sábado, 28 de outubro de 2023

CRÔNICA DE UMA SOLIDÃO PERMANENTE

Crônica de uma solidão permanente

 

Sempre lhe faltou a intrepidez; sempre lhe sobrou a timidez; o medo de arriscar, de avançar, sempre lhe paralisou; a apreensão de a realidade não ser tal  como a ele parecia, sempre apeou-lhe os passos e lhe fez caminhar com grandes dificuldades; a incerteza sempre esteve a fervilhar nos seus pensamentos e muitas vezes lhe fez recuar os passos; tantas vezes pensou, tantas vezes ponderou, tantas vezes considerou e, ainda assim, muitas foram as decisões insensatas que tomou, muitos os caminhos tortuosos que trilhou, em muitos poços sem fundo desceu, muitos foram os abismos profundos que mergulhou, foram muitas as cisternas rotas que cavou.. o receio de errar, o levou a cometer inumeráveis erros: de cálculo, de avaliação, de leitura da realidade, de apreensão do mundo, de compreensão do que se lhe dizia/fazia ou parecia dizer/fazer, de compreensão das coisas à sua volta, de interpretação de intensões/palavras/ações...

A solidão sempre foi a marca indelével do seu existir, bem mais do que ele imaginasse ou desejasse; é certo que do alto dos seus arroubos de indignação e de fúria pelos seus desacertos e fracassos, sempre a evocou como quem pudesse o esconder da vergonha dos desastres, das derrotas, das muitas vezes que foi incapaz de perceber as coisas, em tempo de recuar ou de sequer pensar em dar um passo a mais em sua busca ou execução; não se dava conta - ou não queria - que ela nunca lhe deixara, mesmo cercado por multidões de pessoas, grandes ou diminutas; a solidão parece ser parte inerente do seu ser; desde a mais tenra infância: as brincadeiras, as peraltices, as traquinagens, quase invariavelmente eram atos solitários.

Agora mesmo, no momento em que estas letras são digitadas, a enorme casa está esvaziada  e, é habitada apenas por quem o faz... tem-se por companhia os pássaros que gorjeiam no espaço externo e contíguo; os insetos do forro e do telhado; a poeira e a sujeira do chão; os poucos móveis do imóvel; os equipamentos que ainda permitem alguma comunicação com o mundo exterior e com algumas pouquíssimas pessoas que se dignam em estabelecer algum tipo de relação com um ser tão pouco sociável como este solitário., Ele não o é por escolha, nem tem prazerem o ser... Mas, ao que parece, foi eleito uma de suas peças humanas prediletas

Em um tempo já pretérito de sua vida, muitas foram as vezes em que ele se banhou, se perfumou e se vestiu à sua maneira e, de acordo como lhe era possível, mediante as suas condições econômicas e sociais, bem como a da sua genitora/provedora, com o objetivo de sair à rua, como o faziam os demais rapazes da sua idade, em busca de encontrar alguma moça que ao menos lhe desse um pouco de atenção, lhe pudesse ouvir, ainda que apenas para lhe fazer companhia; fossem os carnavais, os natais ou quaisquer folguedos ou espaços, vãs eram as suas buscas.

Malgrado ter se acotovelado entre as muitas pessoas, em diversos espaços da cidade; ou ter participado por um largo tempo de duas igrejas, com perfis sociais e litúrgicos diferentes; a despeito de ter frequentado escolas e alguns bares; apesar de ter ido a algumas festas de largo e tendo trabalhado em uma empresa de porte médio na capital do seu Estado; não obstante ter estudado em algumas Universidades – nos diversos graus de graduação – e, ter se tornado docente na mesma faculdade em que se graduara, a solidão lhe era inarredável, estando sempre com ele; quantas vezes, ao voltar de um dia intenso de atividades acadêmicas, ele sentia o peso do isolamento e do descolamento social em que vivia, tendo apenas ela – a solidão -, e somente ela como sua constante companhia.

Saliente-se, por dever de justiça, que parte daquele isolamento era uma escolha daquele solitário, sobretudo, por não se sentir um com aqueles outros – colegas, alunos – que gravitavam naqueles espaços, como se fossem “corpos” soltos e preocupados cada um com a sua própria órbita, que claro, eram os próprios umbigos. Tendo as vaidades pessoais como fios condutores dos seus fazeres e seres, acercavam-se do professor desarraigado, apenas enquanto lhe fosse útil para o seus tarefares. Neste ponto, o alto-isolamento acabava por ser um instrumento a partir do qual intentava estabelecer uma espécie de proteção do isolamento que já lhe era inerente, na vã tentativa de reduzir os seus danos.

Entrementes, por incontáveis anos, a solidão insiste em estar presente, mesmo nos instantes de contrição ou das ideias e dos desejos os mais inconfessáveis; ela é, em suma, crônica; ela se instalou no seu viver, desde pouco depois de nascer em casa, por obra de parteira.

 

José Jorge Andrade Damasceno – outubro de 2023 

historiadorbaiano@gmail.com