Os primeiros passos de uma trajetória:1959-1962 – “Quando
teve esta greve, que eu tive a minha primeira fala, [...], eu era ainda, quarta
série de ginásio”.
José Jorge Andrade Damasceno
Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje
em 21 de abril de 2013 | 18:32
Conforme já foi dito ao paciente leitor, aqui se
prossegue no intento de trazer à lume, algumas facetas da trajetória social,
política e cultural de alguns alagoinhenses, que vivenciaram ou ainda vivenciam
a história da cidade, na medida em que contribuem com o esforço empreendido por
estudiosos e pesquisadores, no sentido de uma compreensão do processo histórico
da cidade.
Ainda uma vez, a ainda pacata Alagoinhas do final da
década de 1950 e do início da década de 1960, será mostrada a partir da memória
da professora Iraci Gama, de quem este autor recolheu grande número de
informações preciosas, acerca daquilo que ela vivenciara, que estão armazenadas
em gravações de entrevistas, nas quais ela desfila suas lembranças com grande desenvoltura,
permitindo ao pesquisador interessado em conhecer melhor o tempo “lembrado”,
desenvolver análises do processo histórico, identificar questões de grande
relevância a serem postas, com o fim de refletir no passado vivido pela
entrevistada e sobre o seu impacto no presente que é vivenciado pela atual
geração.
O lapso de tempo aqui evocado situa-se entre período que
se inicia em 1958 e se estende até 1962. O Brasil experimentava um processo de
transformações culturais, políticas, sociais e econômicas tão volumoso e
abrangente, indo desde a “Bossa Nova”, passando pela fabricação e venda do
“Fusca”, alcançando o programa de metas do presidente que pretendia levar a
capital federal para o Brasil Central. É também o tempo em que as ligas
camponesas são tidas como uma “ameaça”, sobretudo no sertão pernambucano e
paraibano, na medida em que seus idealizadores, organizadores e principais
líderes, preconizavam a “reforma agrária”, assustando os grandes
latifundiários, ao ponto de verem nas ligas todos os fantasmas que sempre lhes
tirara o sono: comunismo, socialismo, revolução no campo, etc., etc.
É também o tempo do surgimento de novos e grandes líderes
políticos e sociais, na medida em que o movimento operariado urbano ganha
força, lastreado em greves de vários setores da economia, o que acaba
incorporando-se ao medo do movimento camponês, colocando as elites políticas,
sociais, econômicas e partidárias, em pé-de-guerra contra a frágil democracia
instaurada após o “Estado Novo”.
Os episódios protagonizados pela professora Iraci, quando
se encontrava entre o fim do curso ginasial e o fim do curso pedagógico, cuja
conclusão a possibilitaria atuar como professora primária acabam por fazer
parte de seu processo de formação política, na medida em que atuam como
elementos de lapidação de seu perfil de liderança, caracterizado por uma
atuação sempre intensa e iminentemente voltada para o esforço em propiciar às
pessoas em particular e à sociedade alagoinhense em geral, as ferramentas
políticas e culturais no sentido de promover a justiça social e a equidade.
Dê-se-lhe, pois, a palavra para que a partir de sua
memória e de sua visão de mundo, relate, ela mesma, situações que vivenciou.
Convém salientar que a memória não é neutra. Ela é fruto de escolhas. Há aquilo
que se quer lembrar; aquilo que não se quer lembrar; aquilo que é lembrado, mas
que é silenciado, deliberada ou forçosamente. Neste sentido, faz-se necessário
ter sempre em conta que, apesar de grande parte da memória individual ser ao
mesmo tempo memória coletiva, ou social, ela não está isenta de
reconfigurações, reelaborações ou reacomodações.
Dito isto, crê-se não restar dúvidas de que a memória da
professora Iraci, muitas vezes será memória de vários outros indivíduos,
constituindo-se uma memória coletiva. Mas, ao entremear-se com outras fontes,
também passíveis de elaborações e reelaborações, chega-se à percepção do
processo histórico, eivado de mediações entre as diferentes memórias e como
elas foram apreendidas e reelaboradas com o passar do tempo e o contato com os
desdobramentos posteriores ao vivido e ao lembrado.
Em entrevista gravada em setembro de 2011, antes que
fosse iniciada a conversa com a professora Iraci Gama, deu-se-lhe para que
lesse o texto introdutório do livro “1958: o ano que não devia terminar”,
escrito pelo jornalista carioca Joaquim Ferreira dos Santos, com o fito de
saber-se e em que medida aqueles fragmentos da memória do jornalista,
encontrava ressonância em sua memória e, se ensejaria reavivar algum registro
que estivesse, por assim dizer, adormecido.
Depois de tecer algumas considerações sobre o que leu e,
salientar que grande parte dos fragmentos de memórias listados pelo autor da
obra, também povoavam a sua, observando que alguns outros ele não fizera
menção. Talvez as omissões se devessem precisamente às escolhas feitas em torno
de “o que lembrar”, “para que lembrar”; e ainda outra: “o que dizer”, ou “o que
silenciar”, sobre o que fora “lembrado”.
Assim, desta entrevista foram separados dois trechos,
considerados pelo autor destas linhas como elementos chave para o seu propósito
nesta série. O primeiro deles, a passagem na qual a entrevistada tece
considerações gerais sobre o momento político local e Nacional, que, segundo
sua percepção, estava lastreado em uma democracia onde a liberdade de expressão
e associação era notável, o que permitiu sua inserção, ainda que precoce, em
movimentos sociais e políticos daquele período, aparecerá já neste texto. O
segundo, onde o destaque é um dos desdobramentos de sua participação ativa na
campanha eleitoral que marcou o seu último ano como colegial, será apresentado
no próximo arrazoado.
Em palavras claras, algumas vezes cheias da empolgação
que caracteriza o seu peculiar modo de exprimir-se, diz a professora que:
“[...]. Lá dentro das Freiras, a gente já está criando um
Grêmio Estudantil. O que significava a vontade de esses estudantes se
pronunciarem. Os discursos eram feitos, de cima ali do muro. O muro até hoje tá
lá; aquele pedaço inicial, ali na frente; ali não mudou nada. Então, era ali
que a gente subia pra fazer os discursos, não é? [...].
“Isso 58. Em 59, a gente vai ganhando mais … como é que
eu diria … vai ficando com o pescoço mais duro, porque já está encerrando o
curso ginasial. Naquele tempo, quando se terminava o curso ginasial, se fazia
festa. [...] era uma coisa … era uma formatura, terminar um curso ginasial.
[...].”
“[...]. Então, nesse período a gente vai se fortalecendo.
59 já teve uma greve muito forte de ferroviários, com a presença de Murilo; o
próprio dirigente da Associação .. não estou me lembrando o nome agora, mas eu
tenho lá um livreto da Associação dos Ferroviários… Diógenes. Diógenes … Não.
Não me lembro do outro nome (…)”.
A entrevistada assevera que “eram pessoas que vinham
constantemente aqui. Alagoinhas era o foco. Era a sede. Muitas vezes, o
trabalho aqui, rendia mais, do que em Salvador. Talvez porque o pessoal de
Salvador tivesse outras áreas de atuação.
“Mas aqui, o foco no ferroviário era muito grande, porque
você tinha o ferroviário que estava dirigindo a estação, como os agentes de
estação, os escriturários, os telegrafistas; tinha o pessoal nas oficinas, que
era a grande produção, tanto Alagoinhas quanto Aramari, era a produção do trem,
porque era o conserto, o fabrico de locomotivas e de vagões; e ainda tinha o
pessoal e todo apoio para o trem: os manobristas, os chefes de trem e, por aí
vai.
“Então, este pessoal todo, ele se encontrava aqui; tinha
o depósito; a área do depósito também era uma área muito forte; e esse pessoal se
encontrava aqui em Alagoinhas e, tomava as decisões. Alagoinhas tomava as
decisões até Sergipe. [...], como havia as reuniões e o pessoal vinha de
Sergipe, pra cá. Também pela facilidade do trem, porque você se deslocava de
uma capital para a outra. Mas aqui, você já tomava todas as decisões, não
precisava ir para Salvador.
“Então, Alagoinhas era esse ponto de encontro e esse
ponto forte de encontro do mundo ferroviário e eu acompanhava tudo isto,
participava dessas discussões todas. Quando teve essa greve que eu tive a minha
primeira fala, substituindo Aidée Amorim, eu era ainda quarta série de ginásio.
Quer dizer, esse envolvimento com os ferroviários em si,
com os trabalhadores de forma direta, com as pessoas que conduziam o movimento,
que discutiam ali, como era a greve e, também na hora das decisões finais,
porque a gente vinha pra rua. A finalização da greve, ali na frente da estação
de Alagoinhas, o Murilo lá em cima…
Murilo, Diógenes e outros, participando dessas discussões aqui, aqueles
discursos inflamados, aí, você…”
Como se estivesse fazendo uma análise retrospectiva, cuja
base é a sua própria experiência recuperada das lembranças, Iraci assegura que:
“Esse período que foi um período fantástico no Brasil,
porque era período de liberdade, não é … a liberdade foi ficando tão forte e a
gente tinha tanta ousadia com essa liberdade, que o governo americano não
agüentou e começou a ir trabalhando lá e, botando os “milico” aqui… Aqui
somente não, aqui na América Latina toda, pra tomar a frente e acabar com a
democracia… Mas era um … era um período de muita democracia (…). Um período
bonito, bonito, forte assim… bom de se viver.
E arremata, em um tom mesclado de nostalgia e orgulho
daquilo que vivera, quando dava os primeiros passos no seu processo de formação
política e cultural:
“Eu me lembro quando a gente ia pra rua fazer essa
campanha pra Murilo… Veja, dentro do Santíssimo era proibido falar de política,
era proibido sair… vir pra rua acompanhada… Não se acompanhava… Nem o pai
acompanhava a filha, quando estava fardada, não era permitido e, nós fundamos
esse Comitê Pró Murilo Cavalcante, com nome, lá na frente e tudo, ali no centro
da cidade, a casa vizinha a Zé Maia, Zé Maia que era o chefe da família Maia,
considerada, a família de “sangue azul” de Alagoinhas, a família mais nobre de
Alagoinhas, no campo da direita e, nós estávamos ali, bem de junto dele,
provocando, ameaçando, participando de noite de todos os comícios e tal…
“Então, isso era uma prova de que, a democracia que o
País vivia, influenciava e dava para aquelas pessoas que tinham aquela
liderança aprendida ali, no meio dos trabalhadores ferroviários, dava essa,
como vou dizer, ousadia, de achar que aquilo era o normal: de poder dizer a sua
palavra, de fazer a sua reivindicação”.
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