SÓ NA ESTRADA
Aos primeiros augúrios do alvorecer, não importando a
estação ou o dia, os pássaros iniciam os seus gorjeios, acompanhando os marcados
passos do tempo e o farfalhar do que se preparam para o mourejar dos que cedo
se colocam aos recomeços dos seus deveres, prazeres e devoções matinais.
Na casa de José Mário, que cedo acordava com o cantar dos
galos e o piar das demais aves alvoroçadas com as primeiras luzes da aurora,
embora só saísse para a escola, por volta das seis e meia, após o primeiro “apito”
da “Leste”, convocando os seus operários para o trabalho as sete, o cotidiano
não fosse muito diferente, visto que dona Arminda logo cedo precisava dar conta
do café, da iniciação do preparo do almoço e, pouco depois das sete horas, se
dirigisse ao rio Aramari, com sua bacia de roupas para lavar e, daquela
atividade para a qual precisava usar a força dos seus braços, apurar os
recursos para o provimento dele e dos seus dois irmãos mais velhos.
Saliente-se de passagem que, aquele esforço braçal, também
exigia alguma habilidade, uma vez que as roupas não só deveriam ser
lavadas e passadas, como, em algumas ocasiões, precisavam ser caprichosamente
engomadas, para que fossem entregues e recebesse a parca remuneração por um
serviço tão inglório. Nem por isto, Dona Arminda descuidava daquelas tarefas,
desempenhando-as com esmero e afinco, pois, se não receberia melhor remuneração
por tanta dedicação, poderia ganhar outras “freguesas”, a partir da satisfação
daquelas senhoras que pagavam pelos serviços, mediante indicação a alguma outra
que dele quisesse fazer uso.
Tendo iniciado a sua vida escolar no ano em que as
autoridades locais promoveram a implantação de uma sala “especial” no prédio
escolar Brasilino Viegas, onde ele seria apresentado ao Sistema Braille de
leitura e escrita, por meio do qual teria enfim, acesso ao mundo do saber:
literatura, matemática, gramática, clássicos da cultura e da história, José
Mário, aquele menino irrequieto, traquino e curioso, ali permaneceu até a
conclusão do que então se chamava 1º grau escolar, no seu nível 1. Ali, foi
possível tomar contato com os primeiros rudimentos da leitura, uma vez que, em
um dado momento de sua escolarização, pudera interagir diretamente com os companheiros
de classe, na medida em que tivera o mesmo livro utilizado pelos demais
colegas, sendo-lhe possível participar das “leituras” desenvolvidas
coletivamente, que foram de grande valia para o seu aprimoramento na prática
daquela atividade.
Em grande medida, José Mário presenciou por todos os anos da sua vida,
aqueles labores de sua mãe, em grande parte do tempo, destinados a provisão das
suas necessidades de alimentação, vestuário, abrigo e formação para a vida. Para
além dos labores, também vivenciou as suas dores. No ano em que ele completaria
catorze anos, ele tem contato direto com a morte de alguém a quem era muito
afeiçoado, contato que lhe modificara inexoravelmente o rumo da vida. Dona Arminda ainda não completara trinta e nove anos, quando fora atingida pela
fatalidade que fora a morte do seu filho mais velho, filho que se fizera seu
companheiro no arrimo daquela casa. Aquele golpe quase a fizera ruir em seu ânimo e
interesse pela vida.
Mergulhada em profunda tristeza e vertendo lágrimas de
profunda dor, ela se prostrara por longas semanas, se erguendo apenas para o
estrito cumprimento dos deveres laborais, considerando que ainda haveria de
carregar sob os seus ombros, agora sozinha, um seu filho que, conforme
considerava, dependeria das forças que lhe restassem, até o fim dos seus dias.
Aquele início de inverno de 1974 marcou indelevelmente um
divisor de águas para dona Arminda e José Mário. Para ela, fora o fim precoce
da vida do seu primogênito, sobre quem ela depositava as suas esperanças de
dias melhores, na medida em que ele estava sendo iniciado na arte da marcenaria,
profissão com a qual procuraria mitigar as necessidades orçamentárias da casa
e, quiçá, a ajudaria a encontrar meios de sobrevivência menos penosos. Para
José Mário, aquela fora uma morte incompreendida para os seus poucos laivos de
maturidade, uma vez que ainda não se tivera deparado com aquele tipo de
vivência tão próxima de si – embora dois de seus irmãos mais novos houvessem
morrido antes de completarem o terceiro ano de vida -, sobretudo, na idade que
aquela morte lhe arrebatara o irmão: vinte
anos , era o tempo vivido por Zé Carlos, quando o seu corpo fora descido a
campa fria no cemitério da Praça da Saudade.
Dali em diante, muitas coisas mudaram na vida de José Mário
e de sua Mãe. Ele, acreditando que também morreria aos vinte anos, como se dera
com o seu irmão, passara a viver atemorizado, embora a ninguém jamais houvera
dito dessa impressão que lhe impregnara o espírito, durante o tempo que
transcorrera aquele evento e o momento que completara a sua segunda década.
Ela, ao se prostrar de corpo de espírito, pois perdera o interesse por quase
tudo aquilo que fazia no seu dia a dia; se tornara triste e acabrunhada,
vergada ao peso do golpe funesto que a abatera profundamente, tornara-se
taciturna e por muitos anos, se alimentara da dor da perda e dessedentara-se
com as lágrimas daquela dor. Segundo confessara mais tarde, só a existência
daquele outro filho que, conforme entendia, dependeria dela para sobreviver, é
que a erguera lentamente do seu torpor, retomando aos poucos o seu lidar
diário, sem, porém, aquele entusiasmo que sempre a impulsionara, a despeito de
todas as agruras inerentes ao tipo de trabalho que desenvolvia para mitigar a
fome e a nudez dela e dos seus.
Transcorreram os anos, as décadas e, aqueles dois seres
passaram a dividir um com o outro os fardos que a vida lhes impunha, bem como
suportaram juntos os infortúnios da pobreza, que os impedia de proporcionar-se
mutuamente conforto e bem estar; as incertezas profissionais e funcionais que
permearam os anos de formação escolar e acadêmica de José Mário e, choraram
juntos – embora cada um de si para consigo -, os inúmeros fracassos que ele
acumulou na sua árida caminhada em busca de ingresso na docência.
Quando finalmente obteve êxito naquela empreitada, passaram
a dividir – conforme ela já o fizera com o seu primogênito – as responsabilidades
gerenciais da casa, o que permitiu a ele, reduzir a pesada carga que ela
suportara sozinha por todos aqueles anos, pois, puderam caminhar juntos, lado a
lado, levando o peso daquilo que lhes era dado, de modo equânime e equilibrado
Mas, trinta e um anos depois, outra vez a morte se apresenta
para interromper uma daquelas vidas, conforme já se temia; já se esperava, por
conta do avançar dos anos. Era dona Arminda que tivera a vida arrebatada do
convívio do seu filho, como o fizera com o seu primogênito.
Certa manhã, como era o seu costume, ao descer para junto
com ela tomara primeira refeição do dia, José Mário estranhou não sentir o
aroma daquele café que deveria lhe chegar às narinas, logo que assomasse o
portão da casa; era a hora de costume; ela porém, não movimentava as panelas na
cozinha, indicando o labor de um café que acabava de ser coado: reinava o silêncio
e, o que ele temia estava bem ao seu lado ao passar para a cozinha, a fim de
espreitar o que estaria acontecendo.
Tendo encontrado as panelas frias; o café do dia anterior;
não encontrando qualquer vestígio de que ela houvesse descido para alimentar as
suas galinhas, atemorizou-se sobremaneira e, com receio de encontrar o cadáver de sua mãe, entrou no quarto, mas,
não ousou encostar na cama.
Ele só se dera conta que acontecera o que não queria
acreditar, quando uma neta de dona Arminda chega e pergunta:
- O que vó tem?
Ao que replicou:
- Onde ela está?
- No sofá.
Ali, José Mário compreendeu que ela houvera sofrido um AVC
e, por isto, não pudera se comunicar com ele, embora houvesse passado por ela
duas ou três vezes, já ansioso por saber o que houvera se dado.
Depois de ter sido levada pela SAMU, José Mário subiu até o
seu quarto e ergueu a sua voz em um pranto longo e sofrido, pois aquilo que
presenciara, lhe dera a certeza de que ela nunca mais voltaria àquele espaço que
por quase quarenta anos eles compartilharam.
Alguns dias depois, os seus temores se confirmaram. Depois
de alguns dias internada; depois de concluído o horário de visita em que ela
lhe apertou a mão com a sua ainda grossa pelo amanho das trouxas de roupa, como
se se quisesse despedir do seu filho, ficou reforçada no espírito de José Mário
a convicção que tivera no dia em que fora levada para o hospital. Procurando
conter-se na saída da enfermaria, desabou em pranto convulsivo ao se encontrar
só em casa. Ele não conseguia se enganar: aquele desfecho se daria em uma
questão de dias. E, se deu. Uma semana após aquele emblemático aperto daquelas mãos ainda fortes e calosas, chegara o fim da
contagem dos seus dias sobre a terra.
Ao falecer dona Arminda, José Mário teve bem claro que, dali
em diante, ele passaria a trilhar só a estrada, até chegar o dia que por sua
vez, ele fosse também tragado pela morte. E tem sido assim, nos últimos 18
anos.
Alagoinhas, 12 de novembro de 2023
José Jorge Andrade Damasceno
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