta de situações extraordinárias, que hoje reputo

contributivas e fundamentais na minha formação pessoal e política. Ainda na

infância participei de algumas greves dos ferroviários, levada pelas mãos do meu

tio Zeca da Gama e, por esse intermédio, estreei falando em público, já

adolescente, em substituição à profª Agal Máxima Conceição, na greve de 1960.

 

Conheci várias pessoas importantes e vivi momentos especiais, com algumas delas,

como as três professoras primárias: Maria de Lourdes Saback, Maria José Bastos –

Zezé e Ana de Oliveira Campos – Noquinha. Conheci alguns políticos, como

Fernando Santana – Deputado Comunista de vários mandatos que, no comício de

campanha de Murilo Cavalcante para Prefeito de Alagoinhas, na Rua 2 de julho, em

1962, após minha fala, tomou o microfone e disse, com sua voz possante, dentre

outras coisas: “(…) ainda ouviremos falar muito dessa jovem, pois ela vai muito

longe (…)” e me levantou do chão, num abraço inesquecível.

 

Conheci também algumas figuras humanas, típicas, como “Dedé doido” que vinha

todos os dias à minha casa conversar com meu avô, pedia pimenta malagueta e a

machucava, com uma pedra, no parapeito da janela. Comia e perguntava: “Seu

Pedro”, se a gente amarrar uma escada na outra, um bocado de escada, a gente

chega no céu? E meu avô, com toda paciência para ouvir seus questionamentos,

conversava com ele, assim como conversava com outras pessoas menos sociáveis.

Havia alguns vizinhos de nossa casa que vinham a essa mesma janela, para falar

com meu avô sobre diferentes assuntos, como “Seu” João Pereira – fã de Getúlio

Vargas; “Nenenzinho”, filho de dona França – fã de Luiz Carlos Prestes – que

dizia “eu sou uma brasileira russa”; “Seu” João Batista que falava sobre

religião, sobre espiritismo, dentre outros.

 

Mas, sem sombra de dúvidas, uma personagem desse tempo, a cada dia se agiganta,

no meu interior, pois, com o passar do tempo e pelos contatos com pesquisadores

de nossa história, fomos descobrindo a grande importância desse meu “guru” da

infância: “Seu” Cabral. Joaquim Cabral de Souza era um sapateiro “remendão” que

morava na Rua 2 de julho, perto da minha casa, bem em frente ao trecho da

entrada para a Oficina São Francisco. A casa era muito grande e a primeira sala,

a sala de entrada servia de “ateliê” do morador que aí colocava todo seu

material de trabalho.

 

No centro dessa sala, uma cadeira de madeira, com encosto e assento de couro em

tiras, era o local onde esse homem passava o dia sentado, na atividade rotineira

de consertar calçados. Sempre sem camisa, exibia um tronco forte – apesar da

idade denunciadora de alguns janeiros – e de muita resistência, provocada talvez

pelo movimento repetitivo e constante do martelo, na sola do sapato sobre aquele

“pé de ferro” que ele usava como suporte para o serviço de colocação de um novo

solado, de meio solado a famosa “meia sola” que renovava os calçados já usados.

 

Lembrando, depois de tantos anos, o que acontecia naquele espaço, vem uma

reflexão: como é que aquele homem aguentava o peso da batida do martelo sobre o

calçado apoiado no pé de ferro que ele colocava sobre a coxa esquerda, perto do

joelho onde punha uma cobertura protetora de um pedaço de couro? A perna recebia

toda a carga do peso da batida do martelo, para juntar o novo solado lambuzado

por aquela cola de cheiro forte – a cola de sapateiro ou sobre pequenos pregos

que ele usava para reforçar a ligação do novo material com a base do calçado que

ele consertava, encaixado no pé de ferro. Como é que aquele homem aguentava

tanta pancadaria, todo dia, o dia todo? É verdade que à frente dele, havia uma

bancada, mas era usada para guardar alguns materiais importantes, em divisões

próprias, como: cola, água, pregos, brochas, ferramentas indispensáveis no

trabalho do remendo. Mas batida de martelo, só mesmo sobre o joelho do

sapateiro!

 

Era, portanto um homem forte, na casa dos cinquenta anos, de pele curtida e

escura. Pela cor da pele seria negro, mas o cabelo não era encarapinhado, pelo

contrário, era muito liso – um negro, de cabelo bem liso, o que caracterizava a

designação “cabo verde”. E o corte de cabelo, muito comum nesse tempo, era a

cabeleira inteira – o fio reto da testa até o pescoço, com costeletas curtas e

cangote bem aparado.

 

Ele gostava assim. Quando sentava na cadeira para trabalhar, de manhã, estava

pronto – rosto bem lavado, cabelo bem penteado, bem assentado. Não me lembro de

ter visto, uma só vez, um único fio de cabelo suspenso, e cabelo assanhado,

jamais. Esse tipo de corte só serve mesmo para quem tem cabelo liso e eu tive o

prazer de conviver com uma cabeleira assim, naquela minha infância – a de Zeca

da Gama que me deixava pentear constantemente, sempre que pedia, inclusive

fazendo trança, só não me permitia colocar laço de fita nas pontas. Eu prometia

concordar e por isso, ele sentava no banco eu ficava de joelhos, por traz dele,

fazia e desfazia as tranças (…) e ele dormia.

 

Em “Seu” Cabral, o cabelo liso, bem penteado, da cor da pele era contraste que

chamava atenção, à primeira vista, quando ele estava sério. Mas quando dava

risada, um outro traço o distinguia: a gengiva bem corada, cenoura, sem um só

dente. E hoje dá para pensar: por que será que ele não tinha dentes? Opção,

falta de recursos, displicência, simplicidade? Quem sabe tudo isso misturado. E

ele ria livremente, enquanto conversava com quem estava à sua volta, sem

qualquer preocupação com a falta de dentes que dava à fisionomia daquele homem

simples, o toque de naturalidade de sua alma livre e ansiosa por mais liberdade

para todos. A preocupação não estava com a boca, mas com a palavra que saía

dela!

 

A cadeira do sapateiro ficava no centro da sala, em frente à janela da rua, o

que permitia a visão desse homem, do outro lado da linha do trem. Em volta da

cadeira, muitas tiras de pneus usados em pequenos pedaços ou pedaços grandes e

até pneus inteiros, além de tiras e pedaços de couro curtido. Cabe lembrar que,

nessa época, os solados dos sapatos, de um modo geral, eram de pneus, inclusive,

os escolares, como aqui, em Alagoinhas, o nosso sapato da farda diária do

Colégio Santíssimo Sacramento, o que o tornava muito pesado, desagradável. Os

sapatos, sandálias, chinelos, aguardando conserto, se misturavam aos materiais

espalhados pelo chão da sala. E, por cima de tudo, em folhas soltas, para

leitura de diferentes assuntos, conforme o interesse de quem chegava, estava o

jornal.

 

O jornal “A Tarde” comprado diariamente era o elemento indispensável para aquele

homem e sua comunidade. Por isso, não só o jornal do dia ficava à disposição,

mas também o dos dias anteriores. Dinheiro era coisa rara naquela casa, porque

os “remendos” custavam pouco e “Seu” Cabral não cobrava de famílias mais pobres… 

O do jornal, porém, era sagrado! viver era verbo de difícil conjugação por

aquela família e dependia, muitas vezes, de dona Cota – mulher de Cabral –

especialista em transformar cabelo crespo em liso, pelo processo de alisamento a

ferro quente. A vizinhança (e até gente de longe) entregava a sua cabeleira à

competência de dona Cota que o espichava nos moldes da época e todos elogiavam a

transformação efetuada.

 

O que a chapinha faz hoje com o poder da eletricidade, dona Cota fazia naquele

tempo com a força dos braços num processo que pode ser assim descrito: uma

porção pequena de cabelo apoiado num pedaço de pano em várias dobras, para

evitar quentura maior na mão esquerda, enquanto o ferro esquentava no fogão a

carvão e, na mão direita, o ferro, fechado, deslizava sobre aquele pedaço de

cabelo puxando-o delicadamente, mas com firmeza. Depois, com o ferro aberto, a

porção do cabelo entre as duas chapinhas, segurava e puxava aquele pedaço de

cabelo da cabeça às pontas até que ele ficasse completamente liso.

 

E essa porção de cabelo já pronta vai sendo colocada sobre as outras, enquanto

ela põe novamente o ferro sobre a brasa, a esquentar, para alisar novo pedaço

que ela prepara cuidadosamente, até espichar toda a cabeleira. Esse trabalho

começava sempre pela base do cabelo – o cangote e ia subindo aos poucos,

contornando toda a cabeça. Claro que a cabeça ficava quente, mas o cabelo

amansado, mais fácil de pentear, compensava o calor daquele instante.

 

Isso acontecia na área próxima à cozinha, nos fundos da casa. Na frente, na sala

do sapateiro, ele gastava saliva e sorriso, conversando com seus clientes, seus

amigos, seus ouvintes, seus “aprendizes”. No meio desses, eu me incluo, porque

acompanhava meu avô, todos os dias, até a casa de “Seu” Cabral para aquela

conversa. O meu avô já tinha certa idade e não enxergava direito e a criança que

vinha pela sua mão, era guia e companhia e, sem querer, tornou-se testemunha do

modo de vida desse homem que, para ela, era um sapateiro que falava de política

e vivia cercado de gente que ela já conhecia da convivência familiar ou ia

conhecendo naquele ambiente.

 

Ferroviários e sindicalistas chegavam, entravam, pegavam aquelas páginas de

jornal, faziam leitura de determinadas matérias ou trechos específicos, sempre

para provocar discussão ou reforçar a discussão já iniciada. Era um entre e sai

de gente, sem licença, nem interrupção. Quem entrava, ficava de pé, encostado na

parede, ou de cócoras ou sentado no chão, quando o cansaço aumentava. Isso

mostra a escassez de apoio logístico para quem chegava, pois além da cadeira do

sapateiro, só havia uma outra – a do meu avô. Eu mesma ficava de pé ou de

cócoras ou sentada no chão, como todos os visitantes, até que recebi um presente

de “Seu” Cabral: um banquinho feito com pedaços de madeira e tiras de pneu.

 

Ele ficava encostado na parede junto da cadeira do velho e saía dali somente

para a “dona” sentar. Certamente essa foi a primeira “carteira escolar” em que

sentei e aquela sala o primeiro espaço de aula explícita, na minha vida. Só não

posso dizer que “Seu” Cabral foi meu primeiro professor, porque Deus já me havia

dado o privilégio de viver numa família, onde a prática de vida aliada à

palavra, aos conselhos, era um manancial de ensinamentos, e principalmente pelo

exemplo, é que fui aprendendo.

 

E o chefe dessa família era amigo de “Seu” Cabral. Amigo, mesmo, porque, de vez

em quando, ele entrava no quarto, trocava os chinelos, às vezes a camisa, pegava

o chapéu e ouvia da minha avó: “já vai Pedro?” E ele respondia: ”Vou ver

Cabral”. Eu estranhava aquela resposta, porque ele não me levava. Aquela não era

nossa viagem diária, constante. Ele ia sozinho. Só depois fiquei sabendo que ele

ia à delegacia, quer dizer, ia primeiro ao prefeito Pedro Dórea – seu compadre –

pedir por aquele “preso” que era seu amigo e, com a ordem da autoridade, voltava

com o “preso” para casa. Só agora depois de adulta e pelas lições dos

pesquisadores, entendi o que se passava – “Seu” Cabral era comunista e

perseguido político que, quando a autoridade policial queria, o levava, sem

qualquer explicação ou justificativa, para trás das grades. E voltava sempre

para aquela mesma cadeira de sapateiro, no meio de botas, sapatos e chinelos

velhos, recortes de couro e pneus, e folhas abertas de jornais, para continuar

sua missão de libertador de mentes.

 

A escola de “Seu” Cabral teve muitos alunos. Os ferroviários faziam ponto no

sapateiro, para atualizar as informações, saber das novidades, fazer

questionamentos, interagir. A Oficina de São Francisco apitava às onze horas

para a saída dos operários, doze e trinta fechava o portão novamente para o

turno vespertino, liberando todos os operários às dezesseis e trinta. E esses

horários controlavam as visitas ao “professor”. Alguns paravam lá às onze horas,

outros preferiam almoçar e chegar antes do horário de fechar o portão e outros,

ainda, optavam pela parte da tarde, porque ficavam com mais tempo para esses

contatos.

 

Verdade é que, entre o portão da Oficina e a sala de aula do sapateiro,

formava-se uma linha imaginária – uma estrada do conhecimento que atraía esses

ferroviários e os mantinha ligados e “viciados” em discutir a situação política

do país, o que os afinava com as questões gerais e específicas do operariado

brasileiro e internacional. Para nós, que acompanhávamos essa movimentação, de

perto, muitas vezes sentada no banquinho de tira de pneu, a lição maior era do

valor da diversidade, pois ali todos tinham vez e voz e a divergência acontecia

em clima de respeito. O jornal era lido e comentado, indistintamente.

 

Às vezes, alguém dizia: ““Seu” Pedro,  pede pra menina ler”. E eu lia, com

desenvoltura, palavras que nunca tinha visto/ouvido na minha escola primária e

assim ia enriquecendo o meu vocabulário com aqueles textos e seus significados.

Foi aí na escola de “Seu” Cabral que ouvi falar, pela primeira vez em “trustes”;

na juventude, o combate aos “trustes” americanos era a tônica nos discursos,

mas, naquele tempo, eram trustes japoneses. Na década de oitenta, em conversa

com o Sr. Ildefonso, na preparação de uma carta dele para o Presidente da

República (desde a infância, sirvo de “escriba” para muita gente) ele me contava

que se lembrava de mim, sentada e lendo o jornal na casa de “Seu” Cabral e

depois, na adolescência, estudando e lendo em voz alta, cedinho, andando na Rua

2 de julho – da Estação São Francisco até a porta de “Seu” Durval.

 

Fiquei emocionada com essa declaração porque o senhor Ildefonso era um operário

aposentado do curtume (no fim do 2 de julho havia uma concentração de 3

curtumes: O Santo Antonio, O São Francisco e o São Paulo); era um comunista

respeitado pelos seus pares, pela tradição de seriedade dentro do PC do B. E

quando ele falava em “Seu” Cabral eu sentia que, para ele, a minha presença lá

era referência de credibilidade. Temos certeza, pois, de que aquele homem pobre,

sapateiro, desdentado, conversador, alegre, risonho, questionador, crítico, é o

símbolo de uma época em que o operariado buscava se fortalecer pela informação,

se unir para as reivindicações. E aquela sala de “Seu” Cabral era oficina de

comportamento, na área de localização, ponto de encontro dos ferroviários/

operários de Alagoinhas, ávidos por progresso, mas também por respeito aos seus direitos.