Quando a Feira era “do pau”” e o café era servido com
liberalidade – Alagoinhas 1969-1981: algumas notas memorialísticas.
Tendo acabado de completar cento e sessenta e oito anos de
emancipação político-administrativa, em sua trajetória histórica, Alagoinhas
construiu marcas indeléveis no imaginário dos seus moradores, que teimam em se
manter vivas a despeito dos anos e das mudanças na configuração espacial da
cidade. Esclareça-se que, a data aqui considerada é a aquela em que se deu a publicação
do decreto provincial que eleva a freguesia de Santo Antônio das Alagoinhas à
categoria de vila, emancipando-a da jurisdição de Inhambupe: 16 de junho de
1852.
Mas, é preciso que se diga, que esta “teimosia” se deve em grande medida, ao
esforço feito por pesquisadores que se tem debruçado sobre escassa, dispersa e
muitíssimo mal conservada documentação quase
sempre em condições extremas de insalubridade, na busca de elementos que lhes
permitam desenvolver a construção analítica do caminhar da sociedade, da
economia e da política alagoinhense. Neste costurar de elementos geoespaciais,
personagens, estruturas sociais e econômicas, se poderia citar, apenas à guisa
de exemplos, pesquisadores do quilate de Keite Lima, Raimundo Nonato Pereira
Moreira, Moisés Leal, Ede Ricardo, Eliana Batista, - mesmo este escrevedor que
arriscou alguns textos ensaísticos acerca de Maria Feijó, sua mais decantada
literata e personagem que ainda habita vivamente no imaginário de muitos
alagoinhenses -, entre tantos que desenvolveram trabalhos historiográficos cujo
objeto era algum “devir histórico” da urbe que já avança no terceiro quartel do
seu segundo século.
E, como já se disse, isto também se deve ao trabalho de memorialistas
que descreveram e cantaram a “cidade da laranja”, trouxeram ao público com
leveza e elegância, muitos elementos espaciais que ficaram entranhados no seu
rememorar, que, em grande parte dos casos, não reste mais do que alguns
vestígios em forma de fotografias e imagens descritas por gente da estirpe de
Salomão Barros, Naylor Bastos, Joanita Cunha, Maria Feijó de Souza Neves, Iraci
Gama Santa Luzia, José Olívio Paranhos, Lázaro Zacariades, Antônio Mário dos
Santos, dentre outros alagoinhenses que se deram ao trabalho de divagar sobre
os “lugares de memória” que tanto os impressionara e influenciara em seus “rememorares”.
A formulação “Lugares de memória”, aqui é entendida de
acordo com a formulação do historiador francês Pierre Nora, em uma obra já
clássica que organizou em sete alentados volumes entre 1984 e 1987 Intitulado “Les
Lieux de Memoire. Para o presente texto, será utilizado um fragmento publicado
no Brasil em 1993, na revista Projeto História – Entre História e memória: a
problemática dos Lugares. Nele, Pierre Nora, entre outras coisas, afirma que:
“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A
forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a
chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer
a noção. [...]. Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas,
aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações,
são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade. Daí o aspecto
nostálgico desses empreendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São os
rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade
que dessacraliza; fidelidades particulares de uma sociedade que aplaina os
particularismos; diferenciações efetivas numa sociedade que nivela por princípio;
sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só
tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos”. (Nora,1993, p. 12).
Mais adiante, para os fins que aqui interessam, o
autor assegura que
“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento
que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres,
notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa,
pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente
guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os
lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os
varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não
estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se
vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis.
E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los,
transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória.
[...] (Nora, 1993, P. 13).
Alagoinhas é uma
cidade prenhe destes “lugares de memória”, embora em grande parte, muitíssimo mal
preservados, visto que, apesar de se ter feito alguns esforços no sentido de
chamar a atenção dos poderes públicos para a conservação deles, não tem havido,
independentemente da pessoa e/ou grupo político à frente dos destinos do município,
grande preocupação que resulte em medidas efetivas para que sejam reduzidos os
efeitos deletérios do tempo e das condições ambientais – para além do “vandalismo”
e da especulação imobiliária, que aceleram o processo de descaracterização
daqueles “lugares de memória”.
Uma boa parte de tais “lugares de memória” sofre a ação dos
agentes econômicos e imobiliários que, sem qualquer interesse em algum tipo de
conservação, fazem alterações e, quase sempre, reconstruções de prédios,
espaços de sociabilidade e de “rememoração”, sem quaisquer escrúpulos, a não
ser aqueles que os movem: a grana, que no dizer de Caetano Veloso “ergue e
destrói coisas belas”. Ao que parece, neste aspecto específico que envolve a
luta pela conservação dos “lugares de memória “da urbe alagoinhense, é o lucro a
qualquer custo que preside o agir daqueles que se apresentam como os “agentes do
progresso”, ou como os “atores do desenvolvimento e da modernização” da cidade.
Como exemplos da diversidade dos “lugares de memória”
encontráveis na paisagem urbana de Alagoinhas, além da já mencionada “imponente estação São
Francisco, em cujas dependências se encontra o rico acervo da Fundação Iraci
Gama” e, na perspectiva apontada nos trechos de Pierre Nora transcritos acima, pode-se
apontar o “Cemitério da Praça da Saudade”, o bem conhecido “Pau Pintado”, o “mercado
do artesão” (que por algum tempo foi o “mercado da carne”), a “Praça Castro
Leal” onde por algum tempo funcionou o terminal dos transportes coletivos –
que, sofreu um processo que os gestores chamam de “requalificação”, o “Tênis
Clube” e o “Clube Acra” – que, entre outros como a Euterpe e a Siciliana, foram
os espaços privilegiados de sociabilidade da “elite” alagoinhense -, a também
conhecida “Igreja Inacabada”, que tem
sido alvo de vários estudos em diversas
áreas do saber, o prédio onde hoje funciona a “biblioteca Maria Feijó”, que, para
este escrevedor, é um “lugar de memória” par Excelence, pois lá funcionou por
mais de vinte anos a Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas. Ali
este aprendiz de escrevedor fez a formação em história, que o permitiu estar a “garatujar”
aqui e agora.
Ainda se poderia mencionar o local onde se desenrolava o
processo de torrefação e de comercialização do café “O Barão” – o seu cheiro
podia ser sentido em toda aquela área e, de acordo com os ventos, avançava para
outros pontos da cidade (por muito tempo, este café maníaco sorveu aquele
delicioso cheiro de café torrando, a partir do Brasilino Viegas, escola onde
estudara). Em um prédio localizado na rua Francisco Batista (em dois lugares
daquela mesma rua: a loja inicial era um pouco abaixo da última), por muitas e
muitas tardes, este escrevinhador apreciara incontáveis xícaras de bom café,
ainda quando a cortesia da casa era disputada com outros degustadores daquela
apreciável infusão. O local era frequentado por feirantes, comerciantes, políticos
e outras autoridades da cidade, o que dava um caráter “democrático “àquele “lugar
de memória” e de sociabilidade, pouco encontrável em outros espaços da cidade. Talvez,
um dos lugares de memória de Alagoinhas que tenha experimentado um tal grau de
sociabilidade, fora o estádio municipal Antônio Carneiro, onde memoráveis
partidas de futebol se desennrolaram, envolvendo os principais times da capital
baiana – Bahia e Vitória -, em apoteóticos enfrentamentos com o Atlético de
Alagoinhas – que ora já se tornou praticamente um dos “lugares de memória” -,
além de pelejas envolvendo grandes clubes brasileiros, como o Flamengo carioca
e o Coríntians Paulista.
E, enfim de contas, o que dizer do “Estadual”, da “Senege/Senec”,
do “Ginásio de Alagoinhas”, do “Santíssimo Sacramento”, da “Farda Branca”, da “agência”
– lugar de onde se chegou e se partiu por um bom par de anos, fazendo as vezes
de rodoviária da cidade -,entre vários outros cantos e recantos da urbe alagoinhense,
segundo os “lembrares” de cada um dos que leem estes “garatujes” eletrônicos?
Entretanto, para chegar ao que foi proposto no título deste
arrazoado, seria preciso incorporar ao seleto grupo em que, por meio da “memória”,
as pessoas se reencontram com um momento de sua vida ou muitos dentre eles.
Está se falando aqui, dos espaços e imóveis encontrados ao longo dos
quarteirões para onde a feira foi transferida, juntamente com o conjunto urbano
daquela Alagoinhas recém elevada a Vila, para se encontrar com “os trilhos” da
ferrovia que tanto desejara a sua liderança. É evidente que os imóveis e
espaços que este escrevedor conheceu e/ou frequentou nos marcos temporais
estabelecidos na primeira linha deste arrazoado, já estavam bem diferentes
daqueles existentes quando os feirantes foram obrigados a descer ao aludido encontro
dos trilhos. O que aqui será apontado se relaciona diretamente com a memória construída a partir dos ires e vires deste
autor àquelas paragens, entre os anos de 1969, quando iniciou o seu processo de
escolarização e o ano de 1981, quando interrompeu o seu cotidiano de frequência
semanal aos cultos na então Primeira Igreja Batista de Alagoinhas, quando dela se
desligara.
Portanto, aqui se quer falar do conjunto de açougues que se
encontravam desde a esquina da rua Pedro Pondé com a Castro Leal e chegavam até
ao armazém de Jorge Campos, intermediado pelo espaço ocupado por um lugar de
drinques e lanches, ali estabelecido,
onde este então jovem rapaz, tomara solitariamente algumas “cubas”;
atravessando a rua e transitando na calçada onde funcionara por muito tempo a “casa
da Revista” e o seu cheiro característico, sentido ao passar diante das suas
portas, até chegar a esquina onde funcionara a agência do “banco do nordeste” –
lugar onde por muitos anos esmolara um velho cego que procurava amolecer o
coração dos passantes com a sua ladainha verbalizada em voz rouca e sentida “o
cego lhe pede uma esmola, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo!”; como não
falar do supermercado “Paradellla”, com os cheiros e os ruídos vindos do seu
interior; já na última calçada que se precisava vencer para chegar ao Brasilino
Viegas onde este autor estudou e ao prédio da Primeira Igreja Batista onde ele
congregou, precisaria passar por um outro conjunto de açougues, sendo que, ao
lado esquerdo deles, eram colocadas algumas capoeiras com aves em constante
reboliço e, mais adiante, naquele mesmo passeio, havia um depósito de bebidas,
cujo cheiro que exalava não deixava dúvidas de qual era o objeto de sua
atividade comercial, além de uma farmácia e um outro depósito, desta vez, o
cheiro que vinha do seu interior era o de querosene, combustível ainda bastante
utilizado na iluminação de muitos lugares de habitação, inclusive, é provável,
nas casas de lona e madeira que se erguiam teimosamente ali, nos fundos do
Brasilino e adjacências.
Como é fácil depreender, muitos homens e mulheres passaram por
aqueles espaços, imóveis e barracas, ao longo de mais de cem anos, nos seus
diversos afazeres e labores: compradores e vendedores, carregadores, fiscais e
prepostos “da lei”, todos os tipos de gente, oriundas dos mais diversos pontos
da cidade, ou mesmo dos muitos vagares pela cidade. Eram homens e mulheres que,
por vezes, pareciam “trapos humanos”, “farrapos” de existências quase sem
sentido. Naquele grande espaço de sociabilidade, os comerciantes instalados nos
seus “armazéns”, os alunos e os professores em duas escolas que fizeram parte
daquele ambiente humano, os crentes e pastores daquela Igreja protestante, encravada
em meio a um espaço de circulação de “almas enfermas” – para as quais deveria atuar
como “a luz na escuridão - e, até mesmo “o Alagoinhas jornal” - cujo prédio era
instalado ali ao lado - e seus jornalistas, cruzavam e/ou conviviam diariamente
e/ou semanalmente com “os vivos quase mortos” que gravitavam por ali.
Dois leitores em comentários – uma no próprio blog e outro
em off -, chamaram a atenção deste garatujador, com relação à maneira como
aquele espaço ficou gravado na memória coletiva do alagoinhense, relacionado ao
epíteto “do pau”, que era acrescentado ao lugar “feira”. Os atentos leitores
apontaram a necessidade de se informar ao leitor a razão “histórica” de tal
denominação do espaço. Ele perguntou se “o nome feira do pau não se derivaria do
fato daquele lugar ter sido construído todo com madeira”; o garatujador
argumentou que, poderia ter algum sentido; mas seria um dentre tantos. Ela, por
sua vez, disse ter sentido falta de uma explicação que justificasse a escolha do
título da postagem. Em um comentário bastante lúcido ela discorreu sobre o nome
popularmente dado ao lugar: “Na verdade, eram duas feiras. A "Feira do
Pau" tinha sua característica própria: comércio de Madeiras (popularmente
chamadas de paus) bem como, a concentração de marginalizados da sociedade
(moradores de ruas, prostitutas, deficientes mentais e outros...) Que ali eram
acolhidos. Com esse tipo de coletivo era comum os desentendimentos e de vez em
quando "O pau comia".
Preferiu-se trazer para este arrazoado o comentário da
própria autora, para salientar ao leitor as várias inferências que podem ser feitas
ao epíteto “pau”, o que confere uma riqueza analítica que pode ser de grande
valia, no sentido de permitir a feitura de excelentes estudos que podem ser
desenvolvidos nos vários campos do saber e, sobretudo, na pesquisa histórica. Ela inicia as suas
observações com a afirmação de que “As lembranças vieram à minha mente com sua
descrição. [...]”. Tal observação remete ao trabalho do pesquisador que tem uma
de suas bases teóricas fincadas nas proposições desenvolvidas por aqueles cuja
massa a partir da qual realiza o seu trabalho de pesquisa é a “memória”.
Em um dos pontos do comentário da leitora, ela aponta para o
fato de que aquele espaço era um lugar de convivência, como sugeriu-se linhas
acima, de uma quase infinita gama de gentes marginalizadas, tanto do ponto de
vista econômico, quanto e, sobretudo, do ponto de vista social. A “feira do pau”
abrigava “doidos” folclóricos, como “Maria Café Quente”; também alguns deles
por lá circulavam, como era o caso de “Jairo” e, o tão temido “Zé Paulo”. A
propósito deste último, a aludida leitora se reportou ao episódio em que ela mesma
fora atacada por “Zé Paulo”, quando voltava de cumprir uma tarefa que lhe fora atribuída
por sua genitora: fora na “feira do pau” comprar cachaça para que, com ela,
fosse preparado o “licor de São João”. Voltando já com a dita cachaça, fora
atacada por “Zé Paulo” com um “pau” que lhe quebrou a garrafa e, claro, também
se foi o seu conteúdo.
Também este escrevedor lembra de um episódio, dentre outros
tantos, protagonizado por aquele morador da “feira do Pau”. Havia uma forma de
provocar-lhe a ira, que era gritar o seu nome, de maneira alongada... “Zé
Pauloooooooo”. Um dia, os responsáveis pelo portão da escola Brasilino Viegas
não os fecharam e, de dentro da escola, alguém gritou o nome dele, do modo que
o enfurecia! O dito partiu para dentro da escola, com o objetivo de pegar aquele
ou aqueles que o “arreliavam” .... Foi uma correria! Salas trancadas/escoradas
como se pôde; direção e portas centrais fechadas há muito custo... Até que o enfurecido
“ZéPaulo” foi contido e o gaiato zombador
foi identificado e punido...
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