sábado, 11 de junho de 2016

Republicando - 4


rimeiros passos de uma trajetória: “Eu fui para quebrar um galho!

*José Jorge Andrade Damasceno

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 14 de abril de 2013 | 09:38

 

A partir deste arrazoado, pretende-se dar a conhecer ao leitor algumas facetas

da história social protagonizada por alagoinhenses, a partir das quais se possam

estabelecer conexões que permitam uma apreensão histórica, tendo como elemento

desencadeador os relatos de indivíduos, privilegiando suas histórias e memórias,

narradas na primeira pessoa.

 

A técnica de gravar depoimentos para com eles fazer história vem já de algum

tempo, sobretudo, quando surgem e se difundem os gravadores de voz humana. Os

primeiros eram grandes, pesados e de manuseio complicado; os registros eram

feitos em arames, que pouco resistiam às intempéries do tempo e dos precários

processos de conservação e armazenamento; grandes rolos de fita os substituem,

embora persistam as precariedades antes mencionadas. Depois, aparecem os

gravadores portáteis e transistorizados, que paulatinamente, ocupam espaço no

mercado do registro de vozes, trazendo a funcionalidade das fitas cassetes, com

suas duas pistas de gravação, oferecendo maior capacidade de registro. Seu

tamanho menor e mais compacto permite melhorar o processo de acondicionamento,

conservação e transporte.

 

Sobretudo, depois da década de 1960, o avanço da eletrônica se faz

prodigiosamente célere com a miniaturização cada vez mais eficaz, com o

desenvolvimento dos equipamentos de gravação, chegando ao segundo milênio com as

versões no suporte digital, que acabam por eliminar os limites do tempo de

duração de uma fita cassete, os registros dos depoimentos se multiplicam e se

tornam fontes cada vez mais importantes e respeitadas, no sentido de construir

uma documentação oral, que possibilite ao historiador um diálogo com as diversas

memórias individuais e/ou coletivas.

 

Viabilizada pela facilidade técnica de apreensão de evidências, esta

documentação oral, produzida e armazenada em diversos formatos, associada aos

monumentos, espaços culturais e equipamentos urbanos, permite a compreensão do

passado de uma cidade, de uma sociedade, avultando as possibilidades de

elaboração de estudos que permitam aos diversos cientistas sociais refletir

sobre os “lugares de memórias”, de que se vale o grupo político que se coloca à

frente do Estado, para fazer prevalecer esta ou aquela “memória”. Em estudos

fundamentados neste tipo de documentação, pode se perceber, à medida que avançam

as conversas com os entrevistados, prestando-se bastante atenção nos movimentos

daquilo que é lembrado, esquecido ou, simplesmente silenciado pelo informante,

fica evidente a existência de uma escolha daquilo que se deseje manter ou

apagar.

 

É neste sentido, que este e os próximos escritos publicados nesta coluna, trarão

aos leitores, algumas memórias de pessoas que tiveram na sua trajetória como

nascidas ou moradoras de Alagoinhas, episódios a partir dos quais, se possam

apreender traços da história desta cidade que “já teve e já foi”, como costumava

dizer a septuagenária de saudosa memória, senhora Laudelina Gama (Ladi), em

muitas conversas que tivera com este escrevente ainda adolescente e ginasiano,

nas memoráveis tardes de verão da década de 1970, quando freqüentava a sua

casinha, modesta e acanhada, mas aconchegante, bem ao lado da oficina São

Francisco.

 

Portanto, esta série começa com a sobrinha de dona Ladi, já mencionada outras

vezes aqui neste espaço, a professora Iraci Gama Santa Luzia. E a primeira razão

para começar com ela, é de ordem prática: já existe algum material

memorialístico escrito a seu respeito e, algumas entrevistas foram gravadas com

ela, pelo autor destas linhas, indicando que a professora Iraci, tem grande

interesse em “lembrar”, visto que suas “lembranças” ajudam na construção de

reflexões históricas em torno de sua cidade natal, da qual se afastou apenas

para ampliar sua visão do mundo e sua preparação profissional. Aqui construiu

sua vida, sua história e, inúmeras vezes, foi protagonista ativa em diversas

ocasiões e situações, com as quais sempre lidou de modo a mostrar o seu

comprometimento com a cidade que tão bem conhece e, portanto, se empenha por

preservar marcos cruciais de sua história.

 

Uma segunda razão para começar esta série de escritos com a professora Iraci

Gama deve ser creditada à constatação de que Iraci tem uma vasta, longa e

variável trajetória de inserção nos movimentos sociais, políticos e culturais de

Alagoinhas, cuja importância ainda está por ser completamente reconhecida e

devidamente registrada pela história regional e local, que se preocupe com a

elaboração de estudos e pesquisas que permitam a compreensão dos avanços e

recuos desta que já foi uma cidade que ocupou lugar de relevância no contexto

econômico político e social do processo histórico baiano.

 

Já se sabe que Iraci Gama tem uma relação intrínseca com a ferrovia, em diversos

aspectos de sua vida. Sua casa situada nas proximidades da via férrea, seus

familiares ligados diretamente ao trabalho ferroviário e sua visão constante da

estação São Francisco dão a ela a autoridade de que se reveste, quando o assunto

é a luta pela preservação daquele que foi o equipamento urbano de maior

importância e relevância econômica e social da cidade de Alagoinhas, cuja

importância política e cultural faz imperativa a concretização do processo de

restauração e preservação daquele logradouro centenário.

 

Ainda na infância, acompanhava o seu avô materno até a casa de “seu Cabral”,

homem esclarecido, de grande liderança, cujo papel na formação política dos

trabalhadores na estrada de ferro se notabilizava por audições radiofônicas,

leituras e discussões de periódicos, em reuniões vespertinas em sua casa,

estrategicamente localizada nas proximidades da passagem daqueles trabalhadores,

que acorriam àquelas reuniões.

 

E lá estava ela, assentada em um banquinho especialmente feito para si, enquanto

animadamente, conversavam seu avô e o senhor Cabral. Ainda pouco entendendo dos

temas políticos que dominavam as conversas daqueles dois anciãos, era, porém,

capaz de compreender que se tratava de assuntos ligados à busca de justiça

social e debate em torno da luta por melhores condições de trabalho e salários

para os operários da “leste”, visto ser aquela categoria de trabalhadores

marcada pelo risco de iminente achatamento salarial e pelo descaso das

autoridades, devido à perda de importância que o transporte ferroviário vinha

sofrendo.

 

E o efeito destes contatos não se fez esperar. Logo no início de uma das

entrevistas, a professora Iraci afirma que:

 

“Eu tinha uma relação com os movimentos, de uma forma indireta, porque não

participava das reuniões, não participava das decisões, mas estava sempre perto

dos chamados piquetes de greve, levada por Zeca, meu tio, [...] levada por Zeca,

estava ali perto… quer dizer, via toda a movimentação, me empolgava com a

movimentação… Isto também fazia com que os ferroviários me conhecessem”.

 

“Depois, quando tinha alguma coisa que precisava de uma participação nossa, como

servir um lanche, servir um café, servir um mingau, o que era muito comum se

fazer, por que aquele bocado de homem que virava o dia com a noite ali, então

eles precisavam de um atendimento, eu estava sempre pronta ali, pra isso”.

 

“Eu até me lembro, Jorge, bem pequena, e eu não … Parece que estou vendo… Os

homens sentados ali… sentados no chão, na frente da oficina,… da oficina São

Francisco, sentados ali no chão e, eu com um… puxando alguma coisa de dentro de

uma panela grande… era como se fosse uma concha, deveria ser uma concha de

mingau. Eu devia estar servindo ali, alguns copos, por que era muito pequena,

não dava… mas é uma imagem que ficou muito forte, em mim. Quando eu ainda não

tinha discernimento das coisas. Quer dizer que desde pequena… Eu era muito

intrometida e ficava querendo ir ajudar e, Zeca me levava.”

 

“Depois, um outro fator que me trazia muita proximidade com os ferroviários, era

o fato de ir com o meu avô para o espaço do Seu Cabral, por que isto acontecia

todos os dias. Com aquele banquinho que seu Cabral fez pra mim, [...], eu

sentava ali e acompanhava a movimentação. Porque todos os ferroviários que

chegavam ali para conversar, não só os ferroviários, mas, principalmente nos

horários de chegada e de saída da oficina, quando os ferroviários vinham e

aproveitavam também a presença do meu avô naquelas conversas, eu estava ali, me

beneficiando do que eles discutiam e, conhecendo as pessoas que chegavam; e as

pessoas também me conhecendo. Quer dizer: isso aí, eu estou me referindo a fato

que aconteceu até 1956; meu avô faleceu em 56. Então, até 56, eu ainda tinha

esta prática de vir com ele pra casa de seu Cabral e, essa relação com os

ferroviários acontecia naturalmente”.

 

No próximo trecho, Iraci Gama conta como se deu a sua primeira participação em

uma reunião política, na qual fizera sua primeira intervenção pública, para além

dos muros escolares.

 

“Depois, quando eu fui … quer dizer, entre 56 e 59, o espaço já é bem menor.

Como eu vinha nesta prática de convivência com eles, eles tinham aquela …

digamos assim, aquela confiança,  … Era como se fosse uma pessoa que comungasse

daquele mesmo ideal, daqueles mesmos sonhos e, na escola, eu tinha uma prática

de fala: eu declamava, escrevia algum texto, tinha essa prática”.

 

“Tanto que, os ferroviários naquela época, eles faziam uma atividade, que eu

chamo de “educação política”. Porque não acontecia simplesmente uma paralisação

e eles se reuniam ali para virar a noite, para impedir que o colega fosse

trabalhar, algum que quisesse trabalhar, ou o chefe quisesse criar algum

problema. Não. Não era isso. Eles costumavam também, discutir as teses, as

razões da greve. Tinha sempre uma liderança que fazia essas explanações. E, eles

costumavam levar pessoas outras, também para essa participação. Tipo uma pessoa

do sindicato, o advogado do sindicato…”

 

“Foi assim que eu conheci Murilo, sendo advogado dos ferroviários e trazendo

essas informações… É claro que Murilo por ser um advogado do sindicato e uma

pessoa já com uma condição … uma eloqüência muito grande, … Dizer que Murilo

estaria presente, já era motivo para reunir muita gente. Mas eles estavam

reunidos sempre, em qualquer período de greve, eles estavam reunidos sempre,

para a discussão.”

 

“Então, em 59, eles fizeram uma seleção de pessoas para falar. Na primeira

noite, falou a professora Agal, Agal Máximo Conceição, que faleceu há poucos

dias e, no segundo dia, iria falar Aidée, Aidée Amorim. A professora Aidée.

 

“Aidée apresentou uma justificativa para a ausência dela, não poderia estar e

aí,  o comando de greve foi atrás de Zeca, … assim, eu fui pra quebrar um galho,

não é? Então Zeca, traga aquela sua sobrinha…

 

“Aquela sua sobrinha… Éramos duas. Então, quando eles diziam “Aquela sua

sobrinha”, é por que não podia ser a outra, porque não tinha esse envolvimento

com as questões… A minha irmã mais velha não tinha esses envolvimentos…  “Aquela

sua sobrinha” era aquela que se envolvia com as questões  que estava mais perto,

que sempre esteve mais perto e tal…”

 

“Aí, quando eu cheguei do Ginásio, eu estudava nas Freiras, nesse tempo, quando

eu cheguei do ginásio, Zeca me pediu para fazer… para me preparar para falar de

noite. Eu, não tinha essa experiência para falar de improviso, eu escrevi um

texto e, fui ler de noite.

 

“Esse texto eu tenho ainda e eu falo de … Era Juscelino Kubitschek, que era o

presidente da República, e Juscelino Kubitschek recebeu… estava recebendo uma

delegação do estrangeiro e ofereceu um jantar de não sei quantos talheres…  Eu

me lembro que eu falo disso… Gastava tanto assim, mas se recusava  a atender as

reivindicações dos operários da Leste.

 

“Então, essa fala, realmente foi o primeiro momento que eu tive assim, em

público, pra falar em público.”
 

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