sexta-feira, 24 de novembro de 2023

CARTA ABERTA - II

Carta aberta a excelentíssima senhora dona Solidão. Prezada senhora: não te desejo saúde, nem te saúdo com qualquer tipo de cumprimento. Para mim, a senhora nem merece o tempo que vou dispender para escrever este arrazoado. Mas, como é preciso falar algumas coisas, então, vamos lá. É certo que já nos conhecemos a um bom número de décadas; é igualmente certo, que já procurei obter da senhora o divórcio inúmeras vezes; e, claro, todas aquelas inúmeras vezes a senhora se recusou a descasar-se de mim. A senhora, é bom que se diga, se casou comigo, evidentemente contra a minha vontade, desde aquele dia que fui expulso do aconchegante ventre da minha mãe e, de lá para cá, venho envidando diversos esforços para me desvencilhar da relação abusiva e tóxica – como está na moda se dizer hoje em dia-, a que tenho sido submetido pela excelentíssima senhora , por todos estes sessenta e dois anos, já vividos até o presente instante. Diversas foram as tentativas feitas por mim para que a senhora me desse um pouco de sossego; para que a senhora desse um tempo e esquecesse de mim; para que a senhora se fosse para bem longe e, de lá nem pensasse em voltar. Procurei brincar de quase todas as brincadeiras que as minhas limitações permitiam: mas, a senhora estava lá, sobretudo, quando parte daquelas brincadeiras não eram compatíveis com os meus faróis intermitentemente apagados. Tentei conversar com as meninas; tentei trocar ideias com os meninos; tentei contar causos e piadas; tentei me enturmar entre os colegas das escolas por onde passei; procurei me envolver nos folguedos e nas festas dos que possuíam a mesma idade que eu; procurei fumar os cigarros badalados de então: - LS, Vila Rica, River, Hollywood, Continental, Callton Minister, Hilton -, para ver se era aceito e encontrava a minha turma, procurando me entrosar em alguma delas: nada feito, tudo em vão. Sempre a senhora se intrometia nos lugares aonde eu ia, frequentava...; Também cantei em bares; neles toquei violão; ali, tomei largos goles de cachaça; bebi cerveja, experimentei vinho; até “Cuba Libre” em um bar no centro da cidade, eu tomei: mas sempre só, em uma mesa que poderiam estar quatro pessoas assentadas, trocando figurinhas, jogando conversa fora e, claro, apreciando a mistura de Montilla com Coca cola e limão! Mas, quem era a minha companhia inseparável, quem não desgrudava de min, nem da minha vida? A senhora, dona Solidão. Muitas vezes fui a festas, visto que diziam: - Ora, você não sai de casa! Pois então: fui a festas; várias festas. Festas no Tênis Clube; festa no Vencedor, festa da Mocidade, Criação de Mário Boa Morte e Tibúrcio, realizada na Praça Maestro Santa Isabel; fui algumas vezes atrás do Trio Elétrico de Valnei; fui em duas micaretas; fui em festas de Natal, garbosamente realizada no largo da Matriz de Santo Antônio; também nas de passagem de ano, tempo em que se armava o parque Cacique. Mas, adivinha quem era a minha companheira constante, permanente, presente sempre em todas aquelas ocasiões? A senhora, dona Solidão. Amigos? Namoradas, que todos tinham em profusão, muitas vezes causando até mesmo confusão? Todos tinham mas, eu não. Bom. Aí, aí veio o tempo do “Segundo Grau” e o tempo da “Igreja”. Nem ali, dona Solidão, a senhora se afastou de mim. Tentei entrar nos grupos; nas patotas; nas “igrejinhas” já consolidadas.... Aí é que a coisa entornou de vez. Não se entra nestes espaços, sem que seja convidado por um de seus líderes; assim mesmo, um tempo de desconfiança e retração é invariavelmente vivido pelo novato, convidado; que dizer do noviço intruso? Mas, a senhora, mesmo não tendo sido convidada nem por mim, nem pelos demais participantes do meio onde se davam as celebrações cúlticas ou as atividades escolares, lá estavas, garbosa e ensimesmada, dona da situação, fazendo com que eu me sentisse ainda mais isolado do que o fio elétrico que, além de ser encapado para segurança dos usuários, corre dentro de dutos, escondidos nas paredes e lajes de um prédio qualquer. Ineludivelmente o tempo passava célere, a idade avançava indiferente a mim e ao teu assédio constante ao meu viver sem ninguém com quem pudesse contar, com até alguns poucos amigos, mas, eles, já tinham as suas obrigações laborais, as suas demandas conjugais, os seus compromissos profissionais que os ocupavam, que deles exigiam energias e atenção. Portanto, não dispondo de tempo para me ouvir as queixas, para me amenizar os temores, para me confortar as dores do celibato compulsório. Mas a senhora, dona Solidão, cá estava, pronta a me enredar em insônias, em mil tentativas de encontrar soluções, quase sempre as mais desencontradas. Nem é preciso dizer que tudo isto acabava fazendo com que eu me angustiasse com os dias velozes que passavam e a minha vida permanecia indefinida, sob todos os aspectos. E a senhora, o que dizia em meu apoio? Nada, pois a senhora nunca tem nada a dizer, para aqueles a quem a senhora se assenhora da vida, dos espaços, dos pensamentos, dos desejos... A sua tirania, dona Solidão, pode ser comparada àquela exercida sobre aqueles que são levados al cadafalso para ser submetido à guilhotina, sem que tenha quem o possa substituir, como o encontrara um dos personagens de Charles Dickens, ao “contar” um dos mais sangrentos momentos da Revolução Francesa. A tirania daquelas multidões enfurecidas e ávidas por sangue, que ansiavam por guilhotinar a tantos quantos pudessem e a tantos quantos classificassem como “traidores”, é a tirania que a senhora exerce sobre aqueles a quem a senhora aprisiona em tuas teias tecidas com os fios da incerteza, arrematando conosco de dúvidas quase insanáveis, de tristezas inconsoláveis, de angústias quase insuportáveis, distribuídos em várias partes da tessitura maldita. Pouco ou nada adiantou para este missivista o fato de ter alcançado alguns patamares na vida acadêmica e profissional, pois, como sempre fora, a senhora não o largara. Ao contrário. Acada vez que ele se encontrava rodeado de alunos, de colegas ou, de alguns poucos amigos.... a senhora lá estava, impávida, incólume, ereta e altiva, sem sequer fazer qualquer esforço para ele não perceber a tua presença incômoda. Só bastava ele ultrapassar o limiar da porta de saída do seu local de trabalho, para a senhora se lhe chegar aos ouvidos para dizer: - Oi, estou por aqui, viu? Mesmo neste Ônibus cheio de estudantes em algazarras juvenis. Quando você descer no ponto do Batalhão e atravessar o asfalto, tomando a direção de casa, o meu silêncio te acompanhará até lá. Fique tranquilo. Conte comigo! Não foi diferente nas minhas andanças por São Lázaro, pelo tempo que cursei o mestrado, pois foi a senhora a minha companhia; nem em Niterói, onde eu passei os mais duros dias do meu viver, onde a saudade dos meus filhos me feria os olhos e a tristeza de estar longe deles me cortava os ossos, era a senhora, dona Solidão que me acompanhava cada passo dado naquela cidade e, mesmo, no Campus do Gragoatá, para onde me dirigia ladeando a Baía de Guanabara para assistir as aulas; lá estava a senhora, andando comigo, falando comigo, dormindo comigo, acordando comigo, morando comigo, assistindo impassiva, quando eu chorava a falta dos meus filhos ainda tenros e frágeis... E o que dizer quando a morte tirou a minha mãe de mim, aliás, a única pessoa que fazia frente à tua insistência em estar sempre comigo? Foi a senhora que, de uma vez por todas, sem a menor cerimônia, sem nenhum pejo ou pudor de quaisquer ordem, se assenhoreou de mim e do meu ser, sem me deixar qualquer chance de te rechaçar, de te rejeitar, de te recusar a indesejada companhia. Agora que já estou velho, cansado de tua presença constante em minha vida, na minha cama, na minha mesa, no meu quarto, no meu almoço e no meu jantar; no meu café e na minha sala de estar, na minha cozinha; no meu escritório de trabalho; no meu escrever, no meu ler, no meu ouvir músicas; que até me impedes de fazer um café fresco para tomar no meio da tarde, já que ninguém há para me fazer companhia, com quem saborear aos goles em meio a uma boa conversa; depois de me teres feito chorar tantas lágrimas quantos anos eu já vivi; depois de me teres angustiado a não mais poder enumerar..., uma vez mais insisto que me quero divorciar da senhora, dona Solidão; quero da senhora, separação incondicional; quero que o destrato seja irrevogável; insisto que quero que a senhora se retire da minha vida e se vá para bem longe; insisto que me deixe viver o que resta dos meus dias, reaparecendo apenas, para me fazer companhia na sepultura, onde, aliás, dona Solidão, eres presença inevitável. Alagoinhas 24 de Novembro de 2023 José Jorge Andrade Damasceno historiadorbaiano@gmail.com

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