sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Um escrevedor volta a falar de memória musical – X: o começo da caminhada – primeiro semestre de 1980 – A Primeira Igreja Batista de Alagoinhas e as primeiras músicas evangélicas – Parte III.

 

Conforme se tem arrazoado até aqui, os primeiros seis meses transcorridos daquele ano de 1980 descritos nas postagens anteriores, foram bastante movimentados em termos de fatos vivenciados e de lições aprendidas, bem como de experiências apreendidas, no sentido de pavimentar a estrada por onde se desenvolvera o  novo caminhar deste escrevente. Muitas daquelas experiências permaneceram em seu rememorar; algumas com bastante clareza; outras, com pequenos lampejos de indefinidas construções, dificultando a elaboração e/ou a reelaboração de alguns de seus elementos mais vívidos, que permitam uma reconstrução ressignificada, fique claro, por meio do “rememorar” aqui intentado, malgrado o esforço envidado para que aquelas indefinições se apresentassem com alguma congruência. É neste sentido que gostaria de inserir uma formulação feita Por Jacques Le Goff (1924-2014), que ajuda a compreender o trabalho da memória na elaboração de um rememorar que se pretende estabelecer como parâmetro para trazer à lume, algumas evidências de um passado vivido, em algum lugar dado. Diz o medievalista francês que “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções  psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões  ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. (LE GOFF, 1996, p. 423).

Portanto, é assim que a “memória” se apresenta, quando evocada por quem rememora alguma coisa, algum nome, alguma sensação, algum cheiro de infância, de livro novo, de disco, revista; ou de algum som pouco ou bem definido, alguma música, algum evento, visto que tal se apresenta como fragmentos de realidades vividas por quem lembra – ou é lembrado. Também, a lembrança pode se apresentar  sob o prisma do trauma, no caso em que a memória esteja ligada a situações extremas, como é o caso dos campos de concentração – relacionados aos regimes nazifascistas -, ou dos centros de torturas – relacionados aos regimes de exceção, vivenciados em diversos países da América Latina, sobretudo, a partir dos anos de 1960.

Quando este garatujador remete a um passado que já vai um tanto distante e pensa nas suas primeiras leituras de material impresso em Braille, logo assoma-lhe ÁS narinas, como saídos de lugares muito recônditos onde se encontram armazenados, aqueles cheiros de papel novo, ainda não manuseado que formavam as revistas Relevo, publicada pela então Fundação para o Livro do Cego No Brasil e, a Revista Brasileira Para Cegos – ainda em circulação -, publicada pelo Instituto Benjamim Constante, com as quais ele começara a ter contato a partir do ano de 1972. Agrega-se àqueles cheiros outro conjunto de lembranças, tais como um que remete àquela tarde de chuva há pouco caída – ou prestes a cair -, em que pela primeira vez, fora convocado pelo carteiro, o senhor Delorme, a fim de receber a correspondência inesperada: os primeiros exemplares daquelas revistas. E assim, as lembranças vão se encadeando, de fragmento em fragmento, de vestígio em vestígio, até (re)construir um rememorar que pode permitir elucidar algumas informações desconexas existentes no indivíduo que lembra.

Crê-se pertinente, recorrer a alguns dos postulados do filósofo francês Paul Ricöeur (1913-2005), para assegurar que “[...]. Em última análise, o que justifica essa preferência pela memória ”certa” é a convicção de não termos outro recurso a respeito da referência  ao passado, senão a própria memória [...],” (RICÖEUR, 2007, p. 40). Ainda lastreado nas proposições encontradas em reflexões desenvolvidas por Ricöeur, é possível sustentar a ideia de que um passado pode ser trazido ao presente, mediante a evocação de seus elementos constitutivos, fazendo uso da “memória” como ferramenta para tornar possível aquela evocação. Não obstante, é recorrente a desconfiança generalizada em torno da memória, visto que, segundo aqueles que levantam tal objeção, ela é subjetiva e, como tal, pode “falsear” o passado, indicando que, não havendo quaisquer elementos que possam ser utilizados para “comprovar o tal passado”, a memória não poderia ser aceita como elemento digno de confiança no processo de (re)construção de um passado que se pretenda estudar. Ao que Paul Ricöeur refuta nos termos que se seguem:

 

“[...]. Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em dirigir semelhante censura à imaginação, na medida em que esta tem como paradigma o irreal, o fictício, o possível e outros traços que podemos chamar de não posicionais. A ambição veritativa da memória tem títulos que merecem ser reconhecidos antes de considerarmos as deficiências patológicas e as fraquezas não patológicas da memória, [...]. Para falar sem rodeios, não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela. Os falsos testemunhos, [...], só podem ser desmascarados por uma instância crítica cujo único recurso é opor aos testemunhos tachados de suspeitos outros testemunhos reputados mais confiáveis. Ora, [...], o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história” (RICÖEUR, 2007, p. 40-41).

Em tal perspectiva, tem se procurado trazer alguns dos momentos vividos em um passado situado há mais ou menos quarenta anos, tempo em que se experimentou dar os primeiros passos na caminhada cristã protestante, precisamente em um tempo em que os primeiros rudimentos da Fé estavam sendo recebidos, absorvidos e inculcados naquele rapaz, até então desprovido de quaisquer fundamentos sobre os quais pudesse assentar o seu novo viver. No dizer de Enzo Traverso, em texto que se encontra na obra “O passado modos de usar”, publicada em Portugal, no ano de 2012, a memória é um dos elementos por meio dos quais é possível não só (re)memorar um conjunto de eventos do passado, como também se pode compreender os usos que possam vir a ser feitos de um passado dado. Traverso postula que:

Tirando a sua força da experiência vivida, a memória é eminentemente subjectiva. Fica ancorada aos factos a que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou mesmo actores, e às impressões que deixaram no nosso espírito. A memória é qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, com a contextualização, ou com generalizações. Quem a transporta não necessita de apresentar provas. O relato do passado prestado por  uma testemunha — sempre que não seja um mentiroso  consciente — será sempre a sua verdade, ou seja, a imagem do passado em si deposto. Pelo seu carácter subjectivo, a memória nunca é cristalizada; mais se parece com um estaleiro aberto, em contínua operação. Não é apenas, segundo a metáfora de Benjamin, «a tela de  Penélope» que se modifica todos os dias devido ao esquecimento que «ameaça» em permanência, para reaparecer mais tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de uma forma diferente. Não é só o tempo a erodir e a enfraquecer a recordação. A memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação. [...]” (TRAVERSO, 2012, p. 22-23).

 

Assim, é fundamentado em tal postulado, que se pode apresentar ao leitor, a partir da memória do vivido, com as ressignificações e as reelaborações inerentes ao feito de lembrar, os fragmentos já muito tênues daquele princípio de caminhar, ainda relacionado à Primeira Igreja Batista de Alagoinhas. Tendo decidido fazer parte do daqueles que ali professavam a Fé em Cristo, sentiu-se a necessidade de tomar contato com as novas elaborações musicais que envolviam aquela relação estabelecida entre o “novo convertido” e o modo de viver e pensar ao qual se inseriria. E, como não poderia deixar de ter sido, o grande aliado nesta tarefa foi o rádio.

Portanto, antes de iniciar a sua caminhada, este escrevente conhecia – inclusive já se comentou em outro arrazoado – a programação especificamente produzida pelos protestantes, cujo objetivo, diziam eles, era alcançar os não-protestantes, através dos meios de comunicação. Embora reconheça a factibilidade daquele propósito, este garatujador sempre postulou que tais programas, talvez, devido ao modo como eram produzidos e difundidos, só interessavam e/ou alcançavam os próprios crentes. Assim, conforme entendia – e ainda entende -, eles falavam de si, para consigo mesmos. E, ele se apresenta como a prova real de tal postulado.

Neste sentido, cabe salientar de passagem que, antes de passar a fazer parte do público protestante, este escrevente nunca se interessara pelos programas em questão, embora soubesse de sua veiculação há já bastante tempo. Eram dois programas exibidos durante a semana – Cinco Minutos com Jesus (05h:55), Um Novo Dia Raiou (06h:00-06h:15) – e três programas exibidos aos domingos – A Voz Da Profecia (05h:30-05h:45), A Hora Luterana, A voz da Cruz (05h:45-06h:00) e Um Novo Dia Raiou (06h:00-06h:15). Nenhum deles interessava a aquele ouvinte da Rádio Sociedade da Bahia, muito pelo contrário. Apenas depois que passou a ser um entre os protestantes, é que tais programas passaram a despertar-lhe o interesse em acompanhar as suas exibições e, quando foram retirados do ar, pelo grupo acionário liderado por Pedro Irujo que comprara a emissora dos Diários Associados em profunda crise financeiro/administrativa, sentiu a falta deles, que já o ajudara no seu novo caminhar.

Em busca de conhecer mais a respeito do Evangelho que acabara de abraçar, este escrevedor passa a procurar avidamente por alternativas radiofônicas que lhe viessem a auxiliar em um tal propósito. Assim, começa a ouvir emissoras como a Rádio Transmundial, HCJB (A Voz dos Andes), entre outras que foram sendo identificadas e incorporadas ao estreito leque de opções relacionadas a emissoras destinadas a transmitir uma programação especificamente elaborada e desenvolvida para aquele público, ainda tão diminuto, mas bastante necessitado de tais aportes. Dali em diante, passa a entender que, conforme apontou acima, aqueles programas que teoricamente eram feitos para “evangelizar”  as pessoas  - notadamente aquelas que desconheciam a Bíblia como sendo a “Palavra de Deus” e a sua mensagem, bem como o propósito do Eterno, ao enviar Jesus Cristo ao mundo -, acabavam por promover a “edificação” daqueles que já conheciam ou passavam a conhecer o evangelho. Portanto, logo na primeira semana após o dia 20 de janeiro, passou a ouvir os programas acima mencionados e, logo entendeu que a partir deles, poderia ouvir, agora com atenção e cuidado, aquelas músicas que, pouco tempo antes, ele dizia serem quase fúnebres.

Deste modo, um dos primeiros hinos que ouvira em tal ocasião e, que depois ficara em seu rememorar, a despeito do tempo que já se passara, foi cantada por José Geraldo, cujo título era “Consumação dos tempos”, cuja letra, muito o impressionara. A composição em causa, trazia expressões e personagens que lhe eram inteiramente desconhecidos. Pouco ou nada ele sabia a respeito daqueles nomes que o autor apresentava como heróis, nem daqueles eventos que dizia esperar acontecer, em breve. A expressão “consagrado Jó” Ficou gravada no rememorar deste aprendiz de escriba, desenvolvendo nele uma grande curiosidade para saber quem era aquele personagem; o que tivera ele feito ou vivido e quando, para ser tomado como um dos “expoentes” da fé. Mais tarde, ouvindo um pouco mais sobre “Jó” e não tendo acesso a uma Bíblia onde pudesse ler sobre aquele patriarca da antiguidade, desenvolveu um leque de equívocos sobre aquele homem que vivera no Oriente, há cerca de quatro mil anos, sobretudo, naquilo que é mais evocado em torno de sua vida: a “paciência de Jó”, no trato com os flagelos que lhe sobrevieram. Reforce-se, que no tempo em que este que ora digita estas linhas ouvira a música em questão, nada sabia sobre Jó, muito menos, sobre a sua vida repentinamente virada pelo avesso e, após manter-se fiel ao Deus Eterno, passou a ser, outra vez, o que fora antes.

 

https://youtu.be/2dC9HFvS6H8

 

José Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com

08 de outubro de 2021.