sábado, 11 de junho de 2016

Iraci Gama Santa Luzia - republicação


Puxando pela Memória: “Seu” Cabral –
Iraci Gama Santa Luzia

 

Originalmente publicado no site do jornal Alagoinhas Hoje em 21 de abril de 2013 | 20:53

 

A minha vida tem sido repleta de situações extraordinárias, que hoje reputo

contributivas e fundamentais na minha formação pessoal e política. Ainda na

infância participei de algumas greves dos ferroviários, levada pelas mãos do meu

tio Zeca da Gama e, por esse intermédio, estreei falando em público, já

adolescente, em substituição à profª Agal Máxima Conceição, na greve de 1960.

 

Conheci várias pessoas importantes e vivi momentos especiais, com algumas delas,

como as três professoras primárias: Maria de Lourdes Saback, Maria José Bastos –

Zezé e Ana de Oliveira Campos – Noquinha. Conheci alguns políticos, como

Fernando Santana – Deputado Comunista de vários mandatos que, no comício de

campanha de Murilo Cavalcante para Prefeito de Alagoinhas, na Rua 2 de julho, em

1962, após minha fala, tomou o microfone e disse, com sua voz possante, dentre

outras coisas: “(…) ainda ouviremos falar muito dessa jovem, pois ela vai muito

longe (…)” e me levantou do chão, num abraço inesquecível.

 

Conheci também algumas figuras humanas, típicas, como “Dedé doido” que vinha

todos os dias à minha casa conversar com meu avô, pedia pimenta malagueta e a

machucava, com uma pedra, no parapeito da janela. Comia e perguntava: “Seu

Pedro”, se a gente amarrar uma escada na outra, um bocado de escada, a gente

chega no céu? E meu avô, com toda paciência para ouvir seus questionamentos,

conversava com ele, assim como conversava com outras pessoas menos sociáveis.

Havia alguns vizinhos de nossa casa que vinham a essa mesma janela, para falar

com meu avô sobre diferentes assuntos, como “Seu” João Pereira – fã de Getúlio

Vargas; “Nenenzinho”, filho de dona França – fã de Luiz Carlos Prestes – que

dizia “eu sou uma brasileira russa”; “Seu” João Batista que falava sobre

religião, sobre espiritismo, dentre outros.

 

Mas, sem sombra de dúvidas, uma personagem desse tempo, a cada dia se agiganta,

no meu interior, pois, com o passar do tempo e pelos contatos com pesquisadores

de nossa história, fomos descobrindo a grande importância desse meu “guru” da

infância: “Seu” Cabral. Joaquim Cabral de Souza era um sapateiro “remendão” que

morava na Rua 2 de julho, perto da minha casa, bem em frente ao trecho da

entrada para a Oficina São Francisco. A casa era muito grande e a primeira sala,

a sala de entrada servia de “ateliê” do morador que aí colocava todo seu

material de trabalho.

 

No centro dessa sala, uma cadeira de madeira, com encosto e assento de couro em

tiras, era o local onde esse homem passava o dia sentado, na atividade rotineira

de consertar calçados. Sempre sem camisa, exibia um tronco forte – apesar da

idade denunciadora de alguns janeiros – e de muita resistência, provocada talvez

pelo movimento repetitivo e constante do martelo, na sola do sapato sobre aquele

“pé de ferro” que ele usava como suporte para o serviço de colocação de um novo

solado, de meio solado a famosa “meia sola” que renovava os calçados já usados.

 

Lembrando, depois de tantos anos, o que acontecia naquele espaço, vem uma

reflexão: como é que aquele homem aguentava o peso da batida do martelo sobre o

calçado apoiado no pé de ferro que ele colocava sobre a coxa esquerda, perto do

joelho onde punha uma cobertura protetora de um pedaço de couro? A perna recebia

toda a carga do peso da batida do martelo, para juntar o novo solado lambuzado

por aquela cola de cheiro forte – a cola de sapateiro ou sobre pequenos pregos

que ele usava para reforçar a ligação do novo material com a base do calçado que

ele consertava, encaixado no pé de ferro. Como é que aquele homem aguentava

tanta pancadaria, todo dia, o dia todo? É verdade que à frente dele, havia uma

bancada, mas era usada para guardar alguns materiais importantes, em divisões

próprias, como: cola, água, pregos, brochas, ferramentas indispensáveis no

trabalho do remendo. Mas batida de martelo, só mesmo sobre o joelho do

sapateiro!

 

Era, portanto um homem forte, na casa dos cinquenta anos, de pele curtida e

escura. Pela cor da pele seria negro, mas o cabelo não era encarapinhado, pelo

contrário, era muito liso – um negro, de cabelo bem liso, o que caracterizava a

designação “cabo verde”. E o corte de cabelo, muito comum nesse tempo, era a

cabeleira inteira – o fio reto da testa até o pescoço, com costeletas curtas e

cangote bem aparado.

 

Ele gostava assim. Quando sentava na cadeira para trabalhar, de manhã, estava

pronto – rosto bem lavado, cabelo bem penteado, bem assentado. Não me lembro de

ter visto, uma só vez, um único fio de cabelo suspenso, e cabelo assanhado,

jamais. Esse tipo de corte só serve mesmo para quem tem cabelo liso e eu tive o

prazer de conviver com uma cabeleira assim, naquela minha infância – a de Zeca

da Gama que me deixava pentear constantemente, sempre que pedia, inclusive

fazendo trança, só não me permitia colocar laço de fita nas pontas. Eu prometia

concordar e por isso, ele sentava no banco eu ficava de joelhos, por traz dele,

fazia e desfazia as tranças (…) e ele dormia.

 

Em “Seu” Cabral, o cabelo liso, bem penteado, da cor da pele era contraste que

chamava atenção, à primeira vista, quando ele estava sério. Mas quando dava

risada, um outro traço o distinguia: a gengiva bem corada, cenoura, sem um só

dente. E hoje dá para pensar: por que será que ele não tinha dentes? Opção,

falta de recursos, displicência, simplicidade? Quem sabe tudo isso misturado. E

ele ria livremente, enquanto conversava com quem estava à sua volta, sem

qualquer preocupação com a falta de dentes que dava à fisionomia daquele homem

simples, o toque de naturalidade de sua alma livre e ansiosa por mais liberdade

para todos. A preocupação não estava com a boca, mas com a palavra que saía

dela!

 

A cadeira do sapateiro ficava no centro da sala, em frente à janela da rua, o

que permitia a visão desse homem, do outro lado da linha do trem. Em volta da

cadeira, muitas tiras de pneus usados em pequenos pedaços ou pedaços grandes e

até pneus inteiros, além de tiras e pedaços de couro curtido. Cabe lembrar que,

nessa época, os solados dos sapatos, de um modo geral, eram de pneus, inclusive,

os escolares, como aqui, em Alagoinhas, o nosso sapato da farda diária do

Colégio Santíssimo Sacramento, o que o tornava muito pesado, desagradável. Os

sapatos, sandálias, chinelos, aguardando conserto, se misturavam aos materiais

espalhados pelo chão da sala. E, por cima de tudo, em folhas soltas, para

leitura de diferentes assuntos, conforme o interesse de quem chegava, estava o

jornal.

 

O jornal “A Tarde” comprado diariamente era o elemento indispensável para aquele

homem e sua comunidade. Por isso, não só o jornal do dia ficava à disposição,

mas também o dos dias anteriores. Dinheiro era coisa rara naquela casa, porque

os “remendos” custavam pouco e “Seu” Cabral não cobrava de famílias mais pobres… 

O do jornal, porém, era sagrado! viver era verbo de difícil conjugação por

aquela família e dependia, muitas vezes, de dona Cota – mulher de Cabral –

especialista em transformar cabelo crespo em liso, pelo processo de alisamento a

ferro quente. A vizinhança (e até gente de longe) entregava a sua cabeleira à

competência de dona Cota que o espichava nos moldes da época e todos elogiavam a

transformação efetuada.

 

O que a chapinha faz hoje com o poder da eletricidade, dona Cota fazia naquele

tempo com a força dos braços num processo que pode ser assim descrito: uma

porção pequena de cabelo apoiado num pedaço de pano em várias dobras, para

evitar quentura maior na mão esquerda, enquanto o ferro esquentava no fogão a

carvão e, na mão direita, o ferro, fechado, deslizava sobre aquele pedaço de

cabelo puxando-o delicadamente, mas com firmeza. Depois, com o ferro aberto, a

porção do cabelo entre as duas chapinhas, segurava e puxava aquele pedaço de

cabelo da cabeça às pontas até que ele ficasse completamente liso.

 

E essa porção de cabelo já pronta vai sendo colocada sobre as outras, enquanto

ela põe novamente o ferro sobre a brasa, a esquentar, para alisar novo pedaço

que ela prepara cuidadosamente, até espichar toda a cabeleira. Esse trabalho

começava sempre pela base do cabelo – o cangote e ia subindo aos poucos,

contornando toda a cabeça. Claro que a cabeça ficava quente, mas o cabelo

amansado, mais fácil de pentear, compensava o calor daquele instante.

 

Isso acontecia na área próxima à cozinha, nos fundos da casa. Na frente, na sala

do sapateiro, ele gastava saliva e sorriso, conversando com seus clientes, seus

amigos, seus ouvintes, seus “aprendizes”. No meio desses, eu me incluo, porque

acompanhava meu avô, todos os dias, até a casa de “Seu” Cabral para aquela

conversa. O meu avô já tinha certa idade e não enxergava direito e a criança que

vinha pela sua mão, era guia e companhia e, sem querer, tornou-se testemunha do

modo de vida desse homem que, para ela, era um sapateiro que falava de política

e vivia cercado de gente que ela já conhecia da convivência familiar ou ia

conhecendo naquele ambiente.

 

Ferroviários e sindicalistas chegavam, entravam, pegavam aquelas páginas de

jornal, faziam leitura de determinadas matérias ou trechos específicos, sempre

para provocar discussão ou reforçar a discussão já iniciada. Era um entre e sai

de gente, sem licença, nem interrupção. Quem entrava, ficava de pé, encostado na

parede, ou de cócoras ou sentado no chão, quando o cansaço aumentava. Isso

mostra a escassez de apoio logístico para quem chegava, pois além da cadeira do

sapateiro, só havia uma outra – a do meu avô. Eu mesma ficava de pé ou de

cócoras ou sentada no chão, como todos os visitantes, até que recebi um presente

de “Seu” Cabral: um banquinho feito com pedaços de madeira e tiras de pneu.

 

Ele ficava encostado na parede junto da cadeira do velho e saía dali somente

para a “dona” sentar. Certamente essa foi a primeira “carteira escolar” em que

sentei e aquela sala o primeiro espaço de aula explícita, na minha vida. Só não

posso dizer que “Seu” Cabral foi meu primeiro professor, porque Deus já me havia

dado o privilégio de viver numa família, onde a prática de vida aliada à

palavra, aos conselhos, era um manancial de ensinamentos, e principalmente pelo

exemplo, é que fui aprendendo.

 

E o chefe dessa família era amigo de “Seu” Cabral. Amigo, mesmo, porque, de vez

em quando, ele entrava no quarto, trocava os chinelos, às vezes a camisa, pegava

o chapéu e ouvia da minha avó: “já vai Pedro?” E ele respondia: ”Vou ver

Cabral”. Eu estranhava aquela resposta, porque ele não me levava. Aquela não era

nossa viagem diária, constante. Ele ia sozinho. Só depois fiquei sabendo que ele

ia à delegacia, quer dizer, ia primeiro ao prefeito Pedro Dórea – seu compadre –

pedir por aquele “preso” que era seu amigo e, com a ordem da autoridade, voltava

com o “preso” para casa. Só agora depois de adulta e pelas lições dos

pesquisadores, entendi o que se passava – “Seu” Cabral era comunista e

perseguido político que, quando a autoridade policial queria, o levava, sem

qualquer explicação ou justificativa, para trás das grades. E voltava sempre

para aquela mesma cadeira de sapateiro, no meio de botas, sapatos e chinelos

velhos, recortes de couro e pneus, e folhas abertas de jornais, para continuar

sua missão de libertador de mentes.

 

A escola de “Seu” Cabral teve muitos alunos. Os ferroviários faziam ponto no

sapateiro, para atualizar as informações, saber das novidades, fazer

questionamentos, interagir. A Oficina de São Francisco apitava às onze horas

para a saída dos operários, doze e trinta fechava o portão novamente para o

turno vespertino, liberando todos os operários às dezesseis e trinta. E esses

horários controlavam as visitas ao “professor”. Alguns paravam lá às onze horas,

outros preferiam almoçar e chegar antes do horário de fechar o portão e outros,

ainda, optavam pela parte da tarde, porque ficavam com mais tempo para esses

contatos.

 

Verdade é que, entre o portão da Oficina e a sala de aula do sapateiro,

formava-se uma linha imaginária – uma estrada do conhecimento que atraía esses

ferroviários e os mantinha ligados e “viciados” em discutir a situação política

do país, o que os afinava com as questões gerais e específicas do operariado

brasileiro e internacional. Para nós, que acompanhávamos essa movimentação, de

perto, muitas vezes sentada no banquinho de tira de pneu, a lição maior era do

valor da diversidade, pois ali todos tinham vez e voz e a divergência acontecia

em clima de respeito. O jornal era lido e comentado, indistintamente.

 

Às vezes, alguém dizia: ““Seu” Pedro,  pede pra menina ler”. E eu lia, com

desenvoltura, palavras que nunca tinha visto/ouvido na minha escola primária e

assim ia enriquecendo o meu vocabulário com aqueles textos e seus significados.

Foi aí na escola de “Seu” Cabral que ouvi falar, pela primeira vez em “trustes”;

na juventude, o combate aos “trustes” americanos era a tônica nos discursos,

mas, naquele tempo, eram trustes japoneses. Na década de oitenta, em conversa

com o Sr. Ildefonso, na preparação de uma carta dele para o Presidente da

República (desde a infância, sirvo de “escriba” para muita gente) ele me contava

que se lembrava de mim, sentada e lendo o jornal na casa de “Seu” Cabral e

depois, na adolescência, estudando e lendo em voz alta, cedinho, andando na Rua

2 de julho – da Estação São Francisco até a porta de “Seu” Durval.

 

Fiquei emocionada com essa declaração porque o senhor Ildefonso era um operário

aposentado do curtume (no fim do 2 de julho havia uma concentração de 3

curtumes: O Santo Antonio, O São Francisco e o São Paulo); era um comunista

respeitado pelos seus pares, pela tradição de seriedade dentro do PC do B. E

quando ele falava em “Seu” Cabral eu sentia que, para ele, a minha presença lá

era referência de credibilidade. Temos certeza, pois, de que aquele homem pobre,

sapateiro, desdentado, conversador, alegre, risonho, questionador, crítico, é o

símbolo de uma época em que o operariado buscava se fortalecer pela informação,

se unir para as reivindicações. E aquela sala de “Seu” Cabral era oficina de

comportamento, na área de localização, ponto de encontro dos ferroviários/

operários de Alagoinhas, ávidos por progresso, mas também por respeito aos seus direitos.

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