terça-feira, 7 de julho de 2020

Alagoinhas, julho de 1954 - "Êta, trem bonito danado": uma memória da professora Iraci Gama.


2 de julho de 1954 – memórias de uma de suas moradoras

A rua/bairro dois de julho é um daqueles “lugares “em que as “memórias” se fazem presentes em toda a sua extensão. Dividida em duas partes pela linha férrea que foi o traço a partir do qual toda a urbe alagoinhense conformou a sua paisagem urbana, a rua 2 de julho, se inicia ao atravessar a “linha” para a direita, deixando para trás a rua Moreira Rêgo e, se estende até as margens do rio Aramari, por onde histórias e memórias se misturam desde os finais do século XIX. Pouco a pouco chácaras, sítios e fazendas vão dando lugar a loteamentos e habitações modestas, ganhando caráter urbano quando dotado de calçamento feito com paralelepípedos, energia elétrica, iluminação pública e, por fim, esgotamento sanitário. Mas, não se deve perder de vista que o desenvolvimento urbano produzido pela implantação de tais melhorias, fez-se lento e pleno de soluções de continuidade. Enquanto tal se dava, a marca indelével do espaço urbano em apreço era, sem sombra de dúvidas, a linha férrea, e as oficinas a ela ligadas, a estação São Francisco e os concomitantes ires e vires dos trens de cargas e de passageiros.
Lília Schwarcz ao concluir a sua monumental biografia de Lima Barreto, evocando Pierre Nora, constrói uma interessante leitura acerca da noção de “lugares de memória”, que aqui parece pertinente inserir. Diz SCHWARCZ:

"Lugares de memória" nascem e vivem, [...], a partir do sentimento e da emoção, e é possível dizer que nunca surgem espontaneamente. Ou seja, acabamos por ritualizar algumas memórias, não todas. Aliás, se tentássemos guardar todas as nossas lembranças, elas seriam basicamente inúteis. Somos nós que damos sentido às recordações e, em geral, é a história que se apodera delas, as seleciona, e assim lhes confere certo significado de perenidade. Não só lembramos, como fazemos questão de esquecer, também. Por isso, os “lugares de memória" vigoram quando o simples registro passageiro cessa de existir; ou seja, quando suspendemos a lembrança do dia a dia e resolvemos dar a ela um lugar mais fixo e estabelecido. Nesse momento, ela deixa de ser mera reminiscência, para ganhar um valor simbólico e sentimental”. (SCHWARCZ, 2017, 508-509).

É neste sentido que a professora Iraci Gama Santa Luzia, ao escrever um texto acerca do falecimento da sempre decantada Marta Rocha, acaba por evocar uma memória, cujo momento lembrado está lastreado em um episódio localizado nos tempos da efervescência da “era das ferrovias” em Alagoinhas. Ali, a rua 2 de julho se constituía em um “lugar de memória”, visto que, como que representada pelos seus moradores, estava testemunhando um momento apoteótico que ficou gravado na memória daquela que ainda era uma “menina” que cursava o ginásio.
Procurando desenvolver um escrito que homenageasse a personagem que lhe povoava as lembranças, Iraci também acaba por rememorar as influências exercidas por duas de suas tias –Nininha e Minicute -, no seu processo de formação como pessoa que se envolveria na educação e na cultura da cidade, bem como no seu desenvolvimento intelectual, fazendo com que ela viesse a ser  alguém que se apaixonaria pela memória e pelas letras. A professora, ao autorizar o uso do seu escrito por parte deste escrevente, diz para ele que “[...], gostaria de dedicar este texto a duas das minhas tias, Nininha e Minicute. Elas eram as leitoras e provocadoras dos diálogos que nos levaram (eu e meus irmãos) para o mundo fora de casa”.,
Por sua vez, Pierre Nora, no seu já clássico “Entre Histórias e Memórias: a problemática dos lugares”, sustenta que:

“[...], se é verdade que a razão fundamental de ser de um lugar  de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado  de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para – [...] - prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro,  e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua  aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado  imprevisível de suas ramificações” (Nora, 1993,P. 21). 

Portanto, é possível inscrever o arrazoado produzido pela professora Iraci Gama Santa Luzia, nos aspectos indicados na passagem acima, uma vez que o seu “rememorar” está diretamente relacionado com um dos “lugares de memória” da cidade em que nasceu e, mais ainda: da rua em que cresceu, viveu todos os momentos mais marcantes da formação do seu caráter, bem como do acúmulo das “camadas” de memória que configuram a sua história pessoal, profissional, enquanto ser “indivíduo” e “coletivo”.
Nas próximas linhas, a palavra pertence a ela; ela que no dia 9, deste mesmo julho, insere a septuagésima sétima laranja no bocapio da existência; ela que tem a palavra por “dom”, mas também por desenvolvimento e aprimoramento, desde as primeiras letras aprendidas em casa e na escola da professora Lourdes Sabac de Azevedo, reforçado pelas leituras feitas por Nininha e Minicute, fortalecido nos tempos ginasiais, passando pelos tempos colegiais, chegando aos momentos em que atuou como mestre de muitos na Faculdade de Formação de Professores e na vida pública como um todo.

Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss Brasil” – Iraci Gama Santa Luzia.

Já passou de meia noite, mas preciso usar essa data para falar de um fato que é do nosso cotidiano, mas, se reveste de circunstâncias que o tornam especial. E, seis de julho, tornou-se um dia diferente, porque marca, em 2020, a morte de uma baiana singular - MARTA ROCHA. Singular e Plural ao mesmo tempo. Caraterísticas físicas definidoras de um corpo escultural, natural, ou seja, sem os arranjos das horas de Academia, e sem os consertos dos bisturis. Era uma beleza autêntica, com pouca maquiagem, porque, na época, isso era um dos critérios. Dona de uma simpatia contagiante e envolvente. E cativou a Bahia, o Brasil e o mundo.
Eu era menina, quando Marta, tornou-se Miss Brasil. Foi um fenômeno de aceitação. Aquela mulher extraordinariamente bela era amada por todos que desejavam o seu sucesso.
Até mesmo quem era criança, como eu, que não entendia, direito o que estava acontecendo, mas ouvia as explicações das minhas tias, que liam as matérias publicadas na Revista "O Cruzeiro". As duas candidatas juntas, na foto, e a nossa, muito mais bonita que a americana. E David Nasser, jornalista responsável pela matéria, escrevia frases lindas, sobre elas, e a leitura das minhas tias, dava um significado todo especial àquelas palavras. Passados tantos anos, lembro de uma comparação maravilhosamente feita: " era um plácido lago contra um mar revolto". Que poesia nesse jornalista! A nossa Marta era o mar revolto. Uma figura que se mostrava, por inteiro, trazendo a alma baiana, de alegria, de emoção, de vivacidade, de encantamento, de prazer na vida e naquela atividade, pelo sorriso estampado no rosto, com jovialidade e descontração de quem vive na Bahia, com a liberdade para ser feliz. E era feliz. E fez muita gente feliz, naquele tempo. Marcas da sua singularidade.
E como foi plural? Sabendo perder, sem ter perdido. Percebendo que havia outros critérios além da beleza, mas sabendo contornar a situação. Ficou mais bonita ainda, na passarela. Nunca fez queixas. Sorria da situação. Anos mais tarde, organizaram um Concurso entre Miss Brasil de diferentes anos e, na competição, ela acabou ganhando. Uma outra Marta, baiana, Marta Vasconcelos, sagrou-se Miss Bahia e depois Brasil, e a família contava que aquela moça foi preparada, de pequena, para repetir Marta Rocha. Aí, já era Marta, sendo professora.
Uma outra marca de sua pluralidade, foi a transferência da beleza. Tudo que era bonito, era Marta Rocha. Assim, no dia Dois de Julho de 1954, passou pelas linhas daqui da Rua Dois de julho, vindo de Salvador, um belíssimo TREM, que brilhava, faiscava ao sol. Todo mundo na porta, gritando de emoção. E eu, parece que me vejo, em pé, no portão de casa, ouvindo o apito da locomotiva, para chamar atenção de todos para a composição de alumínio que foi preparada nas Oficinas de Aramari, que naquele tempo, ainda era distrito de Alagoinhas.
Tanta beleza assim, merecia um nome. E teve. Passou a ser chamado " O Marta Rocha". Êta, trem bonito danado. No mesmo dia em que a Rádio Emissora de Alagoinhas foi inaugurada. Muita alegria para esse dia, para essa data, para essa comunidade, pela alegria e beleza de uma mulher que passou tantas dificuldades na vida, mas nunca entregou-se ao desencanto e à tristeza.
Siga em paz, Marta. Que a sua lembrança entre nós, será de uma mulher que soube ser SINGULAR e PLURAL.

Professor Jorge Damasceno

Um comentário:

  1. O professor Damasceno e suas deliciosas lembranças. Escrita fácil, mas rica, nos faz também rememorar nossas próprias vidas e a vida das pessoas com as quais passamos ótimos momentos, e também não tão tão bons assim. Mas o que vale é o deleite da escrita e das lembranças. O que vale e a vida presente que nos brinda com o passado. Um texto/história que encanta com a simplicidade da narrativa, no sentido de apontar para a ideia de que por mais complexos e significativos que tenham sido as experiências do passado, podemos resgatá-las de forma leve, saudosa e carregadas de sentimentos.
    Forte abraço, professor.

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