sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

BRASILINO VIEGAS, MARÇO DE 1969


Brasilino Viegas, março de 1969

 

Para José Mário, os dias, semanas e meses que precederam o cumprimento do que lhe fora prometido pela Delegada escolar de Alagoinhas, foram longos e cheios de grande ansiedade, uma vez que, a visita da referida autoridade occorrera por volta do mês de outubro de 1968 e, o ano escolar teria seu início somente no mês de março próximo.

Passado o torpor produzido pelo inesperado da notícia trazida pela autoridade máxima da educação municipal, o menino e sua mãe, passaram a viver, em diferentes dimensões, a expectativa do que estaria por vir e por se fazer, no sentido detornar concreta e palpável,  aquilo que, naquele momento, ainda era uma possibilidade distante, para não dizer, inalcançável.

A primeira dificuldade que se apresentava, estava diretamente relacionada às condições econômicas e sociais daquela senhora. Era ela o arrimo de sua casa; era com o seu árduo trabalho de lavadeira de ganho,que propiciava o alimento, o vestuário e o abrigo aos seus três filhos. Como então agregar mais este custo aos seus já sofríveis ganhos, representado pela necessidade de uniformizar adequadamente o filho que “paro ano” iria para a escola?

A segundadificuldade que fervilhava no “juízo” de D. Arminda, dizia respeito ao deslocamento do local em que residiam, até a escola onde o novo estudante seria inserido. O lugar onde moravam era distante da escola e, o menino não iria só, pois não enxergava,o que implicava em uma segunda pessoa que o levasse até o local onde estudaria e o trouxesse para casa. Para tanto, fazia-se necessárioo, a utilização de transporte, o que demandava recursos financeiros, para fazer frente a mais este gasto adicional.

De onde tirar os recursos para fazer frente a esta demanda que, diferentemente da primeira, seria diária e constante? Esta era a mais difícil das perguntas cotidianamente feitas por D. Arminda e de mais difícil e complicada resposta.

 O forneceimento de um “passe livre” ao acompanhante do menino, foi a solução encontrada para tal questão. Mas ela não foi imediata, tranqüila ou definitiva, visto ter enfrentado tenaz resistências dos proprietários das Kombes que faziam o transporte coletivo naquela área da cidade. Eles entendiam que o tal “passe” era do menino e não do seu acompanhante, que deveria pagar a passagem. Por este motivo, o menino estudante, pouco compreendendo o que se passava a sua volta, presenciou algumas altercações ásperas, entre cobradores, proprietários e acompanhantes, em torno da diferença de compreensão do “espírito” do  “passe livre”. Tão freqüentes os embates e, tanto se fizeram reiteradas as discussões, havendo mesmo sido objeto de mensões em algum periódico de circulação na época.  

A terceira dificuldade - esta já dizia respeito ao menino -, consistia na ansiedade que nutria, diante do tempo que teimava em manter o seu ritmo, obrigando José Mário a aguardar o rolar dos dias, semanas e meses, sem que nada pudesse fazer para acelerar aquela marcha,que a ele parecia, exasperadoramente lenta!

Dali há pouco chegara o Natal, que de novo só lhe trouxera a certeza da proximidade de outro ano; aliás, Natal, este ser estranho, que promete as felicidades embrulhadas nos presentes, que no entanto se fazem ausentes; é para o menino Zé Mário, um sujeito sisudo, austero e de pouca conversa; cheio de negativas, negativas e tantas negativas; um cara que não se importa com a sua existência,nem com a de sua mãe, irmãos.. O dito Natal chegava, apenas como uma data, visto nada lhe trazer, a não ser a certeza de que dependeria dos “caridosos” que viessem a exercer o papel teatral do lendário e distante “Papai Noel”... Sim, chegava o Natal, mas apenas o dia do calendário... Este, somente este, era perceptível pelo garoto, que ansiava mesmo era pela chegada do dia em que, finalmente, seria levado para a escola.

Apesar de não parecer, o sdias passavam; corria o verão de 1969 e, se aproximava o momento que o garoto Zé Mário tanto aguardava. Os galos, de longe ou de perto, quebravam o silêncio da madrugada, indicando aproximar-se mais um amanhecer. Os passarinhos, pouco a pouco, enchiam os ares com seus cantares multi-melódicos, dando traços definitivos ao alvorecer cootidiano da cidade. As cigarras buzinavam nas abundantes e frondosas árvores da região; as manhãs frescas e perfumadas preguiçosamente avançavam, à mendida em que os raios solares se faziam mais quentes. Abundabam os cajus, asmangas e as  jácas, enchendo os dias com seus aromas e aguçando os paladares de todos quantos apreciavam aqueles frutos fartamente coletados nos grandes quintais, enormes xácaras e nos vastos tabuleiros alagoinhenses. Janeiro, fevereiro, março...

Sim, março era o mês outonal por excelência. Como tal, trazia novidades, não só nas folhas caídas, nas mudanças de aromas, na gradual redução das temperaturas e nas cigarras com o buzinar já maduro, indicando o final do seu cículo. Era, principalmente, para Zé Mário,a efetiva chegada  do “paro ano” prometido pela Delegada escolar. Naquele março, começaria o seu primeiro ano letivo.

No dia aprazado, o menino acordou cedo, ou quiçá nem dormiu. Engoliu o café frugal; vestiu o uniforme, em um misto de contentamento e orgulho. Tudo era novo; tudo era agradável e, longe dele, estavam as preocupações de como seriam arrranjadas as coisas, para o permitir freqüentar, a tão ansiosamente esperada escola. O que a ele importava, era o fato de que aquele amanhecer de segunda-feira, se apresentava especialmente diferente. Os cheiros lhe enchiam os pulmões com mais suavidade e encanto; o chilrear dos pássaros nativos, se fazia mais intenso e e suas notas lhe pareciam incomuns, produzindo deleite aos seus ouvidos infantis.

Ouve-se da sirene da Leste, o último dos três toques, o das sete horas da manhã. Era hora de sair; de se dirigir até o local onde embarcaria na kombe que o levaria até o terminal. Entrar naquele veículo, ouvir as pessoas à sua volta, inquirirem daquela novidade de ir ele para a escola..

Ah, aquele trajeto feito a pé, desde o terminal situado na rua Castro Leal,até o prédio escolar Brasilino Viegas, observando-se um percurso de cinco quarteirões, a travessia de  seis ruas, até chegar ao local, onde vivera todo o seu processo de formação escolar, de lá saindo apenas para cursar a quinta série, no Centro Integrado Luís Navarro de Brito.

Grande foi sua alegria ao transpor o portão que dera acesso ao espaço que se lhe  apresentou enorme  e logo despertou no espírito, um desejo quase incontido de o perscrutar, como se quisesse se apropriar de cada um dos seus centímetros quadrados...

E as pessoas que se lhe foram apresentadas à sua chegada: diretora, Professora Perolina; Vices: Eufrosina e Valdete; bibliotecária Ednólia; merendeiras: Mariá (eram duas); vigias Manoel e Djaci; algumas outras professoras como Isanor, Jurilda, Dayse (nunca viria a saber qual era a grafia do seu nome), Dalva, lourdes, Josefa e Rita (estas vieram mais tarde a serem suas mestres nas séries seguintes); a zeladora, dona Rosalina... Ah, como estas pessoas ficaram nitidamente registradas em sua lembrança e se tornaram sempre presentes na sua memória!

Levado para a sala de aula, encontrara os professores Catarino e Vilma; os colegas Jessé, Edinice, Luís Gonzaga e José Reis (Reizinho).. Idades diferentes, perspectivas e objetivos diferentes, constituíam o diferencial entre todos eles. Em comum mesmo, apenas a cegueira, que os fazia iguais nos limites sensoriais e nos métodos de leitura e escrita que precisariam dominar, para prosseguir o processo de construção da vida escolar.

- José Mário, este ano você está na escola!

BRASILINO VIEGAS, MARÇO DE 1969


Brasilino Viegas, março de 1969

 

Para José Mário, os dias, semanas e meses que precederam o cumprimento do que lhe fora prometido pela Delegada escolar de Alagoinhas, foram longos e cheios de grande ansiedade, uma vez que, a visita da referida autoridade occorrera por volta do mês de outubro de 1968 e, o ano escolar teria seu início somente no mês de março próximo.

Passado o torpor produzido pelo inesperado da notícia trazida pela autoridade máxima da educação municipal, o menino e sua mãe, passaram a viver, em diferentes dimensões, a expectativa do que estaria por vir e por se fazer, no sentido detornar concreta e palpável,  aquilo que, naquele momento, ainda era uma possibilidade distante, para não dizer, inalcançável.

A primeira dificuldade que se apresentava, estava diretamente relacionada às condições econômicas e sociais daquela senhora. Era ela o arrimo de sua casa; era com o seu árduo trabalho de lavadeira de ganho,que propiciava o alimento, o vestuário e o abrigo aos seus três filhos. Como então agregar mais este custo aos seus já sofríveis ganhos, representado pela necessidade de uniformizar adequadamente o filho que “paro ano” iria para a escola?

A segundadificuldade que fervilhava no “juízo” de D. Arminda, dizia respeito ao deslocamento do local em que residiam, até a escola onde o novo estudante seria inserido. O lugar onde moravam era distante da escola e, o menino não iria só, pois não enxergava,o que implicava em uma segunda pessoa que o levasse até o local onde estudaria e o trouxesse para casa. Para tanto, fazia-se necessárioo, a utilização de transporte, o que demandava recursos financeiros, para fazer frente a mais este gasto adicional.

De onde tirar os recursos para fazer frente a esta demanda que, diferentemente da primeira, seria diária e constante? Esta era a mais difícil das perguntas cotidianamente feitas por D. Arminda e de mais difícil e complicada resposta.

 O forneceimento de um “passe livre” ao acompanhante do menino, foi a solução encontrada para tal questão. Mas ela não foi imediata, tranqüila ou definitiva, visto ter enfrentado tenaz resistências dos proprietários das Kombes que faziam o transporte coletivo naquela área da cidade. Eles entendiam que o tal “passe” era do menino e não do seu acompanhante, que deveria pagar a passagem. Por este motivo, o menino estudante, pouco compreendendo o que se passava a sua volta, presenciou algumas altercações ásperas, entre cobradores, proprietários e acompanhantes, em torno da diferença de compreensão do “espírito” do  “passe livre”. Tão freqüentes os embates e, tanto se fizeram reiteradas as discussões, havendo mesmo sido objeto de mensões em algum periódico de circulação na época.  

A terceira dificuldade - esta já dizia respeito ao menino -, consistia na ansiedade que nutria, diante do tempo que teimava em manter o seu ritmo, obrigando José Mário a aguardar o rolar dos dias, semanas e meses, sem que nada pudesse fazer para acelerar aquela marcha,que a ele parecia, exasperadoramente lenta!

Dali há pouco chegara o Natal, que de novo só lhe trouxera a certeza da proximidade de outro ano; aliás, Natal, este ser estranho, que promete as felicidades embrulhadas nos presentes, que no entanto se fazem ausentes; é para o menino Zé Mário, um sujeito sisudo, austero e de pouca conversa; cheio de negativas, negativas e tantas negativas; um cara que não se importa com a sua existência,nem com a de sua mãe, irmãos.. O dito Natal chegava, apenas como uma data, visto nada lhe trazer, a não ser a certeza de que dependeria dos “caridosos” que viessem a exercer o papel teatral do lendário e distante “Papai Noel”... Sim, chegava o Natal, mas apenas o dia do calendário... Este, somente este, era perceptível pelo garoto, que ansiava mesmo era pela chegada do dia em que, finalmente, seria levado para a escola.

Apesar de não parecer, o sdias passavam; corria o verão de 1969 e, se aproximava o momento que o garoto Zé Mário tanto aguardava. Os galos, de longe ou de perto, quebravam o silêncio da madrugada, indicando aproximar-se mais um amanhecer. Os passarinhos, pouco a pouco, enchiam os ares com seus cantares multi-melódicos, dando traços definitivos ao alvorecer cootidiano da cidade. As cigarras buzinavam nas abundantes e frondosas árvores da região; as manhãs frescas e perfumadas preguiçosamente avançavam, à mendida em que os raios solares se faziam mais quentes. Abundabam os cajus, asmangas e as  jácas, enchendo os dias com seus aromas e aguçando os paladares de todos quantos apreciavam aqueles frutos fartamente coletados nos grandes quintais, enormes xácaras e nos vastos tabuleiros alagoinhenses. Janeiro, fevereiro, março...

Sim, março era o mês outonal por excelência. Como tal, trazia novidades, não só nas folhas caídas, nas mudanças de aromas, na gradual redução das temperaturas e nas cigarras com o buzinar já maduro, indicando o final do seu cículo. Era, principalmente, para Zé Mário,a efetiva chegada  do “paro ano” prometido pela Delegada escolar. Naquele março, começaria o seu primeiro ano letivo.

No dia aprazado, o menino acordou cedo, ou quiçá nem dormiu. Engoliu o café frugal; vestiu o uniforme, em um misto de contentamento e orgulho. Tudo era novo; tudo era agradável e, longe dele, estavam as preocupações de como seriam arrranjadas as coisas, para o permitir freqüentar, a tão ansiosamente esperada escola. O que a ele importava, era o fato de que aquele amanhecer de segunda-feira, se apresentava especialmente diferente. Os cheiros lhe enchiam os pulmões com mais suavidade e encanto; o chilrear dos pássaros nativos, se fazia mais intenso e e suas notas lhe pareciam incomuns, produzindo deleite aos seus ouvidos infantis.

Ouve-se da sirene da Leste, o último dos três toques, o das sete horas da manhã. Era hora de sair; de se dirigir até o local onde embarcaria na kombe que o levaria até o terminal. Entrar naquele veículo, ouvir as pessoas à sua volta, inquirirem daquela novidade de ir ele para a escola..

Ah, aquele trajeto feito a pé, desde o terminal situado na rua Castro Leal,até o prédio escolar Brasilino Viegas, observando-se um percurso de cinco quarteirões, a travessia de  seis ruas, até chegar ao local, onde vivera todo o seu processo de formação escolar, de lá saindo apenas para cursar a quinta série, no Centro Integrado Luís Navarro de Brito.

Grande foi sua alegria ao transpor o portão que dera acesso ao espaço que se lhe  apresentou enorme  e logo despertou no espírito, um desejo quase incontido de o perscrutar, como se quisesse se apropriar de cada um dos seus centímetros quadrados...

E as pessoas que se lhe foram apresentadas à sua chegada: diretora, Professora Perolina; Vices: Eufrosina e Valdete; bibliotecária Ednólia; merendeiras: Mariá (eram duas); vigias Manoel e Djaci; algumas outras professoras como Isanor, Jurilda, Dayse (nunca viria a saber qual era a grafia do seu nome), Dalva, lourdes, Josefa e Rita (estas vieram mais tarde a serem suas mestres nas séries seguintes); a zeladora, dona Rosalina... Ah, como estas pessoas ficaram nitidamente registradas em sua lembrança e se tornaram sempre presentes na sua memória!

Levado para a sala de aula, encontrara os professores Catarino e Vilma; os colegas Jessé, Edinice, Luís Gonzaga e José Reis (Reizinho).. Idades diferentes, perspectivas e objetivos diferentes, constituíam o diferencial entre todos eles. Em comum mesmo, apenas a cegueira, que os fazia iguais nos limites sensoriais e nos métodos de leitura e escrita que precisariam dominar, para prosseguir o processo de construção da vida escolar.

- José Mário, este ano você está na escola!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Altamiro Borges: A injusta condenação de José Dirceu

Altamiro Borges: A injusta condenação de José Dirceu: Por José Reinaldo Carvalho, no sítio Vermelho : Na terça-feira (9), continuou o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Aç...

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O melhor é o pior | Carta Capital

O melhor é o pior | Carta Capital

Morre Eric John Hobsbawm (1917-2012)

O marxista Eric Hobsbawn foi o companheiro de malditas e intermináveis madrugadas regadas a mestrado e doutorado. Também foi cúmplice de muitas outras mentiras que resolvi contar. Não era companhia simples, fácil. Quando não concordava com ele, o homem colocava à prova a minha crença no que estava escrevendo, me chamando para a briga. Seus livros me lembraram que aprender é um ato doloroso – ao contrário do hedonismo pedagógico que alguns pregam nestes primórdios da era digital. Nem sempre o que ele tinha a me dizer era legal ou se encaixava no que eu acreditava, como muitos esperam que devam ser o conhecimento e o aprendizado hoje. Saber que o cara que escreveu tudo aquilo estava vivo e continuava defendendo seus pontos de vista “velhos”, “ultrapassados” e “cheirando a mofo”, mas – ainda assim – rebeldes, dava uma sensação de segurança neste mundo de acadêmicos de aluguel e discursos sem sentido, além do sentido que garantem a si mesmos. Sentia-me protegido. Por isso, a notícia desta manhã foi, de certa forma, um choque. Um senhor de 95 não é nenhum moleque, é claro. Pô, mas logo ele? E agora? Duvido que outro ocupe o seu lugar. Os tempos são outros. As pessoas também. Certo mesmo é que, para alguns, a perda de uma das vozes mais críticas do século 20 vai deixar as madrugadas mais sombrias e vazias. Enquanto que, para outros, sem aquele chato comunista apontando o dedo, o mundo vai ser mais colorido e feliz. (Extraído do Blog do Sakamoto, por Jorge Damasceno).

terça-feira, 25 de setembro de 2012

E o julgamento do "mensalão" ée justo e isento?

Extraídodo "Balaio do Kotscho Dez anos atrás, nesta mesma época, todo mundo queria ser amigo de José Dirceu, o coordenador da campanha que dali a alguns dias levaria Lula à sua primeira vitória nas eleições presidenciais. Hoje, é tratado pela maior parte da imprensa como se fosse o inimigo público número um, alguém a ser execrado e combatido de todas as formas, embora ainda lhe restem muitos amigos. Nomeado ministro-chefe da Casa Civil, Dirceu teve papel importante na formação do governo eleito, sem maioria no Congresso Nacional. Discutida durante várias semanas, a aliança com o PMDB, o maior partido no parlamento, não deu certo. Nascem aí, a meu ver, as dificuldades políticas do PT, que três anos depois levariam o partido a ser denunciado no caso do mensalão, dando início ao processo ora sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Bem antes, porém, do STF abrir suas portas para colocar em pauta a ação penal 470, José Dirceu já parecia condenado às penas máximas, e ponto — só não se exigindo a pena de morte porque não consta da nossa legislação. O bombardeio contra Dirceu na opinião pública foi de tal ordem que não podia mais haver nenhuma discussão sobre os autos e as provas constantes do processo. Simplesmente, não se admitia dos ministros do STF outra decisão a não ser condená-lo e mandá-lo para a cadeia, com ou sem provas, quaisquer que fossem os argumentos da defesa. Programado para coincidir com a reta final da campanha eleitoral, o julgamento de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares na próxima semana é tratado como causa vencida, antes que seja dado o primeiro voto no STF. Dirceu tornou-se o símbolo do PT a ser destruído, mas na verdade o que se busca com a sua condenação é desconstruir a imagem do governo de Lula, aprovado por mais de 80% da população, e do seu partido. No noticiário, nas colunas, nos blogs e nos comentários das redes sociais, virou uma guerra de extermínio, a vingança de quem perdeu o poder em 2002. É nesse clima de esfola e mata que um grupo de artistas, intelectuais e acadêmicos está preparando um documento, que já conta com mais de 200 assinaturas, em defesa de um julgamento que respeite os réus e não ceda ao massacre promovido pelos meios de comunicação. "Não reivindicamos a inocência de ninguém. Mas esperamos que os ministros do STF saibam punir quem tem de ser punido. E inocentar quem tem direito à inocência", diz um dos articuladores do texto, o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto, 82 anos, velho amigo do ex-ministro. "Não é um manifesto. É um texto filosófico-doutrinário de cidadãos brasileiros preocupados com a manutenção de alguns direitos constitucionais, sobretudo o direito à presunção da inocência", explicou Barreto a Fabio Brisolla, da Folha. "Somos contra a espetacularização do julgamento, o pré-julgamento e a pré-condenação que vem se fazendo publicamente. Esperamos que o julgamento seja feito no tribunal". O nome de José Dirceu nem é citado no texto. Um dos signatários é o arquiteto Oscar Niemeyer, que disse a O Globo: "Desde o início há uma campanha contra o José Dirceu. Um exagero.” O economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, que foi ministro no governo de Fernando Henrique Cardoso, justificou sua adesão ao documento por se tratar de "um texto que fala sobre como se aplicam os princípios de direito em geral, que precisam ser seguidos". Os autores do documento ainda não decidiram se a mensagem será enviada aos ministros do STF. Entre outros, assinam o texto o compositor e poeta Jorge Mautner, a empresária Flora Gil, mulher de Gilberto Gil, os cineastas Bruno Barreto e Tizuka Yamazaki, o escritor Fernando Morais e o músico Alceu Valença. Em outras palavras, questões jurídicas e político-eleitorais à parte, o que o documento dos seus amigos reivindica é respeito aos direitos do cidadão José Dirceu. Espalhe por aí:

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Operação Condor: Universindo, mi hermano | Conversa Afiada

Vale a leitura
inesperados hermanos no pampa uruguaio.




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Eles olham no olho dos Ministros do Supremo que anistiaram os torturadores









O Conversa Afiada reproduz do Observatorio da Imprensa artigo do jornalista Luiz Cláudio Cunha, que vai ajudar a Comissão da verdade a assar a batata do Geisel – quer dizer, a apurar a criminosa participação do Brasil, na famigerada Operação Condor.









Universindo, mi hermano





Luiz Cláudio Cunha





Um comando do Exército uruguaio, com a conivência do regime militar brasileiro, saiu de Montevidéu, atravessou clandestinamente a fronteira em novembro de 1978 e desembarcou em Porto Alegre, onde sequestrou um casal de militantes da oposição uruguaia – Universindo Díaz e Lilian Celiberti – e seus dois filhos menores. A operação ilegal foi descoberta por dois jornalistas brasileiros – o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco, da sucursal da revista Veja no Rio Grande do Sul. Alertados por um telefonema anônimo, dirigiram-se ao apartamento onde o casal morava, na capital gaúcha, e foram recebidos por homens armados. A inesperada aparição dos jornalistas quebrou o sigilo da operação e evitou que os sequestrados fossem mortos. A denúncia do sequestro, que ganhou as manchetes da imprensa brasileira, transformou-se num escândalo internacional, que constrangeu os regimes militares do Brasil e do Uruguai.



O trabalho de investigação de Veja e dos repórteres Cunha e Scalco foi distinguido, em 1979, com o troféu principal do Prêmio Esso, além de conquistar os prêmios Vladimir Herzog, Telesp e Abril (hors concurs). Em 2008, trinta anos após o sequestro, Cunha escreveu o livro Operação Condor: o sequestro dos uruguaios. Uma reportagem dos tempos da ditadura, publicado pela L&PM Editores e premiado com o Jabuti, o Vladimir Herzog e o Casa de Las Americas (Cuba), na categoria de Livro Reportagem (ver “Um jogo de paciência e investigação” e “As garras do Brasil na Operação Condor”, em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/).



Na segunda-feira (17/9), a Comissão Nacional da Verdade aprovou a criação de um grupo de trabalho voltado para a Operação Condor, o qual contará com a colaboração do jornalista Luiz Cláudio Cunha.



[Luiz Egypto, editor do Observatório da Imprensa]







O táxi parou à beira da grande avenida, em Montevidéu, e descemos do carro. Trocamos um beijo na face, na velha tradição uruguaia, e nos despedimos com um abraço apertado, acolchoado pelos casacos pesados que nos protegiam do frio de zero grau no final da manhã azulada, sob o sol tíbio do inverno no Uruguai.



Voltei ao táxi, que me levava ao aeroporto de Carrasco e ao voo de volta ao Brasil, e dei uma última olhada pelo vidro traseiro. Vi o homem encasacado, com o seu típico boné de lã, se afastando aos poucos, no seu passo lento e manco, engolido pela multidão.



Foi a última imagem que guardei em vida de Universindo Rodríguez Díaz, naquela terça-feira, 17 de julho de 2012. Passados 47 dias, Universindo morreu aos 60 anos, num domingo ainda frio, 2 de setembro. O homem que sobreviveu às torturas e violências das ditaduras no Brasil e no Uruguai, entre 1978 e 1983, não resistiu ao passo acelerado, imparável, de um mieloma múltiplo, um câncer agressivo e letal que se desenvolve na medula, gerando um crescimento desordenado dos glóbulos brancos, derrubando o sistema imunológico, comprometendo gravemente os rins e submetendo o paciente a dores fortes nos ossos.



Três décadas antes, Universindo padeceu na carne e na alma os efeitos de um suplício igualmente traiçoeiro, oculto, que se disseminava como metástase pelas veias abertas do Cone Sul: o terror de Estado, que atravessava fronteiras legais e geográficas e ultrapassava os limites do sofrimento humano graças ao foco maligno da Operação Condor, a multinacional da repressão que contaminou as Forças Armadas da região com o germe dos bandoleiros sem uniformes convertidos ao sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de quem se opunha ao arbítrio.







O DOI-CODI uruguaio



Universindo sobreviveu ao horror, a partir de novembro de 1978, quando foi sequestrado em Porto Alegre, numa blitz da Condor uruguaia, junto com Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo (8 anos) e Francesca (3). O casal desarmado, integrante do Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), uma sigla de esquerda clandestina (como todas as outras) que se opunha à ditadura no Uruguai, operava no sul do Brasil com um objetivo que fazia tremer os generais de Montevidéu: recolher informações em primeira mão de refugiados sobre as torturas praticadas nos 28 quarteis do território uruguaio e denunciá-las no exterior, por intermédio da imprensa e de entidades de direitos humanos na Europa.



Com a prisão e a tortura no início de novembro, em Montevidéu, de onze militantes do PVP, companheiros de Lílian e Universindo, a ditadura captou a presença do casal em Porto Alegre. Entrou em ação o DOI-CODI uruguaio. O Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas (OCOA), o CODI que pairava acima das quatro Divisões de Exército do país, acionou o seu braço executor, a secreta Compañia de Contrainformaciones, a versão local do DOI. A Condor uruguaia ganhou sinal verde em Brasília da Condor brasileira, representada pelo CIE, o Centro de Informações do Exército. Para a ação binacional da Condor em Porto Alegre foi mobilizado o mais afamado chefe da repressão política no sul, o delegado do DOPS Pedro Seelig, conhecido como o “Fleury dos Pampas”.



No domingo, 12 de novembro, uma semana após a prisão e a confissão sob torturas do grupo do PVP em Montevidéu, Lilian e Universindo foram detidos na capital gaúcha – ela na Rodoviária de Porto Alegre, ele duas horas depois no apartamento onde moravam, num prédio baixo da Rua Botafogo, no bairro classe média do Menino Deus. Nos dois momentos, o grupo de homens armados tinha o comando do delegado Seelig. Levados para a sede do DOPS, no prédio da Secretaria de Segurança Pública, na Avenida Ipiranga, os uruguaios foram torturados ali mesmo.



Lilian foi despida, encapuzada e encharcada com baldes de água para intensificar o choque elétrico provocado pela picana, a máquina de tortura ligada ao seu corpo por presilhas de metal fixadas nos dedos das mãos e nas orelhas. Universindo foi tratado com dureza ainda maior. Sem capuz, com as mãos algemadas nas costas, perdia algo da vestimenta a cada golpe que recebia. Primeiro a camisa, depois as calças, os sapatos, as meias. Poupam as cuecas, não poupam seu rosto, seu estômago, seu fígado.



Os brasileiros se revezavam na pancadaria com um homem baixo, entroncado, que bate ainda mais forte, um uruguaio de 32 anos, um oficial de um Exército estrangeiro atuando sem constrangimentos dentro de um prédio público brasileiro. O capitão Glauco Yannone era chefe da seção administrativa da Compañia de Contrainformaciones e invadiu o Brasil, com a conivência da ditadura brasileira e o aval da Condor, para fazer o que fazia melhor: interrogar e torturar.







Aprendizes da tortura



Aos 24 anos, ainda sargento, Yannone fez o curso de inteligência C-1 na Escola das Américas (SOA, sigla em inglês), o centro de instrução anti-insurgência que o Exército dos Estados Unidos montou em 1946 na Zona do Canal do Panamá. A SOA era a escola que transformou a democracia do continente numa zona. Por lá passou em três décadas um exército de 60 mil militares latino-americanos que dali extraíram o know-how que os levariam aos golpes de Estado e aos centros de tortura que implantaram o terror de Estado na região nos anos 1960 e 1970. Pela SOA transitaram 332 militares brasileiros – 325 alunos e sete instrutores, que brilharam nos cursos de Operações de Selva, Interrogatório de Inteligência Militar e Operações Psicológicas. Vinte e um deles acabariam despontando na galeria de torturadores da ditadura brasileira.



A influência dos Estados Unidos era forte no pensamento militar do continente – especialmente nos quatro principais regimes militares do Cone Sul. Em três décadas, no período 1950-1979, as academias militares estadunidenses foram frequentadas por 8.659 brasileiros, 6.883 chilenos, 4.017 argentinos e 2.806 uruguaios. Os militares uruguaios tinham uma preferência especial pela Escola das Américas. Nas duas décadas que antecederam o golpe de 1973, um total de 1.020 oficiais uruguaios frequentou 1.068 cursos da escola. Yannone aproveitou tão bem seus ensinamentos de 1970 que, três anos após o golpe militar em seu país, voltou à escola como primeiro-tenente, então matriculado como aluno do curso de “Inteligência Militar 0-11”, entre os dias 16 de janeiro e 28 de maio de 1976.



Como especialista e conterrâneo, Yannone é o que mais bateu em Universindo no DOPS de Porto Alegre. Bateu tanto que cansou. Então, sentou-se no chão, ao lado do preso algemado, e passou a socá-lo com força, com fúria. Tantos socos deixaram o punho do capitão uruguaio doído. Ele então tirou o mocassim que calçava e continuou a golpear Universindo, desta vez com o salto do sapato.



O capitão já não sentia dor, o preso agora sentia muito mais. Então o salto do sapato do capitão doía cada vez mais no corpo machucado de Universindo, mas as respostas continuaram insatisfatórias. Suas algemas foram retiradas e as mãos atadas ao tornozelo. Passaram uma barra de ferro entre os seus punhos amarrados e a dobra dos joelhos, e o penduraram a uns 50 centímetros do chão. De cabeça para baixo, Universindo parecia um frango assado. Ele estava provando o gosto amargo, dolorido, de uma genuína invenção brasileira: o pau de arara, um dos mais temidos instrumentos de tortura dos cárceres do Cone Sul, um legado verde-amarelo à barbárie. As perguntas continuaram, os golpes também. A dormência se infiltrou pelas artérias e veias dos pés e mãos, sem o sangue que se acumulava na cabeça rente ao chão. A dormência cedeu lugar à dor, uma dor cada vez mais insuportável, indecifrável, intangível.







A dor no sangue



Para aumentar o sofrimento de Universindo acoplaram eletrodos no braço, no pulso, na perna, na orelha, nos dedos. Uma dezena de conexões diretas com a dor. Alguém pegou um balde com água que foi jogada sobre o seu corpo seminu. O medo congelou, a água fria enregelou. A manivela girou mais rápida, os choques elétricos da picana provocaram estertores, estremeceram o corpo, mas Universindo continuou lutando e resistindo. O tempo, que não passava, parecia uma eternidade. Universindo foi pendurado pelo meio da tarde. Ficou lá até quase meia-noite de domingo. Horas com o corpo suspenso, como a vida. De repente, o choque e as perguntas cessaram. Ele já não sentia o corpo, só a dor. Tiraram seu corpo inerte do pau de arara e o deixaram no chão ensanguentado.



Universindo parecia morto por dentro, por fora. Ficou ali, moribundo, até que pediu para ir ao banheiro. Tiraram suas algemas e ele cambaleou rumo ao sanitário. Arrastou-se, lento, manco de dor. Abriu a tampa do vaso, imundo como aquele lugar, e sentiu um misto de dor e alívio acompanhar a contração da bexiga. Sentiu medo quando viu a cor escura da urina. Era vermelha, cor de sangue.



Seu organismo resistiu à descarga elétrica, mas o pau de arara descarregou no sangue a mioglobina, uma proteína responsável pela reserva de oxigênio nos músculos. A mioglobina foi liberada na circulação sanguínea junto com outras enzimas, iniciando o processo de insuficiência renal aguda. A mioglobina era um sinal de alerta, um sinal vermelho. Um sinal de sangue, sangue na urina. Passados trinta minutos, o alerta se converteu em ameaça letal: Universindo já estava ali há mais de quatro, cinco horas, pendurado como um naco de carne em um gancho de açougue.



A mioglobina, quando liberada na corrente sanguínea, passa a ser filtrada pelos rins, que não suportam a sobrecarga e começam a falhar. A proteína se decompõe no sangue, como uma toxina maligna que leva ao colapso os rins. Universindo não sabia, mas tornava-se uma vítima de rabdomiólise, que os médicos traduzem como uma síndrome causada por danos na musculatura do esqueleto, provocados por vazamento de mioglobina para o sangue. A urina cor castanha avermelhada que Universindo viu jorrar no vaso era a prova disso. A rabdomiólise vem acompanhada de convulsões, edemas, espasmos, calafrios, cãibras, febre, insuficiência renal e respiratória.







Descida ao inferno



Nos textos de medicina, a rabdomiólise é um distúrbio que afeta uma em cada dez mil pessoas de qualquer idade. Na crônica da tortura, é uma fatalidade que atinge dez em cada dez presos que passam pelo pau de arara. Universindo e sua urina cor de sangue eram a prova científica disso tudo. O efeito colateral de Yannone, de Seelig, da Compañía, do DOPS. Universindo era a sequela viva da Condor, o câncer do Cone Sul. Como o câncer que apressaria o fim de sua vida.



Universindo sobreviveu à sala de torturas do DOPS brasileiro para cair no inferno das prisões militares no Uruguai. Foi torturado por oficiais do Exército no forte de Santa Teresa, o quartel uruguaio em Chuy, no outro lado do extremo sul do Brasil. Voltou a apanhar na sede da Compañia de Contrainformaciones, na calle Colorado, em Montevidéu. O som do rádio aumentado era o prenúncio de novos sofrimentos na oficina mecânica do lugar, improvisada como área de torturas.



Em 6 de dezembro, 24 dias após o sequestro de Porto Alegre, Universindo – assim como acontecia com Lílian – desceu literalmente ao El Infierno, descrição exata para o mais temido centro de suplícios do país, a sede do 13º Batalhão de Infantaria, na esquina da Avenida de Las Instrucciones com a bulevar Battle y Ordóñez, em Montevidéu.



Universindo submeteu-se, ali, a uma férrea disciplina militar desenhada para quebrar o moral dos presos. Tinha apenas três minutos ao longo do dia para ir ao banheiro, em três horários absurdamente inegociáveis: seis da manhã, uma da tarde e nove horas da noite. Entre uma sessão e outra de pancadas, Universindo foi mantido sempre acorrentado, em posição fetal, até junho de 1979. Um tormento que lhe provocaria danos permanentes no joelho, deixando o seu andar mais lento, trôpego, sempre dolorido. Apesar dos castigos, a disciplina de Universindo crescia.



Ele se orgulhava de nunca ter revelado nada aos sequestradores, resistindo às torturas atrozes, aguçadas pela prisão dias antes de uma dezena de companheiros do PVP em Montevidéu. “Não falei porque estava convencido de que, naquele momento, a melhor forma de ajudar a luta revolucionária era o silêncio. Era preciso estar com o ânimo sereno, confiante, para poder suportar as torturas com dignidade e silêncio. As gerações de hoje não podem sequer imaginar o que seja um dia de tortura”, contou Universindo ao repórter Virgílio de Mattos, em uma entrevista publicada na revista Forum, em fevereiro de 2012.



Nada, na biografia de Universindo, apontava para a notoriedade. Filho de um modesto casal de trabalhadores rurais, com quatro irmãos e duas irmãs, ele nasceu em Artigas, departamento na fronteira com o Brasil, dominado pela criação de gado e fazendeiros conservadores que apoiavam os partidos tradicionais. O pai trabalhava em Bella Unión, base do sindicato dos canavieiros onde começou a despontar a liderança de um combativo advogado, Raúl Sendic. No melado da agitação sindical no campo começou a escorrer a radicalização política que acabou cristalizada, na década de 1960, no grupo de guerrilha urbana dos Tupamaros, sob o comando de Sendic. Universindo trocou o interior pela capital, com o sonho de curar os males do mundo. Queria ser médico e ingressou na Faculdade de Medicina.



A militância política na universidade cresceu junto com a crise da democracia. Universindo estava no quarto ano de medicina quando entrou na clandestinidade, para escapar à prisão de um regime cada vez mais arbitrário. Caçado em Montevidéu, cruzou o rio da Prata para sobreviver em Buenos Aires. Ali participou, em 1975, da fundação do PVP no exílio. A repressão coordenada pela Condor forçou sua saída para a Suécia, onde ganhou uma bolsa para concluir sua formação de médico. Nove meses depois, porém, de volta à militância com refugiados uruguaios na França e na Espanha, decidiu lutar mais de perto pelos patrícios que sofriam com a ditadura no Uruguai. Escolheu o Rio Grande do Sul, o estado vizinho a Artigas, sua terra natal. Optou pela segurança de Porto Alegre, onde fixou residência no apartamento da Rua Botafogo junto com Lilian e seus dois filhos.



Não esperava que a Condor fizesse na capital gaúcha o que costumava fazer na capital argentina. Até que aconteceu o sequestro de novembro de 1978.



Universindo, ao contrário da maioria de sua geração desgarrada pela violência, sobreviveu e emergiu da luta política como um cidadão engajado, íntegro, firme, sereno, de fala mansa, desprovido de rancor e consciente de sua história. O mundo perdeu um médico promissor e ganhou um historiador dedicado. Converteu-se ao resgate da memória do forte movimento sindical uruguaio, coordenando a produção de livros e documentários, na condição de chefe do Departamento de Investigação Histórica da Biblioteca Nacional.





A vida na bolha



Ele vivia assim, cheio de planos e projetos, quando foi surpreendido no início de janeiro passado com fortes dores nas costas. Internado às pressas numa terça-feira no hospital, soube que sofria de câncer na medula já num estágio avançado. No sábado, com o coração enfraquecido, foi transferido para a UTI, com complicações respiratórias e neurológicas. Um mês depois, contudo, o bravo Universindo estava de pé outra vez, numa surpreendente recuperação. Voltou a fazer planos, a discutir livros, a pesquisar imagens para novos documentários.



Em 19 de abril passado, a exemplo de Lilian e seus filhos, prestou depoimento em Montevidéu à juíza Mariana Mota sobre o sequestro de Porto Alegre, um dos 81 casos de crimes de lesa-humanidade reabertos por decisão do presidente José Mujica, o ex-líder Tupamaro que engrossou o movimento nascido na terra natal de Universindo. Ele estava retemperado pela certeza de que, enfim, acabaria a impunidade que protege há três décadas os camaradas sequestradores do capitão Yannone.



Existiam bons motivos para o otimismo contagiante de Universindo: Mariana Mota foi a dura magistrada que, em fevereiro de 2011, condenou o ex-presidente Juan María Bordaberry a 30 anos de prisão por liderar o golpe de Estado de 1973 que dissolveu o Parlamento e a centenária democracia do país, também responsabilizado diretamente por 14 assassinatos e desaparecimentos forçados durante a ditadura. Bordaberry cumpriu três meses na prisão e, por razões de saúde, foi transferido para sua casa, onde morreu dois meses depois, aos 83 anos.



Universindo ficou ainda mais animado, no final de julho, quando o Fundo Nacional de Recursos aprovou o financiamento para o seu autotransplante de medula óssea, programado para acontecer em duas semanas. Iria viver um mês no interior de uma “bolha” de isolamento para controlar sua baixa imunidade. Em meados de agosto, a cirurgia foi realizada com sucesso. Dez dias depois, apesar dos três potentes antibióticos que reforçavam suas defesas, Universindo começou a piorar. Foi surpreendido por uma traiçoeira infecção hospitalar, que irrompeu quanto estava fragilizado pela imunidade zero. A saúde piorou no sábado e ele morreu no domingo, 2 de setembro, em Montevidéu, ao lado da ex-mulher, Ivonne Trías, uma jornalista que passou 12 anos presa pela ditadura, e do filho, Carlos Iván, de 26 anos.





Nos versos da milonga Los Hermanos, o poeta argentino Atahualpa Yupanqui cantou:



Yo tengo tantos hermanos/ que no los puedo contar/



Een el valle, la montaña/ en la pampa y en el mar.







A tragédia da Condor em 1978 em Porto Alegre me regalou quatro inesperados hermanos no pampa uruguaio.



Um deles, mi hermano Universindo, de maneira ainda mais imprevista, acaba de assumir para sempre a dignidade do silêncio. E a eternidade da memória.


Texto extraído de
Operação Condor: Universindo, mi hermano | Conversa Afiada

sábado, 28 de julho de 2012

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar!

Em meio a aspereza da vida de lavadeira, ela ainda encontrava pedaços de versos para cantar!

José Jorge Andrade Damasceno
professordamasceno@gmail.com
historiadorbaiano@gmail.com


Era um dia já distante, no segundo mês da Primavera de 1935. Lá para as bandas de Piritiba, ou mesmo de Andaraí, região de Jacobina, nascia Armanda, ou Amanda, como gostava de ser chamada e, nbome que parece ter adotado para si. A primeira das três filhas de Vicente com Epfânia, trazendo consigo esperanças. Esperanças que talvez seus pais nutrissem. Talvez não fossem grandes, grandiosas... Mas, esperanças. Ou quem sabe, para aquele lavrador, não seria um desgosto por ser uma filha e não um filho?
Cresce a menina e, ainda na infância, vai-se-lhe a mãe e, impõe-se-lhe uma madrasta. A nova mulher do seu pai, certamente não lhe tivera o amor que lhe teria sua finada mamãe. Corre o tempo; crescem as três, em meio a travessuras, brincadeiras, peraltices folguedos infantis;mas também em meio a intrigas, brigas; surras; queixas... Sem letras, sem cultura; só a cultura da luta pela sobrevivência, já se apresentava diante delas, visto não terem o apoio materno, o agrado paterno; nem mesmo a possibilidade de educarem-se para a vida.
Ah Amanda... Aos dezoito se desencaminha; como ela dizia dera o “passo errado”. Ganhara uma brutal reprimenda, o olho da rua e a separação de suas duas irmãs, como conseqüência da decisão de se dar a alguém que não fosse aquele que lhe faria esposa!
E daí para frente, só sofrer; só tentar quantas soluções e alternativas lhe aparecessem, muito poucas, para aquela que sequer sabia “garatujar” seu nome! Não se sabe como, chegara em Salvador, onde fora doméstica;do mesmo modo não sabido, acabara em Alagoinhas, onde se envolvera com homens que vieram a ser pais dos três filhos que vingaram!
E para os abrigar, alimentar, vestir, calçar, instruir? A única profissão que se lhe apresentou desempenhar foi a de “lavadeira de ganho”, que apenas requeria a força dos jovens braços e o cuidado com as peças que lhes fossem confiadas para lavar, passar, engomar e entregar, de casa em casa, a cada uma de suas ”patroas”.
Tinha vinte e cinco anos completos, quando lhe nasceu o terceiro dos cinco filhos que tivera. Quase dois anos depois, aquele se tornara o que lhe demandaria mais preocupações, desvelos e esforços, pois ficara cego e, seria mais um encargo que viria sobre ela, pois, tão cedo, não poderia ajudar-lhe na faina pelo pão, pelo abrigo e demais necessidades qe a sobrevivência imporia a ela.
Vencida mais aquela desdita em sua vida, dona Amanda se tornava hábil em desempenhar as atividades braçais que se lhe apresentara como forma de bastar a si e aos seus: tinha já sua freguesia; inpunhava o ferro de brasas, com esmero e competência, propiciando-lhe demanda por seu serviço.
E nas mornas tardes de quinta e sexta-feira, quando passava as roupas lavadas entre a segunda e a quarta, embatia-se no trabalho de passar e engomar, tarde a fora, noite a dentro, entre soprares de ferro, reposição de carvões e brasas... Quase sempre em pé, sentando-se só para as parcas e rápidas refeições, dividida entre os afazeres do ganho e o cuidado com os filhos, ia dona Amanda, de semana em semana, de mês em mês, de anos em anos, enfrentando sua lida, quem sabe, esperando que algum dia, pudesse vir a ver algo melhor na vida.
Mas, a ela não faltou a melodia; os versos do cancioneiro, talvez aquelas músicas ouvidas quando ainda menina-moça, em meio às angústias de órfã de mãe.
E, a despeito das exigências que a vida e o trabalho que lhe esgotava as forças físicas, em seus lábios desfilavam pedaços de versos, ou mesmo trechos inteiros, que eram cantados em voz que exprimia sofrimento e, quem sabe, esperança de melhor sorte.
Boleros que exprimiam tristezas, desilusões e desventuras de amores, talvez exprimissem mesmo o seu viver de mulher que nunca tivera “sorte” no amar. Na memória de quem escreve estas linhas, a lembrança viva de sua voz cantando uma música que parecia ser ela própria a autora, cheia de dor e dolência, talvez pelas marcas das feridas que já marcavam aquela alma ainda tão moça, mas já esmagada pelo peso do viver quase errante, de quem fora lançada ao mundo, ainda tão precocemente, obrigada que fora a enfrentar a vida, sem o preparo para entender as suas armadilhas e, preencher as suas exigências:
“Vem o cigana bonita,
ler o meu destino,
que mistérios tem;
“Tu com estes olhos de quem vê o amor da gente;
põe nas minhas mãos, o teu olhar ardente;
E, procura desvendar o meu segredo;
a dor, cigana, do meu amor;
“Mas, nunca digas oh Zíngara,
que ilusão me espera
qual o meu futuro!”
Só aquela por quem vou vivendo assim a toa;
tu dirás se a sorte será má ou boa;
Para que ela venha consolar-me um dia;
a dor, Cigana, do meu amor

Se lhe fosse perguntado, ela pouco ou nada saberia sobre os intérpretes e compositores das melodias que cantarolava; ainda menos conhecia as circunstâncias e contextos nos quais foram escritas aquelas letras, que encontravam em seu espírito não alcançado pelos laivos de cultura e letramento, terreno fértil no qual espalhavam suas significações. Nunca tivera lido nada sobre quaisquer movimentos culturais, artísticos, visto seu total analfabetismo. Seu primeiro contato com livros, só acontece quando contava mais ou menos trinta e cinco anos, por meio do “Movimento Brasileiro de Alfabetização”, o (MOBRAL).
Como que se embalasse pelas lembranças e estas a ajudasse a encarar sua faina com um pouco mais de resignação, diante dos percalços que se lhe oferecia a vida difícil de uma trabalhadora braçal, entoava esta de Lupicínio Rodrigues (1914-1974), que talvez ela conhecesse pela imortal interpretação de Linda Batista (1919-1988):

“Eu gostei tanto,
Tanto quando me contaram;
Que te encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar..
E que quando os amigos do peito pormim,
Pertuntaram;
Um soluço cortou sua voz e não lhe deixou falar;
“Mas eu gostei tanto, tanto quando me contaram,
Que tive mesmo,
De fazer um esforço
Pra ninguém notar.
“O remorso talvez seja a causa do seu desespero;
Você deve estar bem consciente do que praticou;
Em me fazer passar essa vergonha, como um o companheiro
E a vergonha, é a herança maior, que meu pai me deixou;
“Mas enquanto houver voz em meu peito eu não quero mais nada,
Só vingança, bingança, vingança, aos santos clamar”
E você há de rolar como as pedras,
Que rolam na estrada;
Sem ter nunca,um antinho de seu,
Pra poder descansar”.

Talvez nos dias em que alguma saudade lhe explodisse no peito,cantarolava este bolero de Waldick Soriano (1933-2008), típico cantor de amores frustrados:

“Hoje que a noite está calma, e que a minha alma esperava por ti...
Apareceste afinal, torturando este ser que te adora
Volta, fique comigo só mais uma noite;
Quero viver junto a ti,
volta meu amor,
fique comigo,
não me despreze,
a noite é nossa
e o meu amor pertence a ti;
Hoje eu quero paz, quero ternura, em nossas vidas; quero viver por toda vida, pensando em ti.

E dona Amanda, sempre de posse de seu ferro de brasas, pouco depois substituído pelo elétrico, mais prático e, que dispensava os assopros e usos de abanos para voltar a esquentar satisfatoriamente, ainda arriscava um samba, como este de Benedito Lacerda (1903-1958) e David Nasser (1917-1980), imortalizado na clássica voz de Nelson Gonçalves (1919-1998):

“Vestida de azul e branco,
Trazendo um sorriso franco
Num rostinho encantador;
Rapidamente conquista meu coração sem amor;
Eu que trazia fechado,
Dentro do peito guardado
Meu coração sofredor;
Estou Bastante inclinado
A entregá-lo ao cuidado,
Daquele brotinho em flor
“Mas a Normalista linda, não pode casar ainda, só depois de se formar;
Eu estou apaixonado, o pai da moça é zangado, o remédio é esperar”.

Era a partir daquelas músicas que lhe saltavam as lembranças, que ela contava aos filhos, algumas passagens de sua vida; momentos de sua infância cheia de desditas familiares,que explodiam em sua memória, trazendo à tona, as recordações do lugar onde nascera e vivera, toda infância e pequena parte da juventude, se não esplendorosa, ao menos ao lado dos que eram seus.
Desde que expulsa de casa, nunca mais teve com quem contar em quem se ancorar, onde se abrigar, a não ser patrões, estranhos; amores momentâneos e ilusórios...
Era tudo isto evocado do fundo do seu silêncio, a partir daquelas músicas que, em meio as asperezas da vida de lavadeira de ganho, ela podia cantarolar, em um misto de alegria, nostalgia e melancolia, ao cair da tarde das quintas ou sextas-feiras.
Mas, pouco antes de completar trinta e nove anos, naquele junho de 1974, em uma noite fria de inverno, a morte do seu primogênito, ainda moço, aquele que a ajudava no arrimo familiar, fê-la calar de vez sua voz para o canto, dando lugar ao pranto,que nunca mais pôde enxugar.

sábado, 7 de julho de 2012

"E O MORRO FOI "PRO BREJO"!

E o morro foi pro brejo

JOSÉ JORGE ANDRADE DAMASCENO

Alagoinhas é uma região de tabuleiro, com grande área arenosa, e algumas formações argilosas, com pequenas elevações de terra. Era também caracterizada por um grande número de pântanos, riachos e rios, formando uma extensa área de charcos, sobretudo nos invernos de chuvas torrenciais.
Lá pelos finais dos anos 1950, foi loteada uma extensão de terra com aproximadamente 1600 metros quadrados, de propriedade do senhor Álvaro Dantas, localizada entre as margens do rio Aramari e o Alto do Santo Antônio, mais conhecido como Sobocó.
Como divisa entre uma área e outra, se interpunha uma barreira natural, um grande morro, com vegetação rasteira, formada por quaranas, velames, rabugens, malvas-brancas,carquejas, entre outras, além de algumas grandes árvores, como coqueiros, mangueiras, jaqueiras, cajueiros, etc. Bem no cimo daquele morro, havia uma casa grande, com uma sólida construção de pedras, que provavelmente tivera servido de residência do proprietário da fazenda que até então ali existira.
Chegam os anos 1960 e, com eles, os primeiros compradores daqueles lotes, que, ato contínuo, iam construindo suas modestas casas de taipa; alguns, iam se estabelecendo como pequenos criadores de gado leiteiro, porcos e carneiros, aproveitando a proximidade e abundância de águas e pastagem, além da grande disponibilidade e variedade de madeiras para uma gama diversa de utilidades.
A topografia do lugar e a falta de recursos financeiros suficientes e de meios técnicos adequados, fazia com que aquelas casas fossem erguidas de um único lado da nova rua, fazendo frente para o morro, que ao mesmo tempo fornecia o barro para a construção dos taipados, bem como para a produção de adobros.
Aquela era também a estrada por onde passava a boiada vinda de Boa União, para ser abatida no matadouro público municipal. Com a constante passagem de pessoas e animais, ia assim se formando o caminho, mais tarde ampliado e transformado em rua, que, se iniciava no chamado "caminho do rio" e, se estendia até as margens da estrada de ferro, que atravessada, chegava-se a um outro caminho que dava acesso ao citado matadouro
Entre os momentos mais marcantes na vida dos moradores da rua aberta em frente ao morro, são dois os que se destacam, por conta das conseqüências e mudanças produzidas no dia a dia daquela gente, de viver simples e sobrevivência difícil. Vão longe os anos, mas ficou viva na memória do cronista, a lembrança, de uma grande borrasca que se abateu na cidade, aí por volta de 1968, pouco mais ou menos, quando fortes ventos e chuvas torrenciais, provocaram o escorregamento de grande volume de barro, pedra e lama, ao ponto de quase soterrar as modestas casas de taipa, erguidas ali em frente, há poucos metros do grande barranco, socavado pela constante retirada de barro para aquelas construções toscas e frágeis.
Até mesmo a velha casa da fazenda, imponente e soberba, que reinava absoluta no cume daquele morro, sofreu grandes e irreversíveis avarias, até cair ou ser derrubada, não se sabe ao certo, algum tempo depois e, ter seus escombros aproveitados pelos moradores, para reforçar e alicerçar suas habitações, quando as puderam reformar.
Grandes árvores foram arrancadas e arrastadas pelo morro abaixo; outras envergaram definitivamente, como foi o caso de um imponente cajueiro que, literalmente, foi posto de joelhos pela força dos ventos, ficando assim, até ser cortado e transformado em madeira para as fogueiras juninas.
Os invernos torrenciais que se sucederam; as chuvas de verão, tão comuns na região, o constante retirar de barro pela população, contribuíram para promover um sério comprometimento do morro, colocando em risco a integridade daqueles moradores. Como ficou claro alguns poucos anos depois, durante uma temporada de inverno bastante chuvoso, quando pequenos, mas constantes deslizamentos de terra, ocorreram , trazendo para baixo, grande quantidade de lama e pedra, assustando tanto as pessoas que ali residiam, quanto as que passavam pelo local.
Talvez por este motivo, por volta do ano de 1974, pouco mais ou menos, ocorreu o segundo momento marcante na memória dos moradores da rua Jardim São Francisco.
Em algum alvorecer da infância ou adolescência dos que hoje contem em torno de cinquenta anos, o dia não parecia que seria diferente dos já transcorridos até ali. O sol nasceu como sempre, no intervalo entre as cinco e as seis da manhã. O cronista, ao acordar e encher os pulmões com aquele ar fresco e aprazível, os mesmos aromas matinais, aguçavam-lhe o olfato com um perfume deliciosamente indescritível, que só Alagoinhas tem. As aves já se erguiam dos seus ninhos; estudantes, trabalhadores, animais de carga e tração, se preparavam ou iniciavam seus labores, de acordo com aquilo que lhes era habitual, conforme fosse o seu cotidiano.
A meninada que estudava no vespertino, não perderia a chance de brincar por toda a manhã: Uns, preparavam seus badogues para as pequenas caçadas e derrubadas de frutas; outros se agrupavam para os jogos de bola de gude ou de botão; ainda outros, traziam seus carrinhos de madeira, para o dirigir livremente na rua, imponentes, como se eles fossem carros de verdade!
Mas, havia um quarto grupo de garotos, para os quais, aquele dia reservava grande surpresa. Trata-se daquele que tinha o morro como cenário de suas brincadeiras, como palco onde exibiam suas habilidades como impinadores de arraias; onde disputavam os "corta-linhas; lugar privilegiado de observação, de onde se podia assistir os estouros de boiadas, muito comuns ali, que fazia a diversão cinematográfica da garotada; lugar de onde se podia ver, para além dos quintais das casas situadas metros abaixo; lugar de onde se podia descortinar a bela paisagem que se apresenta exuberante a quem a queira, ou possa admirar. Também aquele morro, era o lugar por excelência, das grandes e arriscadas travessuras sobre as árvores que não sucumbiram aos açoites da tempestade de alguns anos antes.
Mas então, o que estava por vir? Naquela manhã se descortinava um espetáculo diferente, diante dos moradores, que estupefatos, viam chegar algumas máquinas e homens da prefeitura, para fazer ali, ainda não sabiam o que. O barulho e o peso dos equipamentos faziam as frágeis casas estremecer, como se estivessem sendo sacudidas por terremotos, o que acabou por provocar rachaduras em muitas delas, deixando assustados seus proprietários.
Afinal, o que fariam ali, aquelas máquinas? Abririam mais a rua? Fariam alguma escavação para, quem sabe, passar a tubulação da “Saé”, para permitir aos ali residentes, desfrutar do abastecimento de água encanada? Afinal, o local de onde se fazia a captação, tratamento e distribuição, não distava mais de trezentos metros dali! Ah, quantas esperanças, especulações e expectativas estavam nas mentes e desejos dos moradores daquele lugar, tão distante do centro da cidade e esquecido pelos gestores públicos!
A resposta a estas perguntas não se fez esperar. Não era para fazer o alargamento da rua; nem para trazer melhoria, propiciando o recebimento de água encanada; nem mesmo, para fazer um nivelamento do logradouro, dando uma uniformidade no terreno cheio de altos e baixos, que aqueles equipamentos estavam ali se posicionando. Logo percebeu-se que aquelas máquinas estavam ali, para colocar aquele morro sobre as caçambas que também já chegavam ao local, a fim de o levar para o brejo.
Sim, o morro iria para o brejo situado na frente da estação ferroviária, entre o 2 de julho e as margens do rio Catu, onde seria despejado todo aquele volume de barro e cascalho, com o fim de aterrar o local que, mais tarde, viria a ser a Central de Abastecimento e a avenida Lourival Batista.
Ah, mas o morro não foi pro brejo sozinho e vazio. Levou consigo reminiscências dos que lá subiram para brincar, para correr; para escalar as árvores e nelas fazer peripécias e piruetas, as mais audaciosas e perigosas; dos que lá se engarupitaram para assistir os espetáculos que, bois embravecidos e vaqueiros encolerizados, protagonizaram inúmeras vezes.
Também levou consigo as lembranças de quem freqüentou a velha casa que ruíra, quando nela ainda havia morador, para lá ouvir, quase sempre no final da tarde e início da noite, em uma radiola Philips portátil, discos de Ludrugero e Otrope, Gerson Filho, Barnabé, Osvaldo Nunes, Jacinto (o donzelo); as músicas de dor de cotovelo de Waldique Soriano, do Ciriema, ou as da jovem guarda de Wanderley Cardoso, Wanderléia, Roberto e Erasmo Carlos... os baiões de Luís Gonzaga, Carmélia Alves, Marinês e sua gente,Trio Nordestino! E tantos, e quantos! Sim, tantas histórias de vida, quantas memórias vividas naquele morro, que foi “pro brejo”!

professordamasceno@gmail.com; historiadorbaiano@gmail.com

O MENINO JOSÉ MÁRIO

José Mário, paro ano, você vai para a escola
JOSÉ JORGE ANDRADE DAMASCENO

Naquela casa de taipa, coberta de telha vã e, sem reboco externo, o interno era feito a base de areia e cal; com pouca divisão em cômodos; na cozinha um fogão de lenha e/ou carvão vegetal; o banheiro de palha, separado do corpo da casa; o piso era de chão batido, mas muito limpo, morava dona Arminda com seus três filhos e seu companheiro.
Era uma mulher de seus trinta e poucos anos, forte de caráter e robusta de disposição para o trabalho, embora seu corpo nem sempre correspondesse àquela demanda pelo ofício de lavadeira de ganho, com o qual provia a si e aos seus, ajudada pelo companheiro ferroviário e pelo filho mais velho, primeiro como aguadeiro, depois como aprendiz de carpinteiro.
Mal o sol aparecia no horizonte, dona Arminda já se punha em pé, para enfrentar o seu labor diário. Depois de dar café aos filhos, arrumava três ou quatro trouxas de roupa em uma grande bacia, dava as instruções à filha do meio, com respeito ao almoço e saía em direção ao rio, não muito longe dali, para juntar-se a outras mulheres do seu mesmo ofício, para ensaboar, bater, "tirar o sujo", quarar, enxaguar, estender e enxugar as roupas que lhes eram confiadas, por patroas diversas, tarefa que lhes ocupava quase todo o dia.
Em tempos de sol abundante por volta das três ou quatro da tarde, já estava de volta, com parte da tarefa executada, não sem grande fatiga do corpo, que não teria descanso antes das nove ou dez da noite, pois teria que separar, dobrar e organizar cada peça, relacionando a cada patroa, não podendo perder a precisão de saber exatamente a qual delas pertencia cada lençol, cada vestido, camisa, calça, toalha de banho ou de mesa; não poderia chegar para a entrega e ouvir desta ou daquela patroa que, tal peça não viera; ou que qual peça não lhe pertencia!
Depois de separar e organizar cada peça de acordo com suas respectivas donas, era hora de botar brasa e carvão no ferro e, pô-lo para "pegar", a fim de com ele, iniciar a segunda parte de sua tarefa semanal: passar, engomar e preparar cada roupa para ser entregue na tarde da sexta ou na manhã do sábado, esperando a remuneração pelo seu trabalho, para com ela fazer o "arranjo", que permitiria mitigar a fome dela e dos seus filhos.
Corria o ano de 1968. A cidade passava por transformações estruturais de grande impacto no modo de viver de sua elite social, na medida em que se implantava o serviço de fornecimento de água, que até ali era feito no lombo de jegues e, uma vez concluída a construção da estação de capitação e a instalação da tubulação, passaria a ser encanada e tratada.
Ali, bem ali, às margens daquele rio onde dona Arminda e suas companheiras desenvolviam as atividades por meio das quais levavam o sustento para casa, começava a ser erguida a construção sobre a qual seriam instalados os equipamentos que fariam funcionar a estação de capitação, tratamento e distribuição de água, por meio de redes de encanamentos e reservatórios, que levaria aos lares dos ricos da cidade, aquele precioso líquido, agora tratado e distribuído, segundo os mais modernos métodos e processos então existentes.
Dando vasão a sua fama de cidade sempre a frente nos processos de modernização da vida urbana, Alagoinhas vivia aquele momento ímpar de sua história, aguardando com grande expectativa o instante em que as torneiras não mais seriam abertas por algum tempo, com seu abastecimento individual feito por jegues ou bombas, mas teria vasão constante, no momento em que precisasse, pois suas caixas d'água estariam sempre cheias, pois agora, receberiam automaticamente aquele valioso líquido, impulsionado pelo sistema operado pelo serviço autônomo de água e Esgoto.
Talvez por volta de setembro ou outubro daquele ano, dona Arminda se encontrava já em casa, realizando a segunda parte de sua faina cotidiana, quando recebe a inesperada visita de uma senhora rica, bem vestida, que fizera parar seu automóvel na frente daquela tosca residência, ainda sem energia elétrica, incrustada em uma rua sinuosa, poeirenta, apertada e sem qualquer tipo de pavimentação, por onde passavam as boiadas com destino ao matadouro público municipal. Por ali, raro era chegar um automóvel, menos ainda, um em cujo interior, se encontrasse uma autoridade.
Por isso mesmo, não foi sem surpresa que, naquela tarde morna de primavera, dona Arminda recebera em sua casa, aquela senhora de fino trato, bem vestida, bem arrumada, de mãos finas e delicadas, tão contrastantes com as suas, já grossas e ásperas, embora ainda não tivesse trinta e três anos completos.
Aquela mulher que se achava diante de dona Arminda, não era ninguém mais, ninguém menos, do que a professora Dilse, uma das autoridades da cidade e, na educação era a maior delas. Por suas mãos passavam as nomeações das professoras, o funcionamento dos estabelecimentos de ensino público e a vida escolar dos alunos matriculados na rede estadual.
Aquela distinta senhora da sociedade Alagoinhense, ocupava o cargo de "Delegada escolar", posto a partir do qual exercia o poder político de uma das famílias tradicionais da cidade e, exercia grande influência, no que respeita a cooptação de votos e correligionários para com isso, poder manter o status de autoridade política e educacional que lhe fora atribuída.
- Boa tarde,dona Arminda. Posso entrar?
- Boa tarde minha senhora. Entre, sente...
Tendo entrado e se acomodado naquela cadeira rústica de compensado envernizado, a visitante tratou de ser direta e objetiva, passando imediatamente a tratar do motivo que a houvera levado até aquele lugar.
- Dona Arminda, eu estou aqui, pois fiquei sabendo que, a senhora tem um filho que não enxerga e ainda está fora da escola.
Sim, dona Arminda de fato tinha um filho que, pouco antes de completar o segundo ano de vida, ela descobrira que suas desconfianças de meses se faziam reais. O menino não enxergava. Era o menor dos três filhos que a ela cabia sustentar com seu trabalho duro de lavadeira de ganho.
O pai do garoto era um açougueiro conhecido no lugar, cujo único apoio que dera àquela mulher, fora, não sem muito custo, o reconhecimento da paternidade, através do registro de nascimento.
Talvez, sua história e a existência do garoto, que no momento da visita da Delegada escolar, contava sete anos, tivesse chegado ao conhecimento daquela autoridade, através de alguma das patroas de dona Arminda, pois algumas vezes, levara consigo seu filho, para alguma de suas muitas entregas de roupa.
Diante do espanto da dona da casa, a professora prosseguiu:
- Estamos aqui para dizer a senhora que, a partir do próximo ano, já será possível colocar seu filho na escola.
- Sim senhora! Mas...
- No prédio escolar Brasilino Viegas - interrompe a professora -, vai funcionar uma escola para cegos, com professores que darão a seu filho a oportunidade de estudar, sem que precise ir para o Instituto de Cegos em Salvador. A senhora entendeu?
- Entendi sim senhora.
- Onde está o menino?
- Tá no quintal, responde dona Arminda,voltando-se para o fundo da casa:
- Oh Zé Mário!...
José Mário se encontrava no amplo quintal, mergulhado em areia e brinquedos improvisados, alheio ao que se passava no interior da casa, visto procurar envolver-se naquela que era sua única forma de passar o tempo, que já lhe parecia longo, vivendo da casa para o quintal, com alguns momentos esporádicos de brincadeiras com as outras crianças de sua idade, tendo que ficar em casa quando todos os demais estavam ocupados e ele ali, sem que pudesse estudar como seus demais colegas e irmãos.
Não tendo o menino atendido ao chamado da mãe, esta manda que outra pessoa o vá chamar, pois a professora Dilse estava ali e o queria ver.
Chegando no interior da casa, sem que houvesse tempo de ao menos disfarçar o emburralhamento que se encontrava, ainda sem entender bem o que fizera com que sua mãe o chamasse até ali, visto não ser ainda a hora do café, ouve a pergunta da delegada escolar, a pessoa estranha que se encontrava a sua espera:
- José Mário, você quer estudar?
- Claro! Claro que quero! Todos aqui estudam; eu não, responde o menino.
- E você já estudou alguma vez?
- Um pouquinho; fiquei no Instituto em Salvador, mas, mãe não deixou eu voltar, porque quando vim de férias, estava muito magro e ...
Dona Arminda interrompeu para explicar:
- Acho que os maió, maltratava muito ele. Ele chegou aqui com uma laranja nas costa e outra na coxa... Dei a ele sumo de vassourinha, mastruz e, foi o que melhorou.
A professora Dilse retoma a palavra e afirma ao menino:
- Paro ano, você vai estudar. Vamos trazer professores aqui, para você estudar no Brasilino Viegas. Tá contente com a notícia?
- Tô, tô, responde o menino, com alguma euforia e grande surpresa, dado o inesperado da novidade.
Feitas as tratativas e acertadas as coisas com dona Arminda, a professora Dilse se despede, garantindo ao menino que no ano que vem, ele estará freqüentando a escola, como faziam seus colegas e irmãos.
Alguns meses se passaram depois daquela visita da delegada escolar a casa de dona Arminda. O menino vivia uma intensa ansiedade e tinha grandes expectativas do chegar o dia da ida para a escola. José Mário, contava as horas e, para ele os dias quase que não passavam. Não pensava em outra coisa, não queria outra coisa. Esperava com ansiedade, o momento em que voltaria a tomar contato com o Braille, o Cubarítimo; enfim, que passaria a ser chamado de estudante, seria aluno de algum professor, como o eram todos os da sua idade.
Mas, ao mesmo tempo, grandes eram as dúvidas que povoavam a cabeça de dona Arminda. Entre elas, de qual seria o modo como isso se daria, visto que os recursos daquela mulher, mesmo somados aos do seu companheiro, mal chegavam para o provimento do dia a dia: alimentos, roupas, calçados, higiene... Como então seria para mandar o menino para a escola, uma vez que quem o levasse teria que pagar a passagem na Kombe? E a farda do menino? Com qual roupa ou calçado iria ela mandar o filho para a escola?

PROFESSORDAMASCENO@GMAIL.COM; HISTORIADORBAIANO@GMAIL.COM

terça-feira, 26 de junho de 2012

O AGUADEIRO, O JEGUE E O LAPO DE RELHO

O AGUADEIRO, O JEGUE E O LAPO DE RELHO.

JORGE DAMASCENO

Alagoinhas, naqueles idos e já bem distantes anos, era um aprazível lugar do interior, com grande diversidade de vegetação nativa, que servia a população de um modo geral e aquela parcela mais pobre em particular, fornecendo madeira dos mais variados tipos, para todos os fins: carvoaria, lenha para a preparação de alimentos; construção de casas e mobiliários; aquecimento e construção de cercas, fabricação de gaiolas e caixotes para os mais diversos usos.
Era também dona de um agradável desfilar de ervas e plantas, frutos dos mais variados matizes, que aguçavam o olfato e instigavam o paladar de todos quantos os pudessem saborear, em seu tempo, em sua estação. Laranjas, mangas, jacas, cajus, araçás, goiabas, abacates, cajás, cajaranas, tamarindos, graviolas (jaca de pobre), jambos e suculentas mangabas, são apenas alguns que ocorrem lembrar. Faziam parte inseparável do dia a dia das pessoas, sendo consumidos in natura ou, sob várias outras formas, como doces, sorvetes, picolés, abafabancas, geléias e, tantas quantas a imaginação culinária permitisse.
Neste desfilar fértil de cores, cheiros, sabores e ruídos, se levanta e se deita a cidade, ao som do “Pirulito”, permeado pelo mugir das vacas leiteiras, do cacarejar das galinhas nos muitos quintais, do burburinho dos rios e riachos que cortam a terra plena de ingazeiras, então abundantes naquela paisagem; pelo ruído monótono das casas de farinha e, aqui e ali, o miar de gatos e o uivar de cachorros, completam o caldal de sons que marcavam aqueles tempos em que, os sinos das igrejas e o apito da oficina ferroviária, que podia ser ouvido em toda a cidade, marcavam o amanhecer e anoitecer do viver do lugar.
Aquela em especial, era uma madrugada fria de agosto; estava ainda escuro, só a lua e algumas poucas estrelas, davam alguma luz; o vento de inverno soprava livre e gelado, naqueles já distantes anos 50 do século XX.
Três e meia ou quatro da manhã, não chovia e, talvez fizesse um 16 graus, aquele aguadeiro despertava para mais um dia duro de labutas. Era seu ofício, o modo de ajudar prover a subsistência de uma mãe lavadeira e mais dois irmãos menores, que com ele formavam aquela pequena e pobre família.
Zé Carlos, este era o nome pelo qual o chamavam a freguesia e os parentes. Era novo ainda, parecia ser mais velho do que o era de fato. Desde muito cedo, talvez entre os treze e quatorze anos, já estava acostumado no ir e vir de aguadeiro, nem precisava ser despertado no horário; o corpo já o fazia quase que automaticamente.
Deixando para trás a cama de tábuas, cujo colchão eram duas esteiras sobrepostas e as parcas cobertas de taco, que lhe aqueciam o sono, saía para procurar o animal com o qual contava para a sua labuta cotidiana: o jegue, que pastava apeado, ali por perto, visto ser aquele lugar, bem rico em feno com o qual recobrava um pouco das energias despendidas no dia anterior, no ir e vir carregando os quatro barris que lhe pesava no dorso de poucas carnes, mas muitas cargas.
Ao encontrar o pequeno asno, Zé Carlos o trazia para o lado da casa de taipa onde residia; dava algum milho misturado com farelo; água para que completasse seu repasto, enquanto trazia uma manta de palha, que minoraria o desconforto da cangalha que logo seria colocada, ajustada com cuidado e apertada com grossa chincha de couro cru, para evitar que, com o ir e vir do animal e o balançar da carga,aquela cangalha viesse a escorregar em seu dorso suado.
Tendo o jegue Acabado de comer sua ração, o aguadeiro trazia os quatro barris de madeira, que eram colocados equilibradamente nos suportes de ferro previamente presos na cangalha, de modo a ficarem dois barris em cada lado,talvez tivessem capacidade para vinte ou trinta litros de água cada um.
Aos poucos a manhã se fazia raiar, ouvindo-se pouco a pouco o chilrear dos muitos pássaros que viviam na região: garrinchas, Bem-te-vis, papa-capins, viuvinhas, sanhaços, azulões, que formavam a orquestra indescritível e deliciosamente agradável aos ouvidos dos que tem a ventura de estar de pé nas primeiras horas da madrugada, cujos maestros eram os diversos galos das redondezas, que conduziam o concerto à diversas distâncias, sem no entanto perder a sincronia da bela música que executavam em meio aos arvoredos, arbustos e grande variedade de perfumes naturais que invadem os pulmões daquele rapaz, que àquelas horas, já se botava para o chafariz ou riacho mais próximo, afim de encher seus barris e iniciar o trabalho de abastecer as casas de sua freguesia.
Atendendo a uma boa quantidade de fregueses, Zé Carlos conduzia seu jegue indo e vindo, a encher os barris e os transportar para as casas que servia com seu trabalho, dia pós dia, mês pós mês, anos pós anos.
Aquele dia então amanhece frio mas ensolarado,com uma paisagem formada não mais, apenas pela vegetação, pelos cheiros vindos dos laranjais abundantes e próximos,ou pelo cantar dos pássaros. Começam a aparecer as primeiras pessoas que se dirigem aos seus lidares diários; as lavadeiras que se dirigem ao rio com suas bacias de roupa por lavar; outros aguadeiros que lhe cruzam o caminho, no mesmo ofício, no mesmo mourejar; os homens da ferrovia que se dirigem para a oficina a fim de desenvolverem seu ofício de fazer reparos em locomotivas e vagões; pãozeiros, que ofereciam de casa em casa, aquele alimento tão do cotidiano de pobres, ricos ou “remediados”;trabalhadores outros, como os dos curtumes, dos trapiches, ofícios enfim, comuns a Alagoinhas fomageira e coureira dos inícios e meados do século.
Assim, homens, mulheres e crianças... Sim, crianças indo e vindo, de diversas idades, envergado diversas fardas escolares, davam o tom daqueles dias de inverno, se apresentando para as diversas atividades que cabia a cada um levar a termo, em todo o dia.
E o jegue? Ah, o jegue... Quem visse de longe, até poderia dizer que era um animal dócil, acostumado a transportar aquela carga; ajustado aquele ir e vir diário, em seu passo miúdo e constante... Ah, aquele jegue! Era um ser de pequeno porte, rijo, bom para transportar pequenas cargas, de grande utilidade para o homem simples que dele precisasse para atividades que não exigissem grande força muscular; de grande utilidade, mas de temperamento forte e tenaz, com manias e matreirices únicas.
Naquela manhã de terça ou quarta feira, não se sabe ao certo, Zé Carlos talvez estivesse fazendo a segunda ou terceira viagem do dia, no encalso de seu sustento, em um farfalhar constante, de encher e esvaziar barris; de carregar e descarregar os vazilhames, levando-os e despejando-os nos recipientes da freguesia; de tocar o jumento e, exigir dele empenho que, especialmente naquele momento, o animalzinho não se dispunha a obedecer.
Entre chicotadas e imprecações, iam-se os dois em um caminhar lento, nervoso mas, até ali, sem percalços. Seguiam ambos pela extensa rua 2 de julho, pouco depois da movimentada Estação Ferroviária, na direção do centro.
- Jegue!
Vociferava o rapaz, aos ouvidos insubmissos e lenientes do animal, quase louco de cólera, vendo passarem-se as horas e apertando o tempo para cumprir o dever com seus fregueses:
- Anda, jegue dos diabos! Táááá! Estalava o chicote e o animal pouco avançava, o que aumentava ainda mais o desconforto do pobre homem.
- Tááááá! Tááááá! Jeeegue! Gritava o aguadeiro.
- Táááá! Zip!
- Ai moço! O senhor me machucou!
Entre uma chicotada e outra, já se interpunha uma colegial. Uma garota, de seus doze ou treze anos presumíveis, fardada, saia e blusa bem engomadas, indignada por ver aquele animal tão surrado, em baixo de tão grande carga, se lança sobre o homem encolerizado, que não tivera tempo de reter o braço e, deixa um lapo de relho em suas costas!
- Arre menina; não basta este jegue dos diabos e você agora para me trazer mais desgosto? Que vou dizer a tua vó? Como me explicar aos teus tios, quando for a vez de entregar lá, a água?
Se inquietava e lastimava o homem, acabrunhado por ter lapeado a jovem com seu relho e, se sentindo culpado de ter interrompido o caminho da garota para a escola, o que lhe custaria um dia de aula, pois não poderia entrar no Colégio das Freiras onde estudava, com a blusa suja e, as costas machucadas.

terça-feira, 19 de junho de 2012

A CADEIRA DA PENSÃO DE SEU JOÃO BISPO

A cadeira da pensão de seu João Bispo

*Jose Jorge Damasceno

Ao amanhecer, aquele dia parecia que seria mais um como todos os que o senhor João Bispo houvera vivido até ali: o Pirulito partindo às quatro e meia da manhã, ou chegando à boquinha da noite..; o Rápido, o Misto, trens que enchiam a cidade com seu apito e com o resfolegar cansado de suas locomotivas, que quebravam o silêncio das horas, dando vida e trazendo ares de cidade àquela pacatíssima localidade do interior, mostrando ao observador descuidado, que aquele lugar não era feito só de marasmo e dos movimentos miúdos das crianças para a escola.
Ele acordou cedo, ergueu-se do leito, caminhou para o quintal, a fim de fazer sua higiene pessoal. Enquanto isso, pensava no trabalho daquele dia; no trato com os hóspedes habituais, se lhe chegaria algum novo; se daria conta do serviço que tinha sob sua responsabilidade, enfim, Seu João Bispo , como todos o chamavam, refletia naquele dia que se iniciara, como talvez o fizesse todos os dias.
Pelo meio dia, tudo dentro da normalidade: mesa preparada, os hóspedes de costume; algum outro que apenas ali se encontrava para a refeição, visto não ser possível ir até a própria casa, refazer as energias para continuar o seu trabalho.
Seu João Bispo a tudo observava, com cuidado e esmero, procurando fazer com que os que buscassem refúgio e restauro no seu estabelecimento, dali saísse satisfeito e atendido, o que, certamente, faria com que voltasse outras vezes.
Por sua vez, o dia se arrastava pesado. Talvez fosse um daqueles dias de verão de Alagoinhas, quente, com o sol em sua plenitude, forçando os que precisavam sair do interior das casas ou estabelecimentos comerciais, o enfrentar com galhardia, volta e meia limpando a testa com a mão, ou mesmo com algum lenço, talvez encontrando aqui, ou ali, uma sombra de árvore que lhe pudesse mitigar a inclemência do sol da uma ou duas da tarde, precisamente naquele horário em que a comida ainda trás ao transeunte, aquela sensação de moleza e cansaço.
Caía a tarde e, com ela, crescia a expectativa de seu João Bispo, em torno do que poderia trazer de novo e alvissareiro para os seus ganhos comerciais, a chegada do trem daquele início de noite, que lhe pudesse ajudar nos seus anelos de dono de pensão; ou que pudesse talvez lhe mudar um pouco a rotina e trazer alguma nova da Bahia, que tanto poderia ser de alegria, de preocupação, de aborrecimento ou, quem sabe o que traria o trem, àquele senhor de meia idade, que buscava o sustento diário, através daquela atividade, por vezes de ganho incerto, mas que tinha um ritmo que ele precisava manter, sob pena de ter dissabores, na hora de fechar as contas em torno do gasto e do obtido com seu trabalho.
A sirene da Leste marca quatro e vinte, logo depois quatro e meia; saem a toda pressa os funcionários da oficina que funcionava ali próxima, como próxima era da Estação a sua pensão.



Levas de operários borbulhavam da oficina, como se de repente um formigueiro abrisse suas portas e turbilhão de formigas operárias saísse para se refrescar, ver o fim da tarde, ou buscar algum repasto para lhe mitigar a fome que açoitava, visto já ter se passado quatro horas da última refeição...
Dali há pouco, em quase toda a cidade que abriga pouco mais de sescenta mil habitantes, ouve-se o apito do trem, ainda distante, que anuncia a sua aproximação e chegada para breve. e, não se fazendo esperar muito, surge imponente apontando na caixa d'água, vagarosa e confiantemente, chega a sua gare, parando o seu passo cansado, deixando escorregar de seu interior, as pessoas, as idéias, as mercadorias, as esperanças e expectativas, os comentários, as novidades, os mexericos e as miudezas que até então mantinha encerrados nos seus vagões, trazendo tudo isto, como se trouxesse segredos e preciosidades, que não podem escapar, antes que chegue a estação a que se destina.
De repente, ouvem-se gritos. Gritos que voam e vão longe, avançam a distância que separa a gare das casas mais próximas. E, logo voluntários acorrem ao ser que grita desesperado, grita de dor; algo não está bem consigo e, implora o socorro de alguém.
Homens fortes e voluntariosos, dispostos a compadecer-se daquela criatura mortificada pela dor, procuram tomar a seu cargo, a tarefa de a conduzir até sua casa, ou de algum dos seus, que lhe possa melhor assistir e amparar. Mas a dor era forte, o desconforto do transporte, a aumentava sobre maneira...
Ah, surge naquela cena, uma criança; uma garotinha de seus nove anos presumíveis, que, do portão de sua casa, não muito longe dali, também ouvira aqueles gritos e, em sua disposição infantil, se aproxima e, se propõe a ajudar...
- Esperem, esperem! Eu posso ajudar - brada a miúda.
- Esperem que eu vou buscar uma cadeira...
Veloz como sua idade permitia que fosse, atravessou os trilhos daquela estrada de ferro, aos saltos e, como um raio surge inesperado no céu, salta aquela criança na pensão de Seu João Bispo e, sem esperar que lhe perguntassem o que queria, foi bradando e logo passando do brado a ação:
- Seu João, vou panhar aqui uma cadeira!
Ato contínuo fez de sua pequena, mas fértil cabeça o meio de transportar aquela cadeira e, de novo aos saltos, surge outra vez na plataforma da estação ferroviária, munida daquilo que acreditava ajudaria a minorar o desconforto daquela mulher e ajudaria a mitigar seu sofrimento expresso pelos seus gritos de dor...
- Aqui, trouxe essa cadeira. Será que sentando aqui, ela não se sentiria melhor?
Os homens se entre olhavam e perguntavam de onde teria surgido aquele relâmpago, que eles só viram o seu reflexo na plataforma, pedindo que eles esperassem que ela iria trazer uma solução para aquela situação que eles não conseguiam atinar? Tão nova tão pequena e já tão engenhosa e astuciosa!
Acomodada na tal cadeira, a mulher agora é transportada com mais conforto e já não grita. A criança se alegra com o resultado obtido e, segue acompanhando os homens que conduzem aquela senhora, não se saberia precisamente para onde. O que importava, no entanto, é que estava melhor e que não sofria tanto, quanto antes.


Enquanto caminhavam e viam aquela garota se distanciar, sendo levada de volta para casa pelos seus, aqueles homens por certo matutavam de si para consigo: Afinal, quem era aquela menina arisca, que surgira de repente, como uma estrela que ilumina a estrada de um viajante e, o ajuda a encontrar o caminho que procura?
Seu João Bispo ficou estupefato ao ver aquela garotinha que apenas lhe avisara que pegaria uma cadeira e, sem esperar que lhe dissesse palavra, viu-a sair com aquele objeto, sem se intimidar, considerando apenas que, naquele momento, quem precisava daquela cadeira era ela, pois com ela, ajudaria alguém a sofrer menos!
Seu João Bispo refletia, talvez aborrecido com aquele contratempo e, enquanto seu olhar navegava na direção para onde fora a garota com sua cadeira, no cérebro, ziguezagueavam pensamentos que ele rebuscava com algum esforço, para tentar saber quem era aquela criança e, sobretudo, talvez querendo entender para quê, quereria ela a sua cadeira de pensão.
Em pé, com as mãos cruzadas nas costas, Seu João Bispo, inquiria se não era aquela a menina que passava acompanhando o avô, um ferroviário aposentado, quando aquele ia para o encontro diário com um certo Senhor Cabral, um sapateiro “remendão”, que morava ali por aquelas imediações,com idéias e comportamento de comunista; se não era ela quem o conduzia pela mão, devido ao seu olhar já quase escurecido pelo tempo...
A noite o encontrou envolto em tais pensamentos e, com o olhar ainda perscrutando a plataforma ferroviária, para onde foi levada a sua cadeira, talvez esperando que a menina ou quem se beneficiou daquele objeto de seu uso privado, a fizesse tornar ao lugar de onde fora apanhada, para quê, ele não saberia dizer.
Ah, definitivamente aquele não fora um dia como outro qualquer, como ele imaginara ao levantar para iniciar sua faina cotidiana.
Ao terminar em fim, o dia que se-lhe afigurara como mais um daqueles iniciar e findar de horas da Alagoinhas do início dos anos 50, o observador attento, como se pudesse ler os pensamentos que fervilhavam sob a cabeleira já escassa dohomem que vendia abrigo e alimento a forasteiros trazido pela ferrovia, no lento mas firme avançar da noite, concluiria facilmente que, para seu João Bispo, esse dia que fora de fato atípico.
Foi o dia que o veria voltar para a cama, recobrar-se do trabalhoso marchar de seus dias, com a certeza de que lhe faltava alguma coisa, na paisagem quase imóvel daquele lugar.
Faltava uma cadeira na sua pensão.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Altamiro Borges: O senador, a mídia e o "grand finale"

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