Histórias e memórias de Alagoinhas pelos escritos de Maria
Feijó – XVIII – Metamorfoseando-se para ressignificar as suas memórias.
Com a pretensão de continuar o trabalho
de apreensão da memória da urbe alagoinhense, retoma-se a produção literária de
Maria Feijó de Souza Neves (1918-2001), sobretudo o seu alentado “Pelos Caminhos
da Vida ... de uma Professora Primária”, publicado em 1978, buscando perscrutar
em sua narrativa os elementos constitutivos da vida social, econômica, política
e cultural da cidade, “ainda menina moça”, conforme ela expressa nas primeiras
páginas da referida obra, no sentido de identificar os “ires e vires” daquela
Alagoinhas pujante das décadas de 1920, 1930, 1940 e 1950, quase todas elas
vividas por Feijó na sua Alagoinhas, enquanto nascia, crescia, se instruía e se
fazia professora primária e, um pouco mais tarde, dava o salto na direção da
formação em biblioteconomia.
No entanto, é preciso salientar, de
passagem, que se faz necessário o desenvolvimento de mais trabalhos com intuito
de manter viva a história, fazendo-a ser percebida em sua importância para a
sua compreensão, na medida em que, segundo Jeanne Marie Gagnebin, “[...]. Essa
importância sempre foi reconhecida como
a da rememoração, da retomada salvadora pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no
silêncio e no esquecimento. Essa empresa de rememoração já determina, na aurora
do pensamento grego, a tarefa do poeta e, mais tarde, a do historiador. [...]”
(GAGNEBIN, 2013, p. 03). Ainda recorre-se a GAGNEBIN para chamar a atenção do
leitor, no sentido de o alertar para o fato de que “[...]. Hoje ainda,
literatura e história enraízam-se no cuidado com o lembrar, seja para tentar
reconstruir um passado que nos escapa, seja para” resguardar alguma coisa da
morte” (Gide) dentro da nossa frágil existência humana” (Idem, 2013, p. 03). Já
deve estar evidente para o leitor que a obra que aqui se pretende desenvolver
enquanto arrazoados analíticos, por certo, não foge ao que se expôs acima e, em
concordância com GAGNEBIN:
“[...]. Se podemos assim ler as
histórias que a humanidade se conta a si mesma como o fluxo constitutivo da
memória e, portanto, de sua identidade,
nem por isso o próprio movimento da
narração deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais subterrânea,
pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria não só uma falha, um ”branco” de memória, mas
também uma atividade que apaga,
renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da
narração”. (GAGNEBIN, 2013, p. 03).
Depois de algumas páginas dedicadas
ao debate em torno dos prefácios, da advertência e da dedicatória, passa-se a analisar
o texto construído por Feijó, por meio do qual ela dá expressão a seus
sentimentos e dá existência material ao seu “rememorar”. É com a sua verve
lírica que Feijó inicia o processo de metamorfosear-se, a fim de construir o
desfile de suas narrativas. Por meio de uma descrição minuciosa de “lugares”,
ela procura preparar o leitor para receber os personagens por ela criados com o
intuito de desenvolver a sua exposição de “tramas textuais que habilmente tece
e entretece”,, através dos quais ela desenrolará o seu corolário de
reminiscências, travestido de fatos apenas romanceados. Assim ela descreve o
cenário no qual insere as duas jovens que conduzirão a narrativa dali por
diante: “Manhã luminosa de verão. Luz e cor. Rosa feita de mar e sol corola
refletida para o azul do céu, Copacabana, de brancas espumas debruçadas no
moreno da areia, se retratava naquela domingueira manhã de janeiro”.
Feijó está ao mesmo tempo dizendo
que a conversa entre as duas professoras se dá no verão carioca, em um dos
lugares mais badalados da antiga capital política do Brasil, mas, ainda
fervilhante centro cultural do País. Ela prossegue em sua descrição poética do
ponto de partida para uma longa prosa:
“Orgia de cores invade o espaço, e
a praia, regurgitante, toma feição característica de pagode chinês no colorido
das barracas mansamente acariciadas pelo vento, abrigando no seu leito, corpos
besuntados de óleo e dourados de sol, no semicírculo do Leme ao Forte. Tudo é
mocidade, vibração, euforia, vida, contas de vários matizes engastadas no
enorme e bonito colar de Copacabana, ornando fidalgamente o colo macio da baía
de Guanabara... Descanso do corpo e” relax” do espírito procuram tomar lugar ao
longo da praia. Almas no aconchego das ondas, e problemas atiçados a distância,
no emaranhado do mar, velas soltas largando pano à mercê dos ventos, indo
perder-se nos longes da paisagem do horizonte limítrofe...” (FEIJÓ, 1978, P.
17).
Na mesma toada lírica, Feijó pinta quase a um
só tempo, o quadro humano e natural daquela Copacabana que tanto parece inebriar
lhe os sentidos:
“Gaivotas, pintalgando o mar, bailarinas
do azul, flutuam no espaço, brincando de esconde-esconde com o mistério das águas.
“Montanhas em cadeia,
sentinelas do mar, num imenso
cordão cinza-esverdeado — apenas com um
claro bem amplo, perto do Forte pelo
qual são avistados mar e céu, simulando grande porta aberta a dar passagem e acolhida aos que chegam —
emolduram a baía de Guanabara como
belíssimo fundo de cartão-postal, oferecendo
aos olhos sequiosos de beleza,
momentos de profundo êxtase e arrebatamento em mosaicos cintilantes.
Corpos femininos, distribuindo
alegria, exibem-se em minúsculos biquinis, cada qual procurando definir, de forma
acentuadamente marcante, os dotes físicos doados em profusão pela natureza nem
sempre muito pródiga para todos...” (1978, p.
17).
Depois de discretamente apontar
para algumas desigualdades entre corpos, natureza e beleza, ela arremata as
descrições do “cenário da História” que está prestes a começar:
“E olhares masculinos, em
passarela, visivelmente extasiados, procuram disputar o instante de
encantamento naquela extravagância de beleza espalhada pela manhã de sol... A
paisagem humana desafia a paisagem divina...
“Grupos alegres se formam,
reunindo-se em buquês de várias tonalidades e, em torno dos biquinis coloridos,
olhos ávidos voejam como se fossem mariposas entontecidas ao redor de feixes de
luz... (FEIJÓ, 1978, p.17).
Todo este lirismo é uma forma da
autora procurar construir para os leitores, aquelas imagens prenhes de
elementos já inseridos no imaginário deles, na medida em que os meios de
comunicação já difundiam aquele ideal de um Rio de Janeiro que, conforme
dissera Gilberto Gil alguns anos antes “Continua lindo”, “continua sendo”. Tais
construções eram impulsionadas pelas músicas, pelas revistas, pelas novelas
televisivas, então em grande expansão. E, a pedra de toque daquela imagem, era,
sem sombra de dúvidas, Copacabana, aquela mesma acima descrita por Feijó.
Procurando pouco a pouco sair da
narrativa, ela prossegue no intento de metamorfosear-se, com o fito de
apresentar duas jovens que, dali por diante, levarão a termo o processo
narrativo. Algumas linhas após as descrições que faz do espaço onde, conforme
pretende, se dará o “diálogo” entre as narradoras, especialmente criadas para
executar aquela tarefa, Feijó afirma que:
“O contorno marinho desse quadro de
verão serve de cenário ao encontro casual de duas amigas que, fazia algum
tempo, viviam afastadas pelas atribulações do cotidiano. Em mútua demonstração
de contentamento as duas bendizem o acaso:
— Marta, há quanto tempo não a
encontrava! (P. 17).
Como vai se perceber mais adiante,
sendo Marta aquela que conduzirá o “diálogo”, pode-se inferir ser ela a o
resultado do esforço da literata alagoinhense por se metamorfosear para poder
dar curso ao seu rememorar. Tanto assim o é, que se percebe na resposta dada
por Marta a amiga, alguns elementos constitutivos do modo de ser “Maria Feijó.
— Verdade, Clarinha, nem parecemos amigas! É a vida agitada deste Rio de Janeiro que nos
tem distanciado um pouco, mas... nenhuma nuvem penetra no céu de nossa amizade
e, assim, é um enorme prazer revê-la nesta deslumbrante manhã. Vejamos ser esta a razão porque o sol se
abriu num magnífico sorriso. Há quanto tempo não víamos "um domingo assim,
de um sol assim..." (FEIJÓ, 1978, p. 18).
e a réplica de Clara, confirma a
suspeita:
— Como sempre, você e sua poesia, sonhadora eterna,
habitante das nuvens!... (Idem, Ibidem).
E assim, crê-se que os leitores já estejam mais ou menos
prontos para enveredar “pelos caminhos de uma professora primária”, visto já
conhecerem alguns dos processos narrativos utilizados pela sua autora, com o
fito de contar a história de Luísa Peixoto, que, segundo Feijó, é a história de
muitas professoras como elas.
Professor Jorge Damasceno
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