Conforme se tem arrazoado até aqui, os primeiros seis meses
transcorridos daquele ano de 1980 descritos nas postagens anteriores, foram
bastante movimentados em termos de fatos vivenciados e de lições aprendidas,
bem como de experiências apreendidas, no sentido de pavimentar a estrada por
onde se desenvolvera o novo caminhar
deste escrevente. Muitas daquelas experiências permaneceram em seu rememorar;
algumas com bastante clareza; outras, com pequenos lampejos de indefinidas
construções, dificultando a elaboração e/ou a reelaboração de alguns de seus
elementos mais vívidos, que permitam uma reconstrução ressignificada, fique
claro, por meio do “rememorar” aqui intentado, malgrado o esforço envidado para
que aquelas indefinições se apresentassem com alguma congruência. É neste
sentido que gostaria de inserir uma formulação feita Por Jacques Le Goff
(1924-2014), que ajuda a compreender o trabalho da memória na elaboração de um
rememorar que se pretende estabelecer como parâmetro para trazer à lume,
algumas evidências de um passado vivido, em algum lugar dado. Diz o
medievalista francês que “A memória,
como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar
a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele
representa como passadas”. (LE GOFF, 1996, p. 423).
Portanto, é assim que a “memória” se apresenta, quando
evocada por quem rememora alguma coisa, algum nome, alguma sensação, algum
cheiro de infância, de livro novo, de disco, revista; ou de algum som pouco ou
bem definido, alguma música, algum evento, visto que tal se apresenta como
fragmentos de realidades vividas por quem lembra – ou é lembrado. Também, a lembrança
pode se apresentar sob o prisma do
trauma, no caso em que a memória esteja ligada a situações extremas, como é o
caso dos campos de concentração – relacionados aos regimes nazifascistas -, ou
dos centros de torturas – relacionados aos regimes de exceção, vivenciados em
diversos países da América Latina, sobretudo, a partir dos anos de 1960.
Quando este garatujador remete a um passado que já vai um
tanto distante e pensa nas suas primeiras leituras de material impresso em
Braille, logo assoma-lhe ÁS narinas, como saídos de lugares muito recônditos onde
se encontram armazenados, aqueles cheiros de papel novo, ainda não manuseado que
formavam as revistas Relevo, publicada pela então Fundação para o Livro do Cego
No Brasil e, a Revista Brasileira Para Cegos – ainda em circulação -, publicada
pelo Instituto Benjamim Constante, com as quais ele começara a ter contato a
partir do ano de 1972. Agrega-se àqueles cheiros outro conjunto de lembranças,
tais como um que remete àquela tarde de chuva há pouco caída – ou prestes a
cair -, em que pela primeira vez, fora convocado pelo carteiro, o senhor
Delorme, a fim de receber a correspondência inesperada: os primeiros exemplares
daquelas revistas. E assim, as lembranças vão se encadeando, de fragmento em fragmento,
de vestígio em vestígio, até (re)construir um rememorar que pode permitir
elucidar algumas informações desconexas existentes no indivíduo que lembra.
Crê-se pertinente, recorrer a alguns dos postulados do
filósofo francês Paul Ricöeur (1913-2005), para assegurar que “[...]. Em última
análise, o que justifica essa preferência pela memória ”certa” é a convicção de
não termos outro recurso a respeito da referência ao passado, senão a própria memória [...],” (RICÖEUR,
2007, p. 40). Ainda lastreado nas proposições encontradas em reflexões
desenvolvidas por Ricöeur, é possível sustentar a ideia de que um passado pode
ser trazido ao presente, mediante a evocação de seus elementos constitutivos,
fazendo uso da “memória” como ferramenta para tornar possível aquela evocação.
Não obstante, é recorrente a desconfiança generalizada em torno da memória,
visto que, segundo aqueles que levantam tal objeção, ela é subjetiva e, como
tal, pode “falsear” o passado, indicando que, não havendo quaisquer elementos
que possam ser utilizados para “comprovar o tal passado”, a memória não poderia
ser aceita como elemento digno de confiança no processo de (re)construção de um
passado que se pretenda estudar. Ao que Paul Ricöeur refuta nos termos que se
seguem:
“[...]. Se podemos acusar a memória de se mostrar pouco
confiável, é precisamente porque ela é o nosso único recurso para significar o
caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar. Ninguém pensaria em
dirigir semelhante censura à imaginação, na medida em que esta tem como
paradigma o irreal, o fictício, o possível e outros traços que podemos chamar
de não posicionais. A ambição veritativa da memória tem títulos que merecem ser
reconhecidos antes de considerarmos as deficiências patológicas e as fraquezas
não patológicas da memória, [...]. Para falar sem rodeios, não temos nada
melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou
antes que declarássemos nos lembrar dela. Os falsos testemunhos, [...], só
podem ser desmascarados por uma instância crítica cujo único recurso é opor aos
testemunhos tachados de suspeitos outros testemunhos reputados mais confiáveis.
Ora, [...], o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a
memória e a história” (RICÖEUR, 2007, p. 40-41).
Em tal perspectiva, tem se procurado trazer alguns dos momentos
vividos em um passado situado há mais ou menos quarenta anos, tempo em que se
experimentou dar os primeiros passos na caminhada cristã protestante,
precisamente em um tempo em que os primeiros rudimentos da Fé estavam sendo
recebidos, absorvidos e inculcados naquele rapaz, até então desprovido de quaisquer
fundamentos sobre os quais pudesse assentar o seu novo viver. No dizer de Enzo
Traverso, em texto que se encontra na obra “O passado modos de usar”, publicada
em Portugal, no ano de 2012, a memória é um dos elementos por meio dos quais é
possível não só (re)memorar um conjunto de eventos do passado, como também se
pode compreender os usos que possam vir a ser feitos de um passado dado.
Traverso postula que:
“Tirando
a sua força da experiência vivida, a memória é eminentemente subjectiva. Fica
ancorada aos factos a que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou mesmo
actores, e às impressões que deixaram no nosso espírito. A memória é
qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, com a
contextualização, ou com generalizações. Quem a transporta não necessita de
apresentar provas. O relato do passado prestado por uma testemunha — sempre que não seja um
mentiroso consciente — será sempre a sua
verdade, ou seja, a imagem do passado em si deposto. Pelo seu carácter subjectivo,
a memória nunca é cristalizada; mais se parece com um estaleiro aberto, em
contínua operação. Não é apenas, segundo a metáfora de Benjamin, «a tela
de Penélope» que se modifica todos os
dias devido ao esquecimento que «ameaça» em permanência, para reaparecer mais
tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de uma forma diferente. Não é só o
tempo a erodir e a enfraquecer a recordação. A memória é uma construção, sempre
filtrada por conhecimentos adquiridos posteriormente, pela reflexão que se
segue ao acontecimento, por experiências que se sobrepõem à primeira e
modificam a recordação. [...]” (TRAVERSO, 2012, p. 22-23).
Assim,
é fundamentado em tal postulado, que se pode apresentar ao leitor, a partir da
memória do vivido, com as ressignificações e as reelaborações inerentes ao
feito de lembrar, os fragmentos já muito tênues daquele princípio de caminhar,
ainda relacionado à Primeira Igreja Batista de Alagoinhas. Tendo decidido fazer
parte do daqueles que ali professavam a Fé em Cristo, sentiu-se a necessidade
de tomar contato com as novas elaborações musicais que envolviam aquela relação
estabelecida entre o “novo convertido” e o modo de viver e pensar ao qual se
inseriria. E, como não poderia deixar de ter sido, o grande aliado nesta tarefa
foi o rádio.
Portanto,
antes de iniciar a sua caminhada, este escrevente conhecia – inclusive já se
comentou em outro arrazoado – a programação especificamente produzida pelos
protestantes, cujo objetivo, diziam eles, era alcançar os não-protestantes,
através dos meios de comunicação. Embora reconheça a factibilidade daquele propósito,
este garatujador sempre postulou que tais programas, talvez, devido ao modo
como eram produzidos e difundidos, só interessavam e/ou alcançavam os próprios
crentes. Assim, conforme entendia – e ainda entende -, eles falavam de si, para
consigo mesmos. E, ele se apresenta como a prova real de tal postulado.
Neste
sentido, cabe salientar de passagem que, antes de passar a fazer parte do
público protestante, este escrevente nunca se interessara pelos programas em
questão, embora soubesse de sua veiculação há já bastante tempo. Eram dois
programas exibidos durante a semana – Cinco Minutos com Jesus (05h:55), Um Novo
Dia Raiou (06h:00-06h:15) – e três programas exibidos aos domingos – A Voz Da
Profecia (05h:30-05h:45), A Hora Luterana, A voz da Cruz (05h:45-06h:00) e Um
Novo Dia Raiou (06h:00-06h:15). Nenhum deles interessava a aquele ouvinte da
Rádio Sociedade da Bahia, muito pelo contrário. Apenas depois que passou a ser
um entre os protestantes, é que tais programas passaram a despertar-lhe o
interesse em acompanhar as suas exibições e, quando foram retirados do ar, pelo
grupo acionário liderado por Pedro Irujo que comprara a emissora dos Diários Associados
em profunda crise financeiro/administrativa, sentiu a falta deles, que já o
ajudara no seu novo caminhar.
Em
busca de conhecer mais a respeito do Evangelho que acabara de abraçar, este escrevedor
passa a procurar avidamente por alternativas radiofônicas que lhe viessem a
auxiliar em um tal propósito. Assim, começa a ouvir emissoras como a Rádio Transmundial,
HCJB (A Voz dos Andes), entre outras que foram sendo identificadas e
incorporadas ao estreito leque de opções relacionadas a emissoras destinadas a transmitir
uma programação especificamente elaborada e desenvolvida para aquele público,
ainda tão diminuto, mas bastante necessitado de tais aportes. Dali em diante,
passa a entender que, conforme apontou acima, aqueles programas que teoricamente
eram feitos para “evangelizar” as pessoas
- notadamente aquelas que desconheciam a
Bíblia como sendo a “Palavra de Deus” e a sua mensagem, bem como o propósito do
Eterno, ao enviar Jesus Cristo ao mundo -, acabavam por promover a “edificação”
daqueles que já conheciam ou passavam a conhecer o evangelho. Portanto, logo na
primeira semana após o dia 20 de janeiro, passou a ouvir os programas acima
mencionados e, logo entendeu que a partir deles, poderia ouvir, agora com
atenção e cuidado, aquelas músicas que, pouco tempo antes, ele dizia serem
quase fúnebres.
Deste
modo, um dos primeiros hinos que ouvira em tal ocasião e, que depois ficara em
seu rememorar, a despeito do tempo que já se passara, foi cantada por José
Geraldo, cujo título era “Consumação dos tempos”, cuja letra, muito o impressionara.
A composição em causa, trazia expressões e personagens que lhe eram
inteiramente desconhecidos. Pouco ou nada ele sabia a respeito daqueles nomes
que o autor apresentava como heróis, nem daqueles eventos que dizia esperar
acontecer, em breve. A expressão “consagrado Jó” Ficou gravada no rememorar
deste aprendiz de escriba, desenvolvendo nele uma grande curiosidade para saber
quem era aquele personagem; o que tivera ele feito ou vivido e quando, para ser
tomado como um dos “expoentes” da fé. Mais tarde, ouvindo um pouco mais sobre “Jó”
e não tendo acesso a uma Bíblia onde pudesse ler sobre aquele patriarca da
antiguidade, desenvolveu um leque de equívocos sobre aquele homem que vivera no
Oriente, há cerca de quatro mil anos, sobretudo, naquilo que é mais evocado em
torno de sua vida: a “paciência de Jó”, no trato com os flagelos que lhe sobrevieram.
Reforce-se, que no tempo em que este que ora digita estas linhas ouvira a
música em questão, nada sabia sobre Jó, muito menos, sobre a sua vida repentinamente
virada pelo avesso e, após manter-se fiel ao Deus Eterno, passou a ser, outra
vez, o que fora antes.
José
Jorge Andrade Damasceno – historiadorbaiano@gmail.com
08
de outubro de 2021.