Estrada de Ferro Bahia and São Francisco – José Jorge
Andrade Damasceno*
Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 3 de fevereiro de
2013 | 11:35
Corria o século XIX, pleno de novidades em todas as
áreas. No campo político, o
século teve seu início marcado pelos auspícios da
emancipação da colônia
francesa no Caribe, depois foram os tempos da emancipação
das colônias
espanholas e portuguesa. Esta última, após enfrentar
algumas intempéries
políticas e sociais, como ações políticas e militares, no
sentido de
consolidação do processo independentista, movimentos
separatistas, rebeliões
escravas, como a dos “Malês” e “revoluções” como a
comandada por Sabino Silva,
na Bahia e a “Praieira”, em Pernambuco, entre outras, o
Império acabara por se
fortalecer enquanto forma de governo, após rearranjos das
suas forças de
sustentação.
No campo econômico, o XIX assistia a consolidação da
“Revolução Industrial”
iniciada em torno das quatro últimas décadas do século
anterior, ao mesmo tempo
em que via desencadear-se a assim chamada “segunda
revolução industrial”,
marcadamente representada pelo advento e desenvolvimento
do transporte
ferroviário, que seria a marca dos grandes surtos de
desenvolvimento e
aceleração das velocidades e quantidades dos
deslocamentos de pessoas e
mercadorias, bem como, propiciando o acrescimento
substancial dos volumes de
acumulação de capital e, sobretudo, da expansão do
capitalismo, para além das
fronteiras européias e norte-americanas.
No Brasil, só após ver controlados os últimos focos de
resistência separatista,
a antecipação da “maioridade” do herdeiro do trono e,
principalmente, a
proibição efetiva do tráfico negreiro, com a liberação
dos capitais para
investimentos, o capitalismo, enquanto modo de produção
hegemônico, pôde dar
início ao processo de expansão das forças produtivas e
expropriação dos meios de
produção, sem as amarras que dificultavam as
transformações das características
agrário-escravistas da economia nacional.
Portanto, grosso modo, pode-se dizer que é a partir da
década de 1850, que o
Brasil começa a ingressar no mundo capitalista moderno,
no sentido mais amplo da
palavra. É por aquela época que surgem os primeiros
bancos, as primeiras
experiências de industrialização, as primeiras linhas
telegráficas e, entre
outros empreendimentos, aquele que aqui mais de perto
interessa considerar: os
primeiros investimentos em abertura, construção e
operação de estradas de ferro.
Desde o agigantamento da ocupação portuguesa, promovido
pelas tão decantadas
e/ou detratadas “Entradas e Bandeiras”, cedo se
compreendeu a necessidade de
integração das hiperbólicas distâncias, entre as
províncias, as povoações e as
áreas produtivas, aos portos e aos centros de poder do
Império. Até então, tal
integração fôra feita pelas tropas de burro, pelos rios
navegáveis e pelo mar,
evidentemente propiciando o avultamento de grandes e
quase insolúveis gargalos,
no que diz respeito ao abastecimento de gêneros de
primeira necessidade, bem
como do escoamento dos produtos agrícolas e
manufaturados, até os locais de
distribuição e comercialização.
Assim, a abertura de estradas de ferro, em diversas áreas
do Império, se
apresenta como uma forma encontrada para resolver, a um
só tempo, dois problemas
cruciais: o da integração interprovincial e nacional, bem
como o da distribuição
de produtos. Na esteira de tal solução, surge,
inapelavelmente, a propiciação da
circulação das mercadorias, das riquezas, das pessoas e
das idéias. Junto com
elas, a cultura, a notícia, a moda, que permitiria a
diversas populações, nos
mais distantes e diferentes lugares, se apropriarem e
promoverem mudanças nos
hábitos, nos usos e costumes e, sobretudo, nas formas de
compreender o mundo,
então restrita aos ditames das tradições e das prédicas,
deliberadamente
filtradas por lideranças políticas, culturais e
religiosas, regionais e locais.
É precisamente naquele contexto de desenvolvimentismo e
modernização propiciado
pela liberação dos capitais até então presos no processo
de financiamento do
tráfico de escravos, que faz-se sentir a necessidade de
escoamento da produção
agrícola e pecuária, das diversas regiões da Província,
até o porto da sua
capital.
Segundo a Mestre Etelvina Rebouças Fernandes “A idéia de
uma estrada de ferro
que saísse da capital da então Província da Bahia e
alcançasse a margem direita
do rio São Francisco, com ponto final na cidade de
Juazeiro, era defendida por
políticos influentes que tinham interesses políticos e
comerciais na região, e
pelo povo esclarecido, para o qual alcançar o rio era uma
questão de importância
nacional”. Na obra intitulada “Do Mar da Bahia ao Rio do
Sertão Bahia and San
Francisco Railway”, a autora que por anos foi responsável
por atividades
relacionadas à restauração do Patrimônio histórico
baiano, pessoa ligada ao
Instituto do
Patrimônio Histórico Nacional(IPHAN) , assegura que “a proposta
para a construção de uma ferrovia baiana para atingir o
rio São Francisco tinha
a importante função social de integrar os sertanejos com
a capital, tirando-os
do isolamento a que foram condenados por três séculos.
Para as indústrias,
principalmente inglesas, criava um novo mercado,
facilitando a distribuição de
suas manufaturas. Para os políticos, representava um
instrumento de poder na
região mais árida do Estado da Bahia, com uma população
castigada pelas secas
constantes que assolavam periodicamente o sertão e que
foram, com freqüência,
utilizadas em campanhas eleitorais. O trem levava para aquela
região sofrida, a
esperança de vida, cumprindo um papel humanitário. Por
isso, as ferrovias, mesmo
com intenções político-partidárias, eram tão importantes
para o povo do sertão”.
Após a “Junta da Lavoura” não lograr êxito no intento de
empreender a primeira
ligação ferroviária baiana, é lançado em Londres, um
consórcio de capitais
ingleses, com o objetivo de fundar a “Bahia and São
Francisco Railway Company”,
que abriria e construiria a estrada de ferro, que ligaria
a capital da província
baiana, até a margem direita do Rio São Francisco, na
divisa com a província de
Pernambuco.
Devido a uma série de fatores, que aqui não cabe
discutir, dado aos limites
deste arrazoado, a companhia de capital inglês acabou
sendo substituída pelo
governo provincial, a fim de que pudesse tornar-se
realidade, a idéia inicial de
tamanha magnitude para a época: uma ferrovia que
colocasse o sertão em contato
com o litoral da capital provincial, o que seria de
grande valia para a
população em geral, na medida em que poderia se deslocar
com mais rapidez e
conforto, entre as estações intermediárias e a da
Calçada, ganhando acesso a
tudo aquilo que a “Bahia” lhe pudesse oferecer e, os
produtores em particular,
na medida em que viabilizaria a circulação da produção
com mais rapidez e menor
custo, aumentando o acesso aos pontos de comercialização.
Segundo pesquisas que vêm se desenvolvendo em programas
de pós-graduação nas
universidades estaduais e federais, sobretudo no campo da
história, o traçado
idealizado pelo consórcio inglês para a estrada de ferro
na Bahia, não incluía a
cidade de Alagoinhas, entre os locais que comporiam a
rota ferroviária. Ela
acaba por ser incluída no traçado construído a partir de
1858, conforme
constatou a Professora-Mestre Keite Lima, em texto
inédito, já mencionado neste
espaço
Segundo ela, “ (…), o povoado, graças a sua localização
geográfica, era
considerado além de pórtico do nordeste baiano, uma área
estratégica que
encurtava as distâncias entre a província da Bahia e o
porto fluvial de
Juazeiro”.
A professora segue dizendo que “(…) somam-se a isso a
perspectiva do tabaco
produzido em Inhambupe, ser transportado para Alagoinhas
pela ferrovia”, (…),
“fato que ampliaria o rendimento da via férrea”. E Keite
conclui afirmando que
“esses fatores aliados a riqueza econômica que se baseava
no gado, tabaco e
açúcar, possibilitaram a Alagoinhas fazer parte da Era
ferroviária do século
XIX”.
O primeiro e único trecho da ferrovia efetivamente
executado pela companhia
inglesa, de 123 Km, foi
aquele compreendido entre a estação da Calçada em
Salvador e a estação de Alagoinhas, na vila do mesmo
nome. Visto que a
empreitada consumiu todo o capital disponível pelo
consórcio para o
empreendimento, fez-se imperiosa a efetivação de algumas
mudanças em seu “plano”
original de construção.
Nesta perspectiva, a mais substancial das mudanças no
processo de implantação da
estrada de ferro Bahia & São Francisco, que partiria
de Salvador com destino a
Juazeiro, foi a realizada no seu traçado inicial, na
altura da Vila de
Alagoinhas. Por motivos ainda não explicados
satisfatoriamente pelos estudiosos
do tema, ao aproximar-se da vila, a ferrovia sofre um
desvio considerável, tendo
seu leito sido definitivamente implantado, um pouco
abaixo do local por onde se
acreditava passariam os trilhos pelos quais circulariam
as alegrias das viagens
experimentadas por gerações de alagoinhenses e, a
expectativa da realização de
avultados negócios, alimentadas e em muitos casos
concretizadas, pelos
comerciantes e produtores da região.
Ao que parece, a perspectiva da passagem de uma estrada
de ferro no território
alagoinhense, criou nas elites dirigentes locais, a
motivação de que precisavam
para sair do marasmo econômico que parecia estar
mergulhada a vila. Recorre-se
uma vez mais ao texto dissertativo da professora Keite,
para dar suporte a
assertiva ora explicitada. Diz a Mestre:
“A desestruturação vivida pela economia da vila gerou
ansiedade e expectativa
por parte do governo local para a chegada da linha
férrea. Para fazendeiros,
comerciantes e os conselheiros, a ferrovia possibilitaria
maior rapidez e volume
no transporte da produção e no recebimento de mercadorias
além de funcionar como
fator de atração para a região, graças à facilidade de
acessos, trazendo
trabalhadores livres e comerciantes. Enfim, a ferrovia
criaria condições capazes
de estruturar a economia local e viabilizaria o
desenvolvimento urbano”.
A alteração do ponto no qual passariam os trilhos da
ferrovia Bahia & São
Francisco,
modificou sensivelmente a estrutura urbanística e
populacional de Alagoinhas, na
medida em que a povoação que já ali se encontrava instalada, há alguns séculos,
acabou por ser deslocada cerca de 3 km, produzindo uma
completa reorientação
espacial, ao se criar uma espécie de “nova Alagoinhas”.
A área até então tida como sede da Vila de Santo Antônio
das Alagoinhas, situada
entre a fonte dos Padres e a fazenda Ladeira, pouco mais
ou menos, pouco a pouco
viu a feira fugir da sua Praça para perto da via férrea e
dos rios Catu e
Aramari, sofrendo uma sangria de “almas” e “fogos”, o que
acabou provocando o
seu quase total despovoamento. Transformada no bairro de
Alagoinhas Velha, a
antiga povoação se tornou uma área de grandes chácaras e
sítios, região
“aprazibilíssima” e de excelentes ares, que mais tarde,
acaba por se tornar o
paraíso das famílias afortunadas da cidade.
O bairro de Alagoinhas Velha, só volta a ter uma ocupação
maciça, a partir da
década de 1980, quando chegam para as suas cercanias, a
Estação Rodoviária
Clériston Andrade, a Br101 e, mais recentemente, a
fábrica de bebidas da
Schincariol. Dali em diante, inúmeros condomínios,
conjuntos habitacionais,
universidades, clube de campo, empreendimentos
comerciais, cemitério,
equipamentos administrativos, do executivo e do
Judiciário, passam a fazer parte
da antiga povoação alagoinhense, por muito tempo,
lembrada apenas pelo “pau
pintado” e por sua Igreja Inacabada, em ruínas.
* Doutor em História Social e professor de História da
UNEB.
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