Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria
Feijó – XVII – Dedicando a obra – os nomes ainda são os reais.
Conforme salientado no
arrazoado anterior, com este e os próximos escritos, se pretende indicar algumas
pistas que apontem para o caráter memorialístico – e talvez autobiográfico – do
alentado volume publicado em 1978, na cidade do Rio de Janeiro, cujo objetivo
declarado de sua autora, era o de oferecer aos alagoinhenses “[...], o retrato, talvez, sem retoque”, da
sua cidade quando ainda “menina-moça”, como se pode ler na página que antecede
à dedicatória:
(... este livro, ALAGOINHAS, é o
retrato, talvez, sem retoque, tirado por mim, na sua terna e doce fase de
MENINA-MOÇA, genuinamente provinciana e bela. O de AGORA, com ares de metrópole
e requintes de mulher civilizada creio, eu não o saiba fazer. Outros filhos
seus de melhores credenciais, poderão pintá-lo com todos os matizes da
ATUALIDADE. Fiz neste o que pude, melhor não podia, embora para mim tivesse
sido o IDEAL...)” (FEIJÓ, 1978, p. 13).
Como se pode observar na transcrição feita da página de
epígrafe, há um esforço da autora no sentido de legitimar as páginas do seu denso
texto literário e/ou memorialístico, com o objetivo de que o leitor perceba um
desfilar de “verdades”, embora romanceadas, indicando que a sua narrativa
procurará não falsear os eventos ali expostos. Daí a metáfora do “retrato quase
sem retoques”, que, em outras palavras, no livro ela procuraria apresentar os
eventos como de fato eles foram, sem a interferência de sua narradora, como se
ao tirar o tal “retrato sem retoques”, a retratista não quisesse ou não pudesse
intervir nos traços ali apreendidos, de modo a alterar a fisionomia da
retratada, ao ponto de fazê-la parecer diferente do que realmente era. .
Neste sentido, ao discorrer sobre uma outra memorialista
alagoinhense, foi dito em arrazoado publicado em 2012, na revista eletrônica “Veredas
da História”, que a então nonagenária Joanita Cunha “[...],por meio dos seus
escritos, traça em seu descortinar de lembranças, um “retrato” da cidade, este
um tanto mais retocado, embora não deixando de aparecer ao fundo, algum
“defeito” ou “sujeira” na imagem, que se queria bonita [...][1],
visto que, ao que parece, em suas memórias registradas nos “Traços de ontem”, Cunha
pretenderia construir uma “imagem” da cidade onde nascera, crescera e tivera a
sua primeira filha, “[...], como que completa, o que eventualmente viesse a
faltar na fotografia de Alagoinhas tirada por Feijó, [...]”[2],.
Mas, ao que tudo faz crer, para Carlos Nássaro da Paixão, em
dissertação defendida em 2009, nenhuma das duas escritoras, cujos trabalhos ele
utilizou para construir o seu arrazoado, foram plenamente exitosas em seus
intentos[3].
Buscando construir sua análise em assertiva apreendida de François Dosse,
Nássaro constata que
“As diferentes cidades narradas pelas duas escritoras
indicam que cada indivíduo produz imagens diferentes para si e que estas criam
uma competição de sentidos para o urbano. Os diferentes caminhos descritos por
Joanita da Cunha e Maria Feijó ocorrem levando em consideração que “a cidade é
o campo fechado de uma verdadeira guerra de narrativas, das quais cada um de
nós é o portador de uma memória específica e cuja tessitura constitui a
densidade histórica de cada cidade”[4].
E, um pouco mais
adiante, Araújo da Paixão crava:” Alagoinhas não é aquela apresentada por
Joanita e muito menos a descrita por Feijó. Em sua complexidade a cidade não
pode ser presa em uma única descrição, mas nas múltiplas imagens produzidas
pelos seus diferentes caminhantes”[5].
No entanto, cabe salientar que, a obra de Maria Feijó sobre
a qual Araújo da Paixão se debruça, não é a que aqui se pretende examinar. Ali,
a obra lida fora “Alecrim do Tabuleiro: Crônicas evocativas de Alagoinhas”, de
1972, com a qual ele confrontou as “evocações” de Joanita Cunha. Talvez, ele
tivesse outra impressão, caso a obra a examinar fosse “Pelos Caminhos da vida
... de uma professora Primária”, de 1978. Nela, crê este escrevedor, Feijó
produz uma obra memorialística, embora não reivindique esta condição, mas, ao
contrário, ela procura – sem sucesso, evidentemente – sair da cena, mediante a
utilização do artifício de uma “narradora”, a partir da qual, alimenta
livremente o seu rememorar, claro que, com todos os limites inerentes ao
trabalho de “trazer o passado para o presente”, como se pode encontrar no
debate teórico desenvolvido por Araújo da Paixão, na introdução e no primeiro
capítulo do seu já referenciado texto dissertativo.
Entretanto, antes de enveredar “pelos caminhos da vida de
uma professora primária” que Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001) apresenta
para os seus leitores, faz-se necessário gastar um pouco mais de tempo nas suas
páginas iniciais, aquelas em que a escritora ainda se apresenta como sendo ela
mesma. Nelas, pode-se observar o descortinar de um mundo de saudades, partindo
de uma camada espessa de memórias. Ainda ali, os nomes mencionados são reais,
de pessoas que passaram pela sua vida, em diversas de suas etapas. No entanto, o
leitor atento, encontrará ao longo da narrativa, algumas ou quase todas elas, já
despojadas dos seus nomes e arquétipos reais, uma vez que a literata os vai
camuflar, do mesmo modo em que ela própria se camuflará, para poder ter a
liberdade de narrar.
Assim, os seus genitores –
ele ainda vivo à época do surgimento do texto – recebem referências de ternura,
gratidão e apreço, daquelas páginas de dedicatória. Abrindo-as, Feijó assim se
refere: “A
meu PAI querido, razão inconteste do meu viver no sorriso ameno da compreensão
em todas as minhas lutas” (Feijó, 1978, P. 15). Mais adiante, ela escreve na dedicatória,
uma evocação à sua genitora, dizendo que “A memória de minha MÃE, cujo nome é
uma constante nos meus dias” (Feijó, 1978, p. 16).
Ainda ali, ela evoca os nomes do marido e dos quatro irmãos,
que são frutos do segundo casamento do seu pai, destacando duas dentre eles,
para salientar lhes os precoces dotes literários e poéticos.
Um outro feixe de nomes
evocados pela literata alagoinhense, requer dos leitores um pouco mais de
atenção, pois, eles aparecem ainda com os seus nomes de batismos, classificados
entre aqueles que tiveram alguma influência sobre ela, tanto do ponto de vista
da formação profissional e literária, quanto do ponto de vista da propiciação
de oportunidades que lhe permitiram alçar voos mais audaciosos. Logo após
mencionar o pai, sem utilizar o seu nome, vem o marido, este sim, com o nome,
desta vez, sem informar o grau de parentesco. Assim, ela dedica “Para GOARACY,
estímulo de todo dia, companheiro certo na força que me reergue das intempéries
da vida”. Depois de dedicar aos seus “quatro irmãozinhos menores”, Feijó aponta
a que a obra também se destina “À Prof. AGOSTINHA PINTO DE CARVALHO, aquela
GRANDE amiga-INCENTIVO de minhas incertezas nos altos e baixos do destino”. Na
mesma página, a autora faz menção ao jornalista e político com atuação em
Alagoinhas e seu coetâneo João Rodrigues Nou, salientando “[...], que talvez
nem saiba, mas foi quem me procurou apontar o roteiro para novas investidas,
quando palmilhávamos o solo interiorano”[6]. Tendo homenageado
ex-alunos, evocado saudades com um tom de uma certa frustração, termina esta
primeira página de vocações de pessoas reais, dizendo que “Enfim... para TODAS
as vozes que me incentivaram a pisar o MARAVILHOSO MUNDO LITERÁRIO” (FEIJÓ,
1978, p. 15).
É assim que, ao longo da
segunda página escrita para dedicar e/ou evocar pessoas ou memórias de pessoas,
Feijó faz menção e, insere algumas observações, a nomes que, de alguma maneira,
desempenharam papel de notória relevância no seu caminhar e/ou exerceram
influências diversas no processo de sua formação pessoal, cultural, profissional
e/ou nos seus modos de ser, pensar, agir, refletir, sentir, questionar, responder
e, sobretudo, construir os seus juízos de valor. Não é sem razão que, logo após
as lembranças dos pais, dos irmãos mais novos, dos colegas e dos alunos que
passaram pelas suas mãos professorais, a primeira menção feita é “A Dr. ERNESTO
SIMÕES FILHO, o DIGNÍSSIMO MINISTRO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (do passado), alto
espírito de JUSTIÇA, responsável pelo meu descortínio a novos horizontes”[7](FEIJÓ, 1978, p. 16).Ela
segue em suas evocações, desta vez fazendo referência à memória do “Prof.
ALCINDO DE CAMARGO, o MESTRE INESQUECÍVEL, CONSTRUTOR do ENSINO NORMAL em ALAGOINHAS,
orientador ainda de minha trajetória como uma chama a iluminar caminhos”[8].
Na mesma página, Feijó dedica “As
minhas PROFESSORAS PRIMARIAS: NERINA CARVALHO, VIRGÍNIA VILLA FLOR e SUZANA
BARRETO, que alicerçaram o meu mundo brincando com o alfabeto”. E conclui
destinando a obra “A todos os meus saudosos professores do CURSO NORMAL, tendo ainda
como seus legítimos representantes: Dr. PINTO DE AGUIAR, Profa. NORMA PAIVA
DE CARVALHO e SENADOR JOSAFÁ AZEVEDO” (FEIJÓ, 1978, p. 16).
No entanto, alguns dos nomes evocados nestas primeiras
páginas, como já se salientou, podem aparecer ao longo da leitura, como sendo
os de personagens por ela criados, precisamente para permitir o livre curso de
sua narrativa.
[1] DAMASCENO,
J. J. A. ESCRITA DA HISTÓRIA DA CIDADE MEMÓRIAS E NARRATIVAS: ALAGOINHAS COMO
OBJETO DE ATENTOS VIAJANTES E MEMORIALISTAS (1889-1960). Veredas
[2]
SANTOS, Joanita Cunha dos. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros
Editores, 1987.
[3]
PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. TRAÇOS DA CIDADE DE ALAGOINHAS: MEMÓRIA,
POLÍTICA E IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO (1930-1949). Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do
Estado da Bahia – UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus – BA.
[4]
PAIXÃO, Carlos Nássaro Araújo da. Op. Cit. P.37.
[5]
Idem, Ibidem.
[6] João
Rodrigues Nou (1918-). Trata-se de um jornalista e político com forte atuação
em Alagoinhas, tendo protagonizado um evento político controverso e ainda muito
pouco estudado, que foi uma refrega no plenário da câmara Municipal, que
resultou na morte do filho/secretário do então prefeito, além do ferimento de
três parlamentares, em maio de 1956.
[7]
Trata-se do político e jornalista baiano Ernesto da Silva Freitas Simões Filho
(1886-1957), que ocupa o ministério da educação e saúde, no governo Getúlio
Vargas, entre 1951-1953.
[8] Alcindo de Camargo (1886-1950) mato-grossense radicado em Alagoinhas, onde foi professor.
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