rimeiros passos de uma trajetória: “Eu fui para quebrar
um galho!
*José Jorge Andrade Damasceno
Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 14 de abril de
2013 | 09:38
A partir deste arrazoado, pretende-se dar a conhecer ao
leitor algumas facetas
da história social protagonizada por alagoinhenses, a
partir das quais se possam
estabelecer conexões que permitam uma apreensão
histórica, tendo como elemento
desencadeador os relatos de indivíduos, privilegiando
suas histórias e memórias,
narradas na primeira pessoa.
A técnica de gravar depoimentos para com eles fazer
história vem já de algum
tempo, sobretudo, quando surgem e se difundem os
gravadores de voz humana. Os
primeiros eram grandes, pesados e de manuseio complicado;
os registros eram
feitos em arames, que pouco resistiam às intempéries do
tempo e dos precários
processos de conservação e armazenamento; grandes rolos
de fita os substituem,
embora persistam as precariedades antes mencionadas.
Depois, aparecem os
gravadores portáteis e transistorizados, que
paulatinamente, ocupam espaço no
mercado do registro de vozes, trazendo a funcionalidade
das fitas cassetes, com
suas duas pistas de gravação, oferecendo maior capacidade
de registro. Seu
tamanho menor e mais compacto permite melhorar o processo
de acondicionamento,
conservação e transporte.
Sobretudo, depois da década de 1960, o avanço da
eletrônica se faz
prodigiosamente célere com a miniaturização cada vez mais
eficaz, com o
desenvolvimento dos equipamentos de gravação, chegando ao
segundo milênio com as
versões no suporte digital, que acabam por eliminar os
limites do tempo de
duração de uma fita cassete, os registros dos depoimentos
se multiplicam e se
tornam fontes cada vez mais importantes e respeitadas, no
sentido de construir
uma documentação oral, que possibilite ao historiador um
diálogo com as diversas
memórias individuais e/ou coletivas.
Viabilizada pela facilidade técnica de apreensão de
evidências, esta
documentação oral, produzida e armazenada em diversos
formatos, associada aos
monumentos, espaços culturais e equipamentos urbanos,
permite a compreensão do
passado de uma cidade, de uma sociedade, avultando as
possibilidades de
elaboração de estudos que permitam aos diversos cientistas
sociais refletir
sobre os “lugares de memórias”, de que se vale o grupo
político que se coloca à
frente do Estado, para fazer prevalecer esta ou aquela
“memória”. Em estudos
fundamentados neste tipo de documentação, pode se
perceber, à medida que avançam
as conversas com os entrevistados, prestando-se bastante
atenção nos movimentos
daquilo que é lembrado, esquecido ou, simplesmente
silenciado pelo informante,
fica evidente a existência de uma escolha daquilo que se
deseje manter ou
apagar.
É neste sentido, que este e os próximos escritos
publicados nesta coluna, trarão
aos leitores, algumas memórias de pessoas que tiveram na
sua trajetória como
nascidas ou moradoras de Alagoinhas, episódios a partir
dos quais, se possam
apreender traços da história desta cidade que “já teve e
já foi”, como costumava
dizer a septuagenária de saudosa memória, senhora
Laudelina Gama (Ladi), em
muitas conversas que tivera com este escrevente ainda
adolescente e ginasiano,
nas memoráveis tardes de verão da década de 1970, quando
freqüentava a sua
casinha, modesta e acanhada, mas aconchegante, bem ao
lado da oficina São
Francisco.
Portanto, esta série começa com a sobrinha de dona Ladi,
já mencionada outras
vezes aqui neste espaço, a professora Iraci Gama Santa
Luzia. E a primeira razão
para começar com ela, é de ordem prática: já existe algum
material
memorialístico escrito a seu respeito e, algumas
entrevistas foram gravadas com
ela, pelo autor destas linhas, indicando que a professora
Iraci, tem grande
interesse em “lembrar”, visto que suas “lembranças”
ajudam na construção de
reflexões históricas em torno de sua cidade natal, da
qual se afastou apenas
para ampliar sua visão do mundo e sua preparação
profissional. Aqui construiu
sua vida, sua história e, inúmeras vezes, foi
protagonista ativa em diversas
ocasiões e situações, com as quais sempre lidou de modo a
mostrar o seu
comprometimento com a cidade que tão bem conhece e,
portanto, se empenha por
preservar marcos cruciais de sua história.
Uma segunda razão para começar esta série de escritos com
a professora Iraci
Gama deve ser creditada à constatação de que Iraci tem
uma vasta, longa e
variável trajetória de inserção nos movimentos sociais,
políticos e culturais de
Alagoinhas, cuja importância ainda está por ser
completamente reconhecida e
devidamente registrada pela história regional e local,
que se preocupe com a
elaboração de estudos e pesquisas que permitam a
compreensão dos avanços e
recuos desta que já foi uma cidade que ocupou lugar de
relevância no contexto
econômico político e social do processo histórico baiano.
Já se sabe que Iraci Gama tem uma relação intrínseca com
a ferrovia, em diversos
aspectos de sua vida. Sua casa situada nas proximidades
da via férrea, seus
familiares ligados diretamente ao trabalho ferroviário e
sua visão constante da
estação São Francisco dão a ela a autoridade de que se
reveste, quando o assunto
é a luta pela preservação daquele que foi o equipamento urbano
de maior
importância e relevância econômica e social da cidade de
Alagoinhas, cuja
importância política e cultural faz imperativa a
concretização do processo de
restauração e preservação daquele logradouro centenário.
Ainda na infância, acompanhava o seu avô materno até a
casa de “seu Cabral”,
homem esclarecido, de grande liderança, cujo papel na
formação política dos
trabalhadores na estrada de ferro se notabilizava por
audições radiofônicas,
leituras e discussões de periódicos, em reuniões
vespertinas em sua casa,
estrategicamente localizada nas proximidades da passagem
daqueles trabalhadores,
que acorriam àquelas reuniões.
E lá estava ela, assentada em um banquinho especialmente
feito para si, enquanto
animadamente, conversavam seu avô e o senhor Cabral.
Ainda pouco entendendo dos
temas políticos que dominavam as conversas daqueles dois
anciãos, era, porém,
capaz de compreender que se tratava de assuntos ligados à
busca de justiça
social e debate em torno da luta por melhores condições
de trabalho e salários
para os operários da “leste”, visto ser aquela categoria
de trabalhadores
marcada pelo risco de iminente achatamento salarial e
pelo descaso das
autoridades, devido à perda de importância que o
transporte ferroviário vinha
sofrendo.
E o efeito destes contatos não se fez esperar. Logo no
início de uma das
entrevistas, a professora Iraci afirma que:
“Eu tinha uma relação com os movimentos, de uma forma
indireta, porque não
participava das reuniões, não participava das decisões,
mas estava sempre perto
dos chamados piquetes de greve, levada por Zeca, meu tio,
[...] levada por Zeca,
estava ali perto… quer dizer, via toda a movimentação, me
empolgava com a
movimentação… Isto também fazia com que os ferroviários
me conhecessem”.
“Depois, quando tinha alguma coisa que precisava de uma
participação nossa, como
servir um lanche, servir um café, servir um mingau, o que
era muito comum se
fazer, por que aquele bocado de homem que virava o dia com
a noite ali, então
eles precisavam de um atendimento, eu estava sempre
pronta ali, pra isso”.
“Eu até me lembro, Jorge, bem pequena, e eu não … Parece
que estou vendo… Os
homens sentados ali… sentados no chão, na frente da
oficina,… da oficina São
Francisco, sentados ali no chão e, eu com um… puxando
alguma coisa de dentro de
uma panela grande… era como se fosse uma concha, deveria
ser uma concha de
mingau. Eu devia estar servindo ali, alguns copos, por
que era muito pequena,
não dava… mas é uma imagem que ficou muito forte, em mim.
Quando eu ainda não
tinha discernimento das coisas. Quer dizer que desde
pequena… Eu era muito
intrometida e ficava querendo ir ajudar e, Zeca me
levava.”
“Depois, um outro fator que me trazia muita proximidade
com os ferroviários, era
o fato de ir com o meu avô para o espaço do Seu Cabral,
por que isto acontecia
todos os dias. Com aquele banquinho que seu Cabral fez
pra mim, [...], eu
sentava ali e acompanhava a movimentação. Porque todos os
ferroviários que
chegavam ali para conversar, não só os ferroviários, mas,
principalmente nos
horários de chegada e de saída da oficina, quando os
ferroviários vinham e
aproveitavam também a presença do meu avô naquelas
conversas, eu estava ali, me
beneficiando do que eles discutiam e, conhecendo as
pessoas que chegavam; e as
pessoas também me conhecendo. Quer dizer: isso aí, eu
estou me referindo a fato
que aconteceu até 1956; meu avô faleceu em 56. Então, até
56, eu ainda tinha
esta prática de vir com ele pra casa de seu Cabral e,
essa relação com os
ferroviários acontecia naturalmente”.
No próximo trecho, Iraci Gama conta como se deu a sua
primeira participação em
uma reunião política, na qual fizera sua primeira
intervenção pública, para além
dos muros escolares.
“Depois, quando eu fui … quer dizer, entre 56 e 59, o
espaço já é bem menor.
Como eu vinha nesta prática de convivência com eles, eles
tinham aquela …
digamos assim, aquela confiança, … Era como se fosse uma pessoa que comungasse
daquele mesmo ideal, daqueles mesmos sonhos e, na escola,
eu tinha uma prática
de fala: eu declamava, escrevia algum texto, tinha essa
prática”.
“Tanto que, os ferroviários naquela época, eles faziam
uma atividade, que eu
chamo de “educação política”. Porque não acontecia
simplesmente uma paralisação
e eles se reuniam ali para virar a noite, para impedir
que o colega fosse
trabalhar, algum que quisesse trabalhar, ou o chefe
quisesse criar algum
problema. Não. Não era isso. Eles costumavam também,
discutir as teses, as
razões da greve. Tinha sempre uma liderança que fazia
essas explanações. E, eles
costumavam levar pessoas outras, também para essa
participação. Tipo uma pessoa
do sindicato, o advogado do sindicato…”
“Foi assim que eu conheci Murilo, sendo advogado dos
ferroviários e trazendo
essas informações… É claro que Murilo por ser um advogado
do sindicato e uma
pessoa já com uma condição … uma eloqüência muito grande,
… Dizer que Murilo
estaria presente, já era motivo para reunir muita gente.
Mas eles estavam
reunidos sempre, em qualquer período de greve, eles
estavam reunidos sempre,
para a discussão.”
“Então, em 59, eles fizeram uma seleção de pessoas para
falar. Na primeira
noite, falou a professora Agal, Agal Máximo Conceição,
que faleceu há poucos
dias e, no segundo dia, iria falar Aidée, Aidée Amorim. A
professora Aidée.
“Aidée apresentou uma justificativa para a ausência dela,
não poderia estar e
aí, o comando de
greve foi atrás de Zeca, … assim, eu fui pra quebrar um galho,
não é? Então Zeca, traga aquela sua sobrinha…
“Aquela sua sobrinha… Éramos duas. Então, quando eles
diziam “Aquela sua
sobrinha”, é por que não podia ser a outra, porque não
tinha esse envolvimento
com as questões… A minha irmã mais velha não tinha esses
envolvimentos… “Aquela
sua sobrinha” era aquela que se envolvia com as
questões que estava mais perto,
que sempre esteve mais perto e tal…”
“Aí, quando eu cheguei do Ginásio, eu estudava nas
Freiras, nesse tempo, quando
eu cheguei do ginásio, Zeca me pediu para fazer… para me
preparar para falar de
noite. Eu, não tinha essa experiência para falar de
improviso, eu escrevi um
texto e, fui ler de noite.
“Esse texto eu tenho ainda e eu falo de … Era Juscelino
Kubitschek, que era o
presidente da República, e Juscelino Kubitschek recebeu…
estava recebendo uma
delegação do estrangeiro e ofereceu um jantar de não sei
quantos talheres… Eu
me lembro que eu falo disso… Gastava tanto assim, mas se
recusava a atender as
reivindicações dos operários da Leste.
“Então, essa fala, realmente foi o primeiro momento que
eu tive assim, em
público, pra falar em público.”
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