domingo, 20 de setembro de 2020

Histórias e memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó - XVIII

Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria Feijó – XVIII – Metamorfoseando-se para ressignificar as suas memórias.

 

Com a pretensão de continuar o trabalho de apreensão da memória da urbe alagoinhense, retoma-se a produção literária de Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001), sobretudo o seu alentado “Pelos Caminhos da Vida ... de uma Professora Primária”, publicado em 1978, buscando perscrutar em sua narrativa os elementos constitutivos da vida social, econômica, política e cultural da cidade, “ainda menina moça”, conforme ela expressa nas primeiras páginas da referida obra, no sentido de identificar os “ires e vires” daquela Alagoinhas pujante das décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, quase todas elas vividas por Feijó na sua Alagoinhas, enquanto nascia, crescia, se instruía e se fazia professora primária e, um pouco mais tarde, dava o salto na direção da formação em biblioteconomia.

No entanto, é preciso salientar, de passagem, que se faz necessário o desenvolvimento de mais trabalhos com intuito de manter viva a história, fazendo-a ser percebida em sua importância para a sua compreensão, na medida em que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, “[...]. Essa importância sempre foi reconhecida  como a da rememoração, da retomada salvadora pela palavra de um  passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento. Essa empresa de rememoração já determina, na aurora do pensamento grego, a tarefa do poeta e, mais tarde, a do historiador. [...]” (GAGNEBIN, 2013, p. 03). Ainda recorre-se a GAGNEBIN para chamar a atenção do leitor, no sentido de o alertar para o fato de que “[...]. Hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa, seja para” resguardar alguma coisa da morte” (Gide) dentro da nossa frágil existência humana” (Idem, 2013, p. 03). Já deve estar evidente para o leitor que a obra que aqui se pretende desenvolver enquanto arrazoados analíticos, por certo, não foge ao que se expôs acima e, em concordância com GAGNEBIN:

“[...]. Se podemos assim ler as histórias que a humanidade se conta a si mesma como o fluxo constitutivo da memória  e, portanto, de sua identidade, nem por isso o próprio movimento da  narração deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria não  só uma falha, um ”branco” de memória, mas também uma atividade  que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude  necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”. (GAGNEBIN, 2013, p. 03).

 

Depois de algumas páginas dedicadas ao debate em torno dos prefácios, da advertência e da dedicatória, passa-se a analisar o texto construído por Feijó, por meio do qual ela dá expressão a seus sentimentos e dá existência material ao seu “rememorar”. É com a sua verve lírica que Feijó inicia o processo de metamorfosear-se, a fim de construir o desfile de suas narrativas. Por meio de uma descrição minuciosa de “lugares”, ela procura preparar o leitor para receber os personagens por ela criados com o intuito de desenvolver a sua exposição de “tramas textuais que habilmente tece e entretece”,, através dos quais ela desenrolará o seu corolário de reminiscências, travestido de fatos apenas romanceados. Assim ela descreve o cenário no qual insere as duas jovens que conduzirão a narrativa dali por diante: “Manhã luminosa de verão. Luz e cor. Rosa feita de mar e sol corola refletida para o azul do céu, Copacabana, de brancas espumas debruçadas no moreno da areia, se retratava naquela domingueira manhã de janeiro”.

Feijó está ao mesmo tempo dizendo que a conversa entre as duas professoras se dá no verão carioca, em um dos lugares mais badalados da antiga capital política do Brasil, mas, ainda fervilhante centro cultural do País. Ela prossegue em sua descrição poética do ponto de partida para uma longa prosa:

“Orgia de cores invade o espaço, e a praia, regurgitante, toma feição característica de pagode chinês no colorido das barracas mansamente acariciadas pelo vento, abrigando no seu leito, corpos besuntados de óleo e dourados de sol, no semicírculo do Leme ao Forte. Tudo é mocidade, vibração, euforia, vida, contas de vários matizes engastadas no enorme e bonito colar de Copacabana, ornando fidalgamente o colo macio da baía de Guanabara... Descanso do corpo e” relax” do espírito procuram tomar lugar ao longo da praia. Almas no aconchego das ondas, e problemas atiçados a distância, no emaranhado do mar, velas soltas largando pano à mercê dos ventos, indo perder-se nos longes da paisagem do horizonte limítrofe...” (FEIJÓ, 1978, P. 17).

 Na mesma toada lírica, Feijó pinta quase a um só tempo, o quadro humano e natural daquela Copacabana que tanto parece inebriar lhe os sentidos:

 

“Gaivotas, pintalgando o mar, bailarinas do azul, flutuam no espaço, brincando de esconde-esconde com o mistério das águas. 

 

“Montanhas em cadeia, sentinelas  do mar, num imenso cordão  cinza-esverdeado — apenas com um claro bem amplo, perto do Forte  pelo qual são avistados mar e céu, simulando grande porta aberta a  dar passagem e acolhida aos que chegam — emolduram a baía de  Guanabara como belíssimo  fundo de cartão-postal,  oferecendo  aos  olhos sequiosos de beleza, momentos de profundo êxtase e arrebatamento em mosaicos cintilantes. 

 

Corpos femininos, distribuindo alegria, exibem-se em minúsculos biquinis, cada qual procurando definir, de forma acentuadamente marcante, os dotes físicos doados em profusão pela natureza nem sempre muito pródiga para todos...” (1978, p.  17).

 

Depois de discretamente apontar para algumas desigualdades entre corpos, natureza e beleza, ela arremata as descrições do “cenário da História” que está prestes a começar:

 

“E olhares masculinos, em passarela, visivelmente extasiados, procuram disputar o instante de encantamento naquela extravagância de beleza espalhada pela manhã de sol... A paisagem humana desafia a paisagem divina... 

 

“Grupos alegres se formam, reunindo-se em buquês de várias tonalidades e, em torno dos biquinis coloridos, olhos ávidos voejam como se fossem mariposas entontecidas ao redor de feixes de luz... (FEIJÓ, 1978, p.17).

 

Todo este lirismo é uma forma da autora procurar construir para os leitores, aquelas imagens prenhes de elementos já inseridos no imaginário deles, na medida em que os meios de comunicação já difundiam aquele ideal de um Rio de Janeiro que, conforme dissera Gilberto Gil alguns anos antes “Continua lindo”, “continua sendo”. Tais construções eram impulsionadas pelas músicas, pelas revistas, pelas novelas televisivas, então em grande expansão. E, a pedra de toque daquela imagem, era, sem sombra de dúvidas, Copacabana, aquela mesma acima descrita por Feijó.

 

Procurando pouco a pouco sair da narrativa, ela prossegue no intento de metamorfosear-se, com o fito de apresentar duas jovens que, dali por diante, levarão a termo o processo narrativo. Algumas linhas após as descrições que faz do espaço onde, conforme pretende, se dará o “diálogo” entre as narradoras, especialmente criadas para executar aquela tarefa, Feijó afirma que:

 

“O contorno marinho desse quadro de verão serve de cenário ao encontro casual de duas amigas que, fazia algum tempo, viviam afastadas pelas atribulações do cotidiano. Em mútua demonstração de contentamento as duas bendizem o acaso:

 

— Marta, há quanto tempo não a encontrava! (P. 17).

Como vai se perceber mais adiante, sendo Marta aquela que conduzirá o “diálogo”, pode-se inferir ser ela a o resultado do esforço da literata alagoinhense por se metamorfosear para poder dar curso ao seu rememorar. Tanto assim o é, que se percebe na resposta dada por Marta a amiga, alguns elementos constitutivos do modo de ser “Maria Feijó.

— Verdade, Clarinha, nem parecemos amigas!  É a vida agitada deste Rio de Janeiro que nos tem distanciado um pouco, mas... nenhuma nuvem penetra no céu de nossa amizade e, assim, é um enorme prazer revê-la nesta deslumbrante manhã.  Vejamos ser esta a razão porque o sol se abriu num magnífico sorriso. Há quanto tempo não víamos "um domingo assim, de um sol assim..." (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

e a réplica de Clara, confirma a suspeita:

 

— Como sempre, você e sua poesia, sonhadora eterna, habitante das nuvens!... (Idem, Ibidem).

 

E assim, crê-se que os leitores já estejam mais ou menos prontos para enveredar “pelos caminhos de uma professora primária”, visto já conhecerem alguns dos processos narrativos utilizados pela sua autora, com o fito de contar a história de Luísa Peixoto, que, segundo Feijó, é a história de muitas professoras como elas.

 

Professor Jorge Damasceno

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