domingo, 24 de dezembro de 2023
Idos de Dezembro de 2004
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
CARTA ABERTA - II
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE UM MININUTINHO DE ATENÇÃO
quarta-feira, 22 de novembro de 2023
Carta Aberta - I - Errata
Carta Aberta - I
sexta-feira, 17 de novembro de 2023
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE UMA AMIZADE - PARTE II
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE UMA AMIZADE – Parte II –
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE UMA AMIZADE – Parte II – Repentinamente: um hóspede.
Transcorria normalmente u uma já distante tarde de dezembro do último ano do século XX. Como de costume, em um início de dezembro, dormia-se tranquilamente o sono vespertino, quando se ouve a voz de alguém anunciando correspondência. Tendo levantado para atender ao carteiro, recebe-se um pacote que havia sido encaminhado para atender ao edital de seleção para ingresso no programa de Pós-graduação, cujo prazo para aquele tipo de envio fora rigorosamente cumprido pelo candidato. , Entre aturdido e incrédulo com o que se lhe apresentava naquele instante, aquele senhor, que ainda mal acabara de acordar, recebera o pacote na condição de devolução, sem atentar para o que houvera feito de errado no processo de subscrição da encomenda, para que, ao invés de ser entregue ao destinatário na cidade de Niterói, estivesse ali, em suas mãos, o que implicaria na perda do prazo para a concretização da inscrição, se tentasse efetivar um reenvio.
Sem atinar bem no que poderia fazer para reverter aquela situação, afigurou-se lhe uma ideia, que, em princípio pareceu despropositada, visto que implicaria em pedir apoio a uma pessoa residente no Rio de Janeiro, com a qual já trocava algumas correspondências e ideias, mas, sem ainda ter havido quaisquer contatos de ordem real entre eles. Tratava-se de Maurício Zeni, de quem este escrevedor já havia lido e apreciado o projeto recentemente aprovado para ingresso no curso doutoral; com quem já permutava correspondências eletrônicas com alguma frequência; com quem discutira um pouco, o seu próprio projeto que inscreveria para a seleção daquele ano e, que agora tinha de volta em suas mãos.
Depois de alguma ponderação de si para consigo, pegara o telefone e, logo às primeiras palavras com as quais explicara o motivo daquela ligação, Maurício, sem qualquer hesitação, aceita receber aquele desconhecido em sua residência, para que ele não perdesse a oportunidade de ao menos, submeter aquele projeto ao crivo da banca examinadora.
Ato contínuo, fez-se a compra da passagem para o Rio de Janeiro, para o dia seguinte, prazo final da inscrição presencial ,e igualmente foram tomadas as providências que permitissem chegar ao aeroporto de Salvador, a fim de embarcar pela Vasp, com o fito de realizar aquela viagem emergencial. O taxista que faria o transporte terrestre era Seu Nadinho, um fervoroso torcedor do Bahia, que com o seu Ford Del Rei, passou na residência do cliente as três horas da madrugada e o deixara as cinco no Balcão de embarque.
Este escrevente tendo partido direto do aeroporto rumo a Universidade Federal Fluminense, campus do Gragoatá, em Niterói, levando consigo o pacote devolvido no dia anterior, pode realizar a sua inscrição em tempo hábil, entrando assim, no grupo daqueles que teriam as suas propostas avaliadas.
Mas, aquele candidato, por razoes de logística, precisaria permanecer no Rio de Janeiro, até, pelo menos, obter o resultado da primeira parte da avaliação, o que se daria dali a pouco mais ou menos dez dias. Desta forma, o casal Maurício Zeni e Sônia Lucas, acabariam por receber em seu espaço de convivência conjugal, um hospede inesperado para uma estada não programada.
Ao concluir o procedimento de inscrição e entrega do material, foi pedido que entrasse em contato com os anfitriões que, muito rápida e solicitamente, atenderam e se dispuseram a encontrar aquele forasteiro em Niterói e o conduzir até a residência em que viviam, na Tijuca.
Lá, entre muitas conversas, aprendizados e largas gargalhadas, este escrevente aguardou a desclassificação de sua proposta de pesquisa, que, ainda assim, não ofuscou os excelentes momentos passados com aquele casal que acabara de conhecer pessoalmente.
E, será que tem música? Claro! Por que não haveria? E, serão duas. Como todo bom cego, há sempre um rádio em suas mãos ou no pé dos seus ouvidos. Como não poderia deixar de ser, quando não estava em conversas com o casal, o rádio era o companheiro inseparável. Foi em uma daquelas audições radiofônicas, que este ouvinte teve o primeiro contato com a música de Zeca Pagodinho, Caviar, que o impressionara bastante.
https://youtu.be/eFQCPE9uDy0?si=1q8pYbromrbNTQr4
Naquela mesma época, o filme Titanic fora exibido na televisão e, este hóspede inesperado, fora convidado pelo casal para acompanhar aquela exibição juntos. É verdade que o hóspede dormira quase todo o tempo de duração do filme..., mas, estava ali, com o casal, que assistira, aliás, atentamente. A sua música tema tocava em quase todas as emissoras FM, cujo seguimento era voltado para músicas “românticas”.
https://youtu.be/F2RnxZnubCM?si=KcxwlELH2aeRaPBf
Embora este escrevente tenha retornado triste pela reprovação de sua proposta de pesquisa para ingresso no programa de Pós-Graduação da UFF, naquele ano – e em mais três subsequentes, até ingressar na edição de 2005 -, a alegria de ter estado com Maurício Zeni, que se tornaria um grande amigo com quem este tagarela contaria outras muitas vezes, ficou como o grande ganho daquela primeira viagem ao Rio de Janeiro, depois de dez anos, quando ali esteve para conhecer uma jovem da região do vale do Aço, de que já se falou neste mesmo espaço.
José Jorge Andrade Damasceno – 17 de novembro de 2023
historiadorbaiano@gmail.com
Repentinamente: um hóspede.
Transcorria normalmente u uma já distante tarde de dezembro do
último ano do século XX. Como de costume, em um início de dezembro, dormia-se
tranquilamente o sono vespertino, quando se ouve a voz de alguém anunciando
correspondência. Tendo levantado para atender ao carteiro, recebe-se um pacote
que havia sido encaminhado para atender ao edital de seleção para ingresso no
programa de Pós-graduação, cujo prazo para aquele tipo de envio fora
rigorosamente cumprido pelo candidato. , Entre aturdido e incrédulo com o que
se lhe apresentava naquele instante, aquele senhor, que ainda mal acabara de
acordar, recebera o pacote na condição de devolução, sem atentar para o que
houvera feito de errado no processo de subscrição da encomenda, para que, ao
invés de ser entregue ao destinatário na cidade de Niterói, estivesse ali, em
suas mãos, o que implicaria na perda do prazo para a concretização da inscrição,
se tentasse efetivar um reenvio.
Sem atinar bem no que poderia fazer para reverter aquela
situação, afigurou-se lhe uma ideia,
que, em princípio pareceu despropositada, visto que implicaria em pedir apoio a
uma pessoa residente no Rio de Janeiro, com a qual já trocava algumas
correspondências e ideias, mas, sem ainda ter havido quaisquer contatos de
ordem real entre eles. Tratava-se de Maurício Zeni, de quem este escrevedor já
havia lido e apreciado o projeto recentemente aprovado para ingresso no curso
doutoral; com quem já permutava correspondências eletrônicas com alguma frequência;
com quem discutira um pouco, o seu próprio projeto que inscreveria para a
seleção daquele ano e, que agora tinha de volta em suas mãos.
Depois de alguma ponderação de si para consigo, pegara o
telefone e, logo às primeiras palavras com as quais explicara o motivo daquela
ligação, Maurício, sem qualquer hesitação, aceita receber aquele desconhecido
em sua residência, para que ele não perdesse a oportunidade de ao menos,
submeter aquele projeto ao crivo da banca examinadora.
Ato contínuo, fez-se a compra da passagem para o Rio de
Janeiro, para o dia seguinte, prazo final da inscrição presencial ,e igualmente
foram tomadas as providências que permitissem chegar ao aeroporto de Salvador, a
fim de embarcar pela Vasp, com o fito de realizar aquela viagem emergencial. O
taxista que faria o transporte terrestre era Seu Nadinho, um fervoroso torcedor
do Bahia, que com o seu Ford Del Rei, passou na residência do cliente as três horas
da madrugada e o deixara as cinco no Balcão de embarque.
Este escrevente tendo partido direto do aeroporto rumo para
a Universidade Federal Fluminense, campus do Gragoatá, em Niterói, levando consigo o pacote devolvido no
dia anterior, pode realizar a sua inscrição em tempo hábil, entrando assim, no
grupo daqueles que teriam as suas propostas avaliadas.
Mas, aquele candidato, por razoes de logística, precisaria permanecer
no Rio de Janeiro, até, pelo menos, obter o resultado da primeira parte da
avaliação, o que se daria dali a pouco mais ou menos dez dias. Desta forma, o casal
Maurício Zeni e Sônia Lucas, acabariam por receber em seu espaço de convivência
conjugal, um hospede inesperado para uma estada não programada.
Ao concluir o procedimento de inscrição e entrega do material,
foi pedido que entrasse em contato com os anfitriões que, muito rápida e
solicitamente, atenderam e se dispuseram a encontrar aquele forasteiro em
Niterói e o conduzir até a residência em que viviam, na Tijuca.
Lá, entre muitas conversas, aprendizados e largas gargalhadas,
este escrevente aguardou a desclassificação de sua proposta de pesquisa, que,
ainda assim, não ofuscou os excelentes momentos passados com aquele casal que
acabara de conhecer pessoalmente.
E, será que tem música? Claro! Por que não haveria? E, serão
duas. Como todo bom cego, há sempre um rádio em suas mãos ou no pé dos seus
ouvidos. Como não poderia deixar de ser, quando não estava em conversas com o
casal, o rádio era o companheiro inseparável. Foi em uma daquelas audições radiofônicas,
que este ouvinte teve o primeiro contato com a música de Zeca Pagodinho, Caviar,
que o impressionara bastante.
https://youtu.be/eFQCPE9uDy0?
Naquela mesma época, o filme Titanic fora exibido na
televisão e, este hóspede inesperado, fora convidado pelo casal para acompanhar
aquela exibição juntos. É verdade que o hóspede dormira quase todo o tempo de
duração do filme..., mas, estava ali, com o casal, que assistira, aliás,
atentamente. A sua música tema tocava em quase todas as emissoras FM, cujo
seguimento era voltado para músicas “românticas”.
https://youtu.be/F2RnxZnubCM?
Embora este escrevente tenha retornado triste pela
reprovação de sua proposta de pesquisa para ingresso no programa de Pós-Graduação
da UFF, naquele ano – e em mais três subsequentes, até ingressar na edição de
2005 -, a alegria de ter estado com Maurício Zeni, que se tornaria um grande
amigo com quem este tagarela contaria
outras muitas vezes, ficou como o grande ganho daquela primeira viagem ao Rio
de Janeiro, depois de dez anos, quando ali esteve para conhecer uma jovem da
região do vale do Aço, de que já se falou neste mesmo espaço.
José Jorge Andrade Damasceno – 17 de novembro de 2023
historiadorbaiano@gmail.com
domingo, 12 de novembro de 2023
SÓ NA ESTRADA
SÓ NA ESTRADA
Aos primeiros augúrios do alvorecer, não importando a
estação ou o dia, os pássaros iniciam os seus gorjeios, acompanhando os marcados
passos do tempo e o farfalhar do que se preparam para o mourejar dos que cedo
se colocam aos recomeços dos seus deveres, prazeres e devoções matinais.
Na casa de José Mário, que cedo acordava com o cantar dos
galos e o piar das demais aves alvoroçadas com as primeiras luzes da aurora,
embora só saísse para a escola, por volta das seis e meia, após o primeiro “apito”
da “Leste”, convocando os seus operários para o trabalho as sete, o cotidiano
não fosse muito diferente, visto que dona Arminda logo cedo precisava dar conta
do café, da iniciação do preparo do almoço e, pouco depois das sete horas, se
dirigisse ao rio Aramari, com sua bacia de roupas para lavar e, daquela
atividade para a qual precisava usar a força dos seus braços, apurar os
recursos para o provimento dele e dos seus dois irmãos mais velhos.
Saliente-se de passagem que, aquele esforço braçal, também
exigia alguma habilidade, uma vez que as roupas não só deveriam ser
lavadas e passadas, como, em algumas ocasiões, precisavam ser caprichosamente
engomadas, para que fossem entregues e recebesse a parca remuneração por um
serviço tão inglório. Nem por isto, Dona Arminda descuidava daquelas tarefas,
desempenhando-as com esmero e afinco, pois, se não receberia melhor remuneração
por tanta dedicação, poderia ganhar outras “freguesas”, a partir da satisfação
daquelas senhoras que pagavam pelos serviços, mediante indicação a alguma outra
que dele quisesse fazer uso.
Tendo iniciado a sua vida escolar no ano em que as
autoridades locais promoveram a implantação de uma sala “especial” no prédio
escolar Brasilino Viegas, onde ele seria apresentado ao Sistema Braille de
leitura e escrita, por meio do qual teria enfim, acesso ao mundo do saber:
literatura, matemática, gramática, clássicos da cultura e da história, José
Mário, aquele menino irrequieto, traquino e curioso, ali permaneceu até a
conclusão do que então se chamava 1º grau escolar, no seu nível 1. Ali, foi
possível tomar contato com os primeiros rudimentos da leitura, uma vez que, em
um dado momento de sua escolarização, pudera interagir diretamente com os companheiros
de classe, na medida em que tivera o mesmo livro utilizado pelos demais
colegas, sendo-lhe possível participar das “leituras” desenvolvidas
coletivamente, que foram de grande valia para o seu aprimoramento na prática
daquela atividade.
Em grande medida, José Mário presenciou por todos os anos da sua vida,
aqueles labores de sua mãe, em grande parte do tempo, destinados a provisão das
suas necessidades de alimentação, vestuário, abrigo e formação para a vida. Para
além dos labores, também vivenciou as suas dores. No ano em que ele completaria
catorze anos, ele tem contato direto com a morte de alguém a quem era muito
afeiçoado, contato que lhe modificara inexoravelmente o rumo da vida. Dona Arminda ainda não completara trinta e nove anos, quando fora atingida pela
fatalidade que fora a morte do seu filho mais velho, filho que se fizera seu
companheiro no arrimo daquela casa. Aquele golpe quase a fizera ruir em seu ânimo e
interesse pela vida.
Mergulhada em profunda tristeza e vertendo lágrimas de
profunda dor, ela se prostrara por longas semanas, se erguendo apenas para o
estrito cumprimento dos deveres laborais, considerando que ainda haveria de
carregar sob os seus ombros, agora sozinha, um seu filho que, conforme
considerava, dependeria das forças que lhe restassem, até o fim dos seus dias.
Aquele início de inverno de 1974 marcou indelevelmente um
divisor de águas para dona Arminda e José Mário. Para ela, fora o fim precoce
da vida do seu primogênito, sobre quem ela depositava as suas esperanças de
dias melhores, na medida em que ele estava sendo iniciado na arte da marcenaria,
profissão com a qual procuraria mitigar as necessidades orçamentárias da casa
e, quiçá, a ajudaria a encontrar meios de sobrevivência menos penosos. Para
José Mário, aquela fora uma morte incompreendida para os seus poucos laivos de
maturidade, uma vez que ainda não se tivera deparado com aquele tipo de
vivência tão próxima de si – embora dois de seus irmãos mais novos houvessem
morrido antes de completarem o terceiro ano de vida -, sobretudo, na idade que
aquela morte lhe arrebatara o irmão: vinte
anos , era o tempo vivido por Zé Carlos, quando o seu corpo fora descido a
campa fria no cemitério da Praça da Saudade.
Dali em diante, muitas coisas mudaram na vida de José Mário
e de sua Mãe. Ele, acreditando que também morreria aos vinte anos, como se dera
com o seu irmão, passara a viver atemorizado, embora a ninguém jamais houvera
dito dessa impressão que lhe impregnara o espírito, durante o tempo que
transcorrera aquele evento e o momento que completara a sua segunda década.
Ela, ao se prostrar de corpo de espírito, pois perdera o interesse por quase
tudo aquilo que fazia no seu dia a dia; se tornara triste e acabrunhada,
vergada ao peso do golpe funesto que a abatera profundamente, tornara-se
taciturna e por muitos anos, se alimentara da dor da perda e dessedentara-se
com as lágrimas daquela dor. Segundo confessara mais tarde, só a existência
daquele outro filho que, conforme entendia, dependeria dela para sobreviver, é
que a erguera lentamente do seu torpor, retomando aos poucos o seu lidar
diário, sem, porém, aquele entusiasmo que sempre a impulsionara, a despeito de
todas as agruras inerentes ao tipo de trabalho que desenvolvia para mitigar a
fome e a nudez dela e dos seus.
Transcorreram os anos, as décadas e, aqueles dois seres
passaram a dividir um com o outro os fardos que a vida lhes impunha, bem como
suportaram juntos os infortúnios da pobreza, que os impedia de proporcionar-se
mutuamente conforto e bem estar; as incertezas profissionais e funcionais que
permearam os anos de formação escolar e acadêmica de José Mário e, choraram
juntos – embora cada um de si para consigo -, os inúmeros fracassos que ele
acumulou na sua árida caminhada em busca de ingresso na docência.
Quando finalmente obteve êxito naquela empreitada, passaram
a dividir – conforme ela já o fizera com o seu primogênito – as responsabilidades
gerenciais da casa, o que permitiu a ele, reduzir a pesada carga que ela
suportara sozinha por todos aqueles anos, pois, puderam caminhar juntos, lado a
lado, levando o peso daquilo que lhes era dado, de modo equânime e equilibrado
Mas, trinta e um anos depois, outra vez a morte se apresenta
para interromper uma daquelas vidas, conforme já se temia; já se esperava, por
conta do avançar dos anos. Era dona Arminda que tivera a vida arrebatada do
convívio do seu filho, como o fizera com o seu primogênito.
Certa manhã, como era o seu costume, ao descer para junto
com ela tomara primeira refeição do dia, José Mário estranhou não sentir o
aroma daquele café que deveria lhe chegar às narinas, logo que assomasse o
portão da casa; era a hora de costume; ela porém, não movimentava as panelas na
cozinha, indicando o labor de um café que acabava de ser coado: reinava o silêncio
e, o que ele temia estava bem ao seu lado ao passar para a cozinha, a fim de
espreitar o que estaria acontecendo.
Tendo encontrado as panelas frias; o café do dia anterior;
não encontrando qualquer vestígio de que ela houvesse descido para alimentar as
suas galinhas, atemorizou-se sobremaneira e, com receio de encontrar o cadáver de sua mãe, entrou no quarto, mas,
não ousou encostar na cama.
Ele só se dera conta que acontecera o que não queria
acreditar, quando uma neta de dona Arminda chega e pergunta:
- O que vó tem?
Ao que replicou:
- Onde ela está?
- No sofá.
Ali, José Mário compreendeu que ela houvera sofrido um AVC
e, por isto, não pudera se comunicar com ele, embora houvesse passado por ela
duas ou três vezes, já ansioso por saber o que houvera se dado.
Depois de ter sido levada pela SAMU, José Mário subiu até o
seu quarto e ergueu a sua voz em um pranto longo e sofrido, pois aquilo que
presenciara, lhe dera a certeza de que ela nunca mais voltaria àquele espaço que
por quase quarenta anos eles compartilharam.
Alguns dias depois, os seus temores se confirmaram. Depois
de alguns dias internada; depois de concluído o horário de visita em que ela
lhe apertou a mão com a sua ainda grossa pelo amanho das trouxas de roupa, como
se se quisesse despedir do seu filho, ficou reforçada no espírito de José Mário
a convicção que tivera no dia em que fora levada para o hospital. Procurando
conter-se na saída da enfermaria, desabou em pranto convulsivo ao se encontrar
só em casa. Ele não conseguia se enganar: aquele desfecho se daria em uma
questão de dias. E, se deu. Uma semana após aquele emblemático aperto daquelas mãos ainda fortes e calosas, chegara o fim da
contagem dos seus dias sobre a terra.
Ao falecer dona Arminda, José Mário teve bem claro que, dali
em diante, ele passaria a trilhar só a estrada, até chegar o dia que por sua
vez, ele fosse também tragado pela morte. E tem sido assim, nos últimos 18
anos.
Alagoinhas, 12 de novembro de 2023
José Jorge Andrade Damasceno
.
sábado, 28 de outubro de 2023
CRÔNICA DE UMA SOLIDÃO PERMANENTE
Crônica de uma solidão permanente
Sempre lhe faltou a intrepidez; sempre lhe sobrou a timidez;
o medo de arriscar, de avançar, sempre lhe paralisou; a apreensão de a
realidade não ser tal como a ele parecia,
sempre apeou-lhe os passos e lhe fez caminhar com grandes dificuldades; a
incerteza sempre esteve a fervilhar nos seus pensamentos e muitas vezes lhe fez
recuar os passos; tantas vezes pensou, tantas vezes ponderou, tantas vezes
considerou e, ainda assim, muitas foram as decisões insensatas que tomou,
muitos os caminhos tortuosos que trilhou, em muitos poços sem fundo desceu, muitos
foram os abismos profundos que mergulhou, foram muitas as cisternas rotas que
cavou.. o receio de errar, o levou a cometer inumeráveis erros: de cálculo, de
avaliação, de leitura da realidade, de apreensão do mundo, de compreensão do
que se lhe dizia/fazia ou parecia dizer/fazer, de compreensão das coisas à sua volta,
de interpretação de intensões/palavras/ações...
A solidão sempre foi a marca indelével do seu existir, bem
mais do que ele imaginasse ou desejasse; é certo que do alto dos seus arroubos
de indignação e de fúria pelos seus desacertos e fracassos, sempre a evocou
como quem pudesse o esconder da vergonha dos desastres, das derrotas, das
muitas vezes que foi incapaz de perceber as coisas, em tempo de recuar ou de
sequer pensar em dar um passo a mais em sua busca ou execução; não se dava
conta - ou não queria - que ela nunca lhe deixara, mesmo cercado por multidões
de pessoas, grandes ou diminutas; a solidão parece ser parte inerente do seu
ser; desde a mais tenra infância: as brincadeiras, as peraltices, as
traquinagens, quase invariavelmente eram atos solitários.
Agora mesmo, no momento em que estas letras são digitadas, a
enorme casa está esvaziada e, é habitada
apenas por quem o faz... tem-se por companhia os pássaros que gorjeiam no espaço
externo e contíguo; os insetos do forro e do telhado; a poeira e a sujeira do
chão; os poucos móveis do imóvel; os equipamentos que ainda permitem alguma
comunicação com o mundo exterior e com algumas pouquíssimas pessoas que se
dignam em estabelecer algum tipo de relação com um ser tão pouco sociável como
este solitário., Ele não o é por escolha, nem tem prazerem o ser... Mas, ao que
parece, foi eleito uma de suas peças humanas prediletas
Em um tempo já pretérito de sua vida, muitas foram as vezes
em que ele se banhou, se perfumou e se vestiu à sua maneira e, de acordo como
lhe era possível, mediante as suas condições econômicas e sociais, bem como a
da sua genitora/provedora, com o objetivo de sair à rua, como o faziam os
demais rapazes da sua idade, em busca de encontrar alguma moça que ao menos lhe
desse um pouco de atenção, lhe pudesse ouvir, ainda que apenas para lhe fazer
companhia; fossem os carnavais, os natais ou quaisquer folguedos ou espaços,
vãs eram as suas buscas.
Malgrado ter se acotovelado entre as muitas pessoas, em
diversos espaços da cidade; ou ter participado por um largo tempo de duas
igrejas, com perfis sociais e litúrgicos diferentes; a despeito de ter
frequentado escolas e alguns bares; apesar de ter ido a algumas festas de largo
e tendo trabalhado em uma empresa de porte médio na capital do seu Estado; não
obstante ter estudado em algumas Universidades – nos diversos graus de
graduação – e, ter se tornado docente na mesma faculdade em que se graduara, a
solidão lhe era inarredável, estando sempre com ele; quantas vezes, ao voltar
de um dia intenso de atividades acadêmicas, ele sentia o peso do isolamento e
do descolamento social em que vivia, tendo apenas ela – a solidão -, e somente
ela como sua constante companhia.
Saliente-se, por dever de justiça, que parte daquele
isolamento era uma escolha daquele solitário, sobretudo, por não se sentir um com
aqueles outros – colegas, alunos – que gravitavam naqueles espaços, como se
fossem “corpos” soltos e preocupados cada um com a sua própria órbita, que
claro, eram os próprios umbigos. Tendo as vaidades pessoais como fios
condutores dos seus fazeres e seres, acercavam-se do professor desarraigado,
apenas enquanto lhe fosse útil para o seus tarefares. Neste ponto, o
alto-isolamento acabava por ser um instrumento a partir do qual intentava
estabelecer uma espécie de proteção do isolamento que já lhe era inerente, na
vã tentativa de reduzir os seus danos.
Entrementes, por incontáveis anos, a solidão insiste em
estar presente, mesmo nos instantes de contrição ou das ideias e dos desejos os
mais inconfessáveis; ela é, em suma, crônica; ela se instalou no seu viver, desde
pouco depois de nascer em casa, por obra de parteira.
José Jorge Andrade Damasceno – outubro de 2023
historiadorbaiano@gmail.com
quinta-feira, 21 de setembro de 2023
Histórias e Memórias de uma grande Amizade - Parte I.
Histórias e memórias de uma amizade – Parte I.
O ano era 1998 e o mês era maio. Este escrevedor
encontrava-se em Salvador, hospedado em casa de Marilza, por ocasião de uma
jornada promovida pelo programa de Pós-graduação em História, que se realizaria
na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA – provavelmente um
minicurso - e, por razões de logística, fez-se necessário encontrar onde
permanecer por alguns dias na cidade de Salvador.
Após o regresso das atividades em São Lázaro, voltava para a
casa onde gentilmente fora hospedado e, depois de bom café com a sua
proprietária, memoráveis momentos de boníssima prosa.
Este escrevente conhecera pessoalmente a sua anfitriã,
sobretudo, a partir da sua experiência com o Dosvox; ela já era conhecida dele,
há alguns anos antes, quando intentara realizar um curso de programação que ela
ministrara na Biblioteca central do Estado, que o cronista não conseguira acompanhar,
por pura dificuldade de compreender as formulações matemáticas inerentes à matéria
em questão.
Marilza, por sua vez, conhecera o hóspede pessoalmente pouco
tempo antes, quando a seu convite, viera até a grande Alagoinhas, prestar-lhe
auxílio no amanho do Dosvox.
Dito isto, volte-se ao seu apartamento, situado em
Amaralina, no andar térreo do edifício Quineret. Entre as diversas digressões e
divagações entabuladas na prosa que transcorrera em sua sala de estar, surgiu
um nome com o qual este escrevedor já estava familiarizado, por conta de ler
suas proposições nas “listas” que passara a tomar contato por meio da internet,
ainda em processo de implantação/popularização, principalmente entre as pessoas
cegas, que passavam a ter acesso ao seu conteúdo, a partir do sistema Dosvox – instrumento
por meio do qual o cego passava a ter a possibilidade de utilizar o computador,
até então, só possível para aqueles cegos que fossem programadores -, também em
processo de desenvolvimento.
Impressionado com a profundidade e clareza dos seus textos,
sabendo que a anfitriã era sua colega de profissão e, gozava de prestígio junto
ao recém-constituído mestre, este cronista manifestou interesse em travar
contato com aquele cego, brilhante e, que acabara de concluir uma dissertação
que, acreditava, o poderia ajudar, como de fato ajudou, na elaboração da sua, ora
em curso.
Ato contínuo, Marilza pega o telefone e liga para o dito,
conversa um pouco com ele e, de chofre, anuncia:
- Maurício, está aqui em casa uma pessoa que tem lido os
teus escritos na lista Dosvox e, se tornou teu admirador. Vou passar o telefone
para ele.
Do outro lado da linha, ouve-se a voz do sujeito que fala
com desenvoltura e desembaraço com o seu interlocutor, como se já o conhecesse
de longas jornadas.
Era nada mais nada menos do que Maurício Zeni, que falava
ali, sem qualquer ar de superioridade; sem qualquer tipo de empostação
e/ou imposição de “lugar”; um humor e uma
genialidade perceptível às primeiras palavras; às primeiras frases.
Nascia ali uma amizade tão frutífera quanto frutuosa, ao
ponto de não ter havido qualquer diferença, quando este garatujador o encontrou
pessoalmente, alguns poucos anos depois daquela apresentação telefônica.
Aliás, aquele encontro será o tema do próximo desfilar de
lembrares.
Como não poderia deixar de ser, há uma música neste
arrazoado. Nas manhãs que antecediam as atividades acadêmicas, eram ocupadas
com a audição de “CDs” encontrados no acervo da anfitriã. E o que se ouviu no
dia seguinte ao papo com Maurício, não poderia deixar de ter sido Chico
Buarque, com a sua magnífica interpretação de “Tanto Mar”.
https://youtu.be/t0y96gpmAzk?si=0ub6uDC5xmMfxleG
Alagoinhas 21 de setembro de 2023.
José Jorge Andrade Damasceno
historiadorbaiano@gmail.com
sábado, 5 de agosto de 2023
História e Música - Parte II - A Guerrilheira estilhaça blindagens e esmigalha carapaças.
História e música – Parte II – A Guerrilheira estilhaça blindagens
e esmigalha carapaças.
Corria o ano da graça de 2013; nos seus primeiros três
meses. Não é possível precisar quanto tempo decorreu entre a sua primeira
aparição abrupta e avassaladora e os primeiros diálogos entabulados entre aquela
“guerrilheira” e aquele sujeito que acreditava estar afeito aos enfrentamentos da
guerra cujo terreno é o coração, a partir de sua bem construída fortaleza.
Bem guardado por sua espessa blindagem e envolto em grossas
camadas de carapaças, ele se acreditava tão inexpugnável, ao ponto de acreditar
resistiria a quaisquer movimentos daquela guerrilheira e que facilmente
repeliria um eventual ataque desferido por quem estava munida apenas de armas
leves e frágeis, pouco ou nada acreditando que pudesse dispor de táticas capazes
de alcançar qualquer êxito em um possível confronto.
Na verdade, é bom que se diga, sequer ele acreditava que
aquela menina arisca e bem dotada de todos os encantos, teria algum interesse
em realizar algum movimento que o tivesse como alvo. Afinal, quem não gostaria
de ter o privilégio de cercá-la, cortejá-la, conquistá-la? Faria ela algum
movimento de guerrilha na direção daquele velho e cansado guerreiro, mais preocupado
em se resguardar de enfrentar outras batalhas, do que de as provocar?
Por que, se ela era uma terra nova, culta e fértil e, todos
quantos fossem sensatos e sábios, quereriam arrebatar para si?
Assim pensando, procurou e obteve a chance de estabelecer
alguma aproximação; trocaram mensagens, contatos, endereços eletrônicos... conversas
se amiudaram; passaram a trocar ideias, em conversas despretensiosas e amenas, cada
um explorando as capacidades cognitivas do outro; envolvendo os assuntos mais
variados e diversificados, de modo que não houvesse espaço para quaisquer
avanços, sem que se não armasse cada um com as suas respectivas forças de defesa,
intentando impossibilitar que as linhas demarcatórias fossem ultrapassadas;
qualquer erro poderia resultar em um ataque preventivo, perpetrado por cada um
dos lados e, até mesmo, o nascimento de uma inimizade de difícil reversão.
Assim, eles permaneceram se resguardando mutuamente. Ela porém,
por ser leve, ágil e hábil, sem que o fortificado pudesse repelir em tempo,
lançou uma bomba poética em direção à porta principal da fortaleza que aquele
fortificado edificara tão cuidadosamente e, rompeu, quase que imediatamente, os
principais fundamentos das blindagens ali superpostas, promovendo a imediata
invasão do local, sem que houvesse tempo de ser repelida.
Aproveitara o inesperado do gesto e, tratou de esgarçar as carapaças
que lhe guardava as portas do coração e, lá entrou, quebrou os últimos focos de
resistência; se alojou indelevelmente; estabelecida no espaço que parecia ter
sido talhado para ela, fortificou-se ali, sem deixar qualquer margem para uma
efetiva e eficaz reação, no sentido de lhe fazer voltar às posições anteriores.
Sim: ela conquistou a fortaleza; fez dali o seu lugar de ações
táticas; dela saiu, apenas para buscar reforços, visto que o fortificado fora
deixado amarrado à sua própria alma, sem que houvesse qualquer chance de desamarrar-se
por si só. Não mais poderia voltar à orgulhosa
posição de “inexpugnável”, ostentada até momentos antes do movimento tático
levado a bom termo por aquela guerrilheira faceira, que se atrevera a promover
a conquista de um fortificado, tornando-o indefeso e incapaz de resistir aos
encantos que logo foram derramados sobre todo o seu ser, transformando-o em seu
perpétuo prisioneiro.
A curiosidade do leitor deve estar aguçada, visto que se falou
que “uma bomba poética” fora lançada dentro da fortaleza, esmiuçando lhe e
transformando em fragmentos, toda a blindagem que a guardava. Enquanto eram
trocadas mensagens, ideias e impressões, ambos estudavam o terreno onde cada um
se movia; ela, mais atenta e eficiente, logo iniciou o bombardeio com eficácia,
visto que, escolhera adrede, músicas que, no conjunto formado por melodias e
versos, pudessem atingir e transpor as carapaças que foram interpostas com o
objetivo de evitar que uma flecha, ainda que a mais sutil, viesse a penetrar e
a se alojar onde pudesse injetar o doce veneno da querência. Ele já estava
exausto de descuidar-se e, fizera o propósito de não mais se deixar inebriar
por querências ou quereres, que, depois de o vencer, o deixaram sangrando,
quase a morrer.
Destarte, a guerrilheira lança mão de armas poéticas de
calibre suficiente para esboroar os escudos mais resistentes que aquele
fortificado pudesse dispor. Portanto, duas músicas foram enviadas, em um curto
intervalo de tempo, para que, a soma das duas, viesse a funcionar como a poderosa
bomba que, ao mesmo tempo quebraria as blindagens e espedaçaria as carapaças
que o protegeriam, deixando-o indefeso, facilitando o trabalho de conquista.
A primeira delas: Simone – Quem é você.
https://youtu.be/rgXNUWz-ro
https://youtu.be/rgXNUWz-ro0
A segunda: Sandra de Sá – Com você tudo fica melhor.
Como o leitor pode perceber, as músicas foram enviadas com o
intuito de dizer ao fortificado, que os demais guerreiros que pretendessem
conquistar o coração da Guerrilheira, não tinham chance de avançar um único milímetro,
sem que ela não o defendesse com força e valentia.
05 de agosto de 2023
Jorge Damasceno
sexta-feira, 16 de junho de 2023
História e Música - I
História e Música Parte I - A Guerrilheira
Há um tempo que se apresenta difícil de precisar com exatidão,
pouco a pouco a densa floresta do isolamento a que as pessoas cegas estavam imersas,
começava a ser bafejada pelos raios primaveris produzidos por alguns desenvolvimentos
tecnológicos iniciados com os primeiros esforços que resultaram na criação de
um conjunto de programas que permitiriam acesso aos computadores, mediante a utilização
de vozes sintetizadas. O primeiro dos movimentos exitosos naquela direção foi o “Sistema
Dosvox”, que se apresentava à pessoa cega, que, quase deslumbrada diante de um
equipamento pensado e desenvolvido para aqueles que vêm, esperando que
respondesse:
- ”[...], o que você deseja”?
Previamente instruído a respeito do modo como responder ao
sistema que passava a permitir a sua interação com os computadores pessoais, a
pergunta era respondida e a pessoa cega começava a perceber as clareiras que se
faziam abrir, a cada operação que conseguia executar com independência, indo de
árvore em árvore, de bosque em bosque, até se embrenharem em grutas, cavernas e
rios caudalosos, largos e fundos, que, por sua complexidade e abrangência, se
convencionou chamar, acertadamente , “revolução tecnológica, dali em diante,
acessível às pessoas cegas.
Assim, a espessa floresta onde errava grande parte das
pessoas cegas, passa a contar com caminhos e estradas bem arquitetadas em um “sistema
operacional” frágil nos primeiros anos e que foram robustecidos algum tempo
depois, fazendo possível trafegar com segurança e, permitindo até mesmo o
desenvolvimento de atalhos e desvios mais arriscados.
É assim que se constrói um programa que passaria a
estabelecer contatos entre aquelas pessoas que antes, se se conhecessem, só se
falariam pessoalmente, por telefone – quem o tivesse – ou pelos Correios em
suas longas jornadas de saídas e chegadas de cartas – em braile; mas também,
escritas à máquina: chegara o “Papovox”.
Com um número de usuários razoável e com uma diversidade –
no início pequena – de possibilidades, aquele programa se firmou como um meio
seguro e de comunicação virtual, cheio de surpresas. Ali, vários de seus
usuários se tornaram “amigos”, ainda que nunca houvessem se encontrado no mundo
real, em algum lugar real. Muitas foram as noites viradas por este escrevedor,
em salas públicas ou privadas; muitas foram as confabulações que varavam a
madrugada, sem que os seus protagonistas se dessem conta do passar do tempo.
Pois bem: foi neste ambiente de muitas permutas, que
surgiram projetos de pesquisas, namoros virtuais; enlaces e rompimentos; não
faltando calorosos debates, altercações e reflexões; brigas, ciúmes que quase
sempre resultavam em homéricas discussões que, por vezes, resvalaram na
rispidez e grosseria generalizada entre os envolvidos.
Em uma daquelas madrugadas em que este escrevedor entrara
para mais uma jornada de confabulações e trocas de amenidades, surge uma “guerrilheira”,
como um raio avassalador, trovejando com a sua metralhadora bafejando
inteligência aos borbotões. Talvez contasse dezesseis ou dezoito anos e, já
esbanjava segurança, força de caráter e firmeza de palavras e atitudes. Tão
veloz entrara e atirara algumas palavras pouco compreendidas por grande parte
dos circunstantes, quanto ainda mais veloz saíra, quase sem deixar vestígios,
como deve ser, em sua ação de guerrilhar, esboroando as defesas mais robustas.
Aquela Guerrilheira, em princípio inofensiva e frágil,
avançou firme e resoluta no seu afã de revolucionar, deixando para trás de si,
um velho soldado ferido, indefeso e enfermo, necessitado do seu socorro médico
e, sobretudo, do seu cuidado. Qual! Ela o deixaria desfalecer; outros soldados,
igualmente feridos pela fúria do seu metralhar, certamente, teria melhor sorte
do que aquele que, apenas passava pelo local, como um caminhante distraído,
desacreditando haver naquela guerrilheira, alguma intenção de o ferir. Para
que? Sequer valeria a pena gastar a sua munição com aquele soldado andarilho,
que nem parecia que estivesse em condições de lutar.
Aquela Guerrilheira deixou marcas indeléveis no espírito
daquele soldado, que, por já haver vivido o dobro de sua vida e, por se
acreditar experiente o suficiente para não se deixar atingir pelas suas balas
de raríssima inteligência, sucumbira ao seu jeito tão eficaz de manusear a palavra como arma de
encantamento; pelo seu ágil modo de guerrilhar e de escapar aos revides da
defesa; antes mesmo que fosse possível esboçar-se qualquer movimento no sentido
de ser alvejada, a sua capacidade de fuga e de alto-proteção já se fazia sentir
e, ela escapava e se protegia.
Crê-se que uma ilustração perfeita da Guerrilheira e o seu
guerrilhar com o cérebro e a palavra que facilmente brotava dos seus dedos ágeis,
velozes e irrequietos, seja a canção que tão bem representa este tipo de guerrilhar:
“Canción para Mi América”, magnificamente interpretado por Mercedes Sosa.
José Jorge Andrade Damasceno -17 de junho de 2023.
sábado, 27 de maio de 2023
Memórias de Maio II
Memórias de maio II – Mãos que outra vez se entrelaçam
O outono é uma estação em que o corpo e a alma estão sendo
preparados para a chegada do inverno, o que faz dela uma ponte entre o verão, com
seus cheiros e sabores bem característicos, algumas vezes tórrido e seco, que
permite a realização de inúmeras empreitadas impulsionadas por um farfalhar de sons,
ventos e folguedos e, o inverno, mais frio, mais lento e mais calmo. Nela, aqueles que são mais
propensos à solidão e à circunspecção, fazem longas incursões imaginativas e
profundas reflexões, que perpassam todo o seu interior, alcançando o âmago da
alma, onde estão depositados os inúmeros sedimentos do viver pretérito, do
amar, do querer sem poder, do desejar sem ter; das ilusões perdidas, das dores
muitas vezes sentidas; onde residem as partículas de saudade, que vez por outra
são revolvidas pelas reminiscências, evocadas ou não, que fazem subir à
superfície lembranças que se pensava, há muito apagadas.
No outono, os cheiros de terra molhada; de folhas ao vento, bem
como os sons dos pássaros e do ambiente como um todo, juntamente com os sabores
bem mais leves e demoradamente apreciados, faz erguer os rememorares de há
muito sufocados, que, uma vez acionados por alguma voz doce que chega aos
sentidos, desdobra-se em torrentes nostálgicas que impelem o coração até
lugares já não visitados, há algum tempo.
É assim que, outra vez em maio, este escrevedor volta ao
lugar que dez anos antes, deixara triste e com o gosto amargo de se sentir tal
qual aquela ave, que fora abatida em pleno voo, quando acreditava se dirigia a
um lugar de floração viçosa, de frutos saborosos, que imaginava lhe agradaria o
paladar, saciaria a sua sede de néctar e atiçaria o seu olfato com um suave perfume.
Ou então, usando outra alegoria, ele volta a pisar naquele solo, que deixara
dez anos antes, cabisbaixo e com aquela sensação experimentada pelo automobilista,
que, a despeito de liderar toda a jornada, sofre pane seca, pouco antes de completar
a volta que o levaria ao topo do podium.
Outra vez um sábado; um sábado em que chovia torrencialmente,
se daria um reencontro tão longamente esperado. Ali, se desfaria um imenso
hiato, aberto ao deixarem o Riomar, naquele memorável maio, que já se fazia
decano. O outono se fez ainda mais presente, visto que a chuva quase não deu
tréguas, contudo, sem impedir que aquelas mãos voltassem a se entrelaçar.
Entre duas xícaras de café e um suco de laranja, transcorreu
aquela tarde; chegou aquela noite; o passar do tempo não foi percebido e, os
dois puderam conversar; puderam sentir o perfume um do outro; puderam sorrir...
ele, pôde fazer voar a imaginação; experimentar a emoção de outra vez estar ao
lado dela; de outra vez pensar nela, não mais tão distante quanto ela estivera
por todo este tempo; não mais mediado pelos meios de comunicação moderna. Não.
Ela estava ali, ali ao alcance de suas mãos; sua voz lhe chegava aos ouvidos,
não pelo telefone ou pelo whats App; mas, ali, ao lado; na cadeira ao lado. Os
instantes de silêncio, ela interrompia indagando:
- No que está pensando?
E ele, apanhado em flagrante delito do coração, respondia, quase
desconcertado:
- Em nada!
Ora, naquele momento a sua timidez irreversível se
apresentou intrépida, fazendo com que ele se sentisse, como um menino que, mal dissimuladamente,
tenta fechar nas suas mãos trêmulas, os caramelos subtraídos da frasqueira, sem
que houvesse tempo de escapar à chegada súbita de quem os guardara!
Assim, aquele “nada” dado como resposta, foi uma imposição
da timidez, que nunca o deixa falar, quando precisa falar; quando quer falar;
quando deseja falar: o que sente, o que anseia, o que anela daquele alguém que
ali está perguntando:
- “No que está pensando”? “O que está maquinando”? “Por que
o silêncio”?
E a resposta, imposta é:
- “Nada”, “nada”, “por nada”!
Ah, esta timidez paralisadora! Silenciadora! Não haveria um
remédio para, ao menos, neutralizar os seus efeitos que tanto abate o espírito
de quem sofre com ela? Como se
desvencilhar do estupor que ela provoca, no momento mesmo em que se encontra
frente a frente, lado a lado, desfrutando do instante há muito esperado, imaginado?
Aquele ensejo de reencontro, embora tenha sido muitas vezes cuidadosamente
elaborado no espírito daquele que tanto o desejara, ao se lhe afigurar como
algo que ali estava, diante de si, o intimida e paralisa: a voz quase não saem;
as palavras teimam em não se deixar manejar; as frases mal articuladas,
rebentam de lábios quase cerrados, o que, certamente, dificulta o entendimento
de quem as ouve...
Como das outras vezes, várias foram as músicas trocadas, em
uma espécie de preparativo para o novo entrelaçar de mãos. Entre elas, se poderia
escolher duas, entre as que um mandou para o outro.
Ela, curiosa e arguta caçadora de "amenidades", descobrira uma
que ele nunca houvera ouvido, embora seja apaixonado por músicas e, tenha um
bom número delas.
https://youtu.be/RhmCA7FZKRE
A outra, ele também nunca ouvira antes – embora tenha sido
gravada nos últimos anos do século XX -, mas, por entender que se encaixava perfeitamente
no interregno entre os dois momentos até então vividos, mandou para ela.
José Jorge Andrade Damasceno – maio de 2023
historiadorbaiano@gmail.com
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Memórias de Maio - I
Memórias de maio – mãos que se enlaçaram
Pleno de reminiscências, maio tem sido pródigo em evocar um
bom número delas. Já se escreveu sobre algumas; outras ainda aguardam a sua vez.
Talvez, tais reminiscências aflorem pelo fato de ser um mês outonal, momento em
que o inverno se aproxima e, o clima ameno, desperta memórias que se fazem recônditas
no fundo da alma, como se quisesse indicar o aprofundamento da solidão, marca
indelével deste escrevedor, avultada por sua escassa sociabilidade, aprofundada
pelo inverno frio e chuvoso que se avizinha. Nele o tempo parece se arrastar
ainda mais lentamente; o corpo sente mais intensamente a falta de calor.
Corria o ano da graça de 2013 e, chovia torrencialmente em
Aracaju, como se aquele fosse um “Toró de lágrimas”, que, depois de amainar e
se tornar “água corrente”, acabaria por molhar não apenas a superfície; mas,
evidentemente que então não se sabia, acabaria por molhar caprichosamente uma
plantinha, ainda recém germinada no coração, que mais tarde, se desenvolveria e
se tornaria árvore.
A despeito do temporal que caía intermitente e impassível, eles
saíram de diferentes e distantes espaços e dirigiram-se ao Riomar, para enfim,
terem um encontro pessoal, real, concreto e palpável, no mundo real das pessoas
e das coisas. Fora o momento mágico em que as suas vozes foram ouvidas
mutuamente, sem a intermediação de equipamentos eletrônicos, sínteses de voz,
leitores de tela... Sim: eles ali estavam, frente a frente; lado a lado; como até
então, não puderam estar.
Na memória, ficou o momento da apresentação; o sorriso que
aflorou naquele rosto que a tristeza teimava em moldar com a dureza e a
circunspecção do tempo de asperezas e labores permanentes...Levados a um local
onde pudessem conversar, ali se deixaram ficar, talvez, para se poderem
certificar que de fato estavam ali, um juntinho do outro, separados por uma
mesa onde repousavam duas latas de refrigerante, que aliás, custaram a ser
esvaziadas...; ela, com suas mãozinhas ágeis, delicadas e irrequietas, logo
quebrou o gelo do toque, do contato tátil, da construção cerebral dos elementos
constitutivos daqueles seres reais que se encontravam ali, quase falando pelo
silêncio; ele, tímido por natureza e intimidado pela graciosa presença daquela
flor tão perfumada quanto meiga e doce; aspirava as suas palavras como se as precisasse
reter, ou pudesse reservar para não sucumbir ao tempo que demoraria para outra
vez as poder ouvir, tão perto como as ouvia naquele momento de grande enlevo e
encantamento.
Mas, como já dizia um cantor da “jovem guarda”: “... tudo que
é bom dura pouco”, o tempo passara veloz e, chegara a hora do encantado e da
encantadora serem outra vez separados. Separados, imaginava ele, para se
voltarem a encontrar no dia seguinte e, assim, pensava, ele falaria destemidamente
tudo que quisera, que precisava e que desejara falar para ela; tudo que
imaginara e, até ensaiara dizer para ela, sem freios, medos, acanhamentos,
reservas... sobre o que sentia por ela; como se encantara pelo seu jeitinho de “fada”;
como fala o poeta às suas “escolhidas” para o seu amor...
Mas “quá”! Ele a procurou; para ela ele telefonou; escreveu;
esperou que respondesse ou que atendesse... Nada; um silêncio profundo se fez
e, logo ele voltou ao seu habitual mundo vazio e solitário, mundo no qual
sempre habitou e, por poucas vezes dele saiu.
No entanto, a lembrança daquela noite chuvosa de sábado,
teimava em não se deixar apagar, a despeito de alguns esforços feitos neste
sentido, uma vez que a “esperança” de um “novo amanhecer”, acabara por se
desvanecer, ainda na madrugada do domingo, quando o sono quase não veio, tanto
quanto não vieram as respostas que ele buscara. Os seus cabelos encaracolados;
o formato do seu queixo; a maciez das suas mãos, teimaram em não lhe sair das
pontas dos dedos, mesmo não mais tendo voltado a tocar neles. Parecera que
houvera horas e horas de toques, como se a superfície do tocado se tivesse
transformado em profundidades que as mãos que se entrelaçaram construíram e
fizeram fortes aqueles vestígios tão frágeis, como se tivessem passado anos a
elaborar e reelaborar aqueles sinais táteis no profundo do ser que a tocara...
Como se tem feito em outras rememorações, aqui se quer
deixar marcada a música que permeou a memória deste escrevedor, no momento em que
se conversava a respeito do encontro e enquanto o esperava, ansiosamente. Foram
muitas as músicas trocadas entre eles, nos dias que antecederam à efeméride
aqui brevemente trazida da memória. Entre elas, certamente, a interpretação de José
Augusto – “Por Eu ter Me Machucado” -, expressa melhor o momento emocional que ele
vivia e a expectativa que criara em torno do encontro. E, como o leitor pôde
perceber no desfecho do arrazoado, acabou por ser uma espécie de “prévia”
alusão aos desdobramentos posteriores.
José Jorge Andrade Damasceno
25 de maio de 2023.