domingo, 27 de setembro de 2020

HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE ALAGOINHAS, PELOS ESCRITOS DE MARIA FEIJÓ - XIX.

 

Histórias e Memórias de Alagoinhas, pelos escritos de Maria Feijó – XIX – cumprimentos, descrições e primeiras trocas de impressões : a literata se transmuta em Marta, mas ainda conduz a fala das duas amigas professoras.

 

No arrazoado anterior, o leitor foi apresentado aos dois personagens que Maria Feijó de Souza criou, especialmente para que pela intermediação deles, o seu rememorar possa ser trazido à lume, na medida em que ela própria não quer ser identificada diretamente com o que irá rememorar. É um artefato narrativo que autora utiliza para suas reminiscências poderem fluir, sem que venham a ferir suscetibilidades. Tais memórias entremeadas de elaborações ficcionais, são, por assim dizer, memórias vividas a partir de interações coletivas na sociedade alagoinhense, localizada em um espaço de convivência daquela que relembra e em um tempo por ela vivido, no curso da história de um cotidiano perpassado por diversos conjuntos de pessoas, das mais diversas classes, visto aquela sociedade já estar demarcada pelas diferenças de pertencimento social, econômico, étnico e lugar de moradia.

Assim, conforme formula o sociólogo francês Maurice Halbwach (1877-1945), Feijó é a pessoa que lembra; mas um tal lembrar é produto da coletividade em que ela esteve inserida. Diz ele:

 

“[...], se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. [...], cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social”. (HALBWACH, 2006, p. 69). 

 

Portanto, Feijó é o “indivíduo que lembra”, a partir dos diversos elementos acumulados no transcurso de sua existência, associados a outros transcursos existenciais que com ela interagiram coletivamente, quer sejam suas colegas de curso ginasial, normal ou de atuação professoral, quer sejam os seus alunos, amigos, e as demais pessoas que com ela conviveram e socialmente interagiram. Tais conjuntos de lembranças vão sendo armazenados ao longo do tempo e ancorados no porto localizado no espaço chamado memória. Dali, são extraídos os rememorares materializados em suas obras literárias, sobretudo, aquelas prosas publicadas entre 1972 e 1978, além dos contos e poesias tornadas públicas em todo o seu percurso, sendo Alagoinhas, sua cidade natal, quase sempre o fio condutor de todo o seu mourejar no mundo das letras. Crê-se que aqui caberia a seguinte passagem extraída da já mencionada obra de Maurice Halbwachs, que diz  “[...].A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo,  pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto” (HALBWACH, 2006: P. 69).

 

Neste ponto, retoma-se a conversa das duas amigas professoras que se reencontram em Copacabana, depois de algum tempo sem se esbarrarem em algum outro lugar, sem entabularem alguma conversa por outro qualquer meio – já existia o telefone; mas, ele sequer é mencionado como possibilidade de alguma troca de notícias entre as duas. Maria Feijó teima em não se retirar do processo narrativo, pois ainda faz o trabalho de transição entre ela mesma e a personagem Marta, que acaba de criar para puxar o fio da história que constrói em torno de Maria Luísa Peixoto e o conduzir até o seu desfecho. É assim que ela descreve o estado de espírito das suas “amigas” que há algum tempo residiam apenas na sua criação literária: “Continuam sorrindo numa alegria colegial, realmente parecendo sincera, estando ambas felizes, enquanto os convencionais beijinhos estalam em cada face oferecida.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

A literata se esmera em descrever a personagem condutora da narrativa, mas não consegue esconder os seus próprios traços pessoais, profissionais e afetivos. Cada componente da descrição que ela faz de Marta, aponta para ela mesma. Certamente isto não é acidental, uma vez que a autora teria tido inúmeras oportunidades de se retirar do texto, caso assim o quisesse. Acontece que ela não o quer, não o pode, se diria. Sua têmpera de narradora não o permitiria. Siga o leitor os contornos que Feijó esboça para apresentar Marta. Ela começa por indicar que as duas teriam alguma semelhança – saíram ambas da mesma criação literária -, distanciando-se apenas no tempo já vivido, visto que” embora ambas fossem distanciadas em idade, tornaram-se amigas pela semelhança da profissão”.

E prossegue:

“Marta, na realidade, contava 38 a 40 anos. Mais ou menos. Casada, sem filhos, Professora Primária formada por outro Estado da União, e por este motivo jamais pôde ensinar — seu maior sonho — no Rio de Janeiro, porque para aqui viera quando ainda Distrito Federal.  Tudo fez, tentando lecionar, mas inúteis todos os esforços. Ingressara, então, na Faculdade de Filosofia, fazendo Jornalismo.  Como sempre gostasse de escrever, superou o sonho não realizado de exercer o magistério carioca, ao tempo em que, militando na imprensa, desposou um colega muito culto, bacharel em Direito, escritor e, sobretudo, muito a amava”. (FEIJÓ, 1978, p.18).

 

Ainda descrevendo Marta, Feijó traça os seus contornos e dotes de mulher, cujo corpo ainda se não deixou vencer pelo correr implacável dos anos:

 

“Morena, alta, esguia, trajava nessa manhã luminosa de domingo.  maiô preto de uma peça — embora moderna, não usava o duas peças e biquini, ainda pior — que mais lhe delineava o corpo bem feito, não aparentando, nem de longe, a idade real.  Se muito, uns 32 anos demonstrava! Eterno segredo de juventude trazia-lhe sorrisos diante da vida. Muito conversada, descontraída, acompanhava o marido, quando podia, em viagens de estudo, recreio, congressos, encontros, seminários, conferências etc.  Porém, lá no íntimo, ao Paulo — seu marido — sempre confessava que se sentia, às vezes, não propriamente desajustada dentro da profissão que desempenhava, mas lhe faltando” qualquer coisa”. Nascera mesmo para Professora Primária, embora achasse ser o complemento dessa honrosa profissão.  realmente, o jornalismo. As duas se fundiam na verdadeira, por ela ambicionada. Enfim, nem tudo é como se deseja e, tal o espírito de adaptação que a envolvia, conformava-se, porque encontrara na vida, sua outra metade, sonho de toda mulher, considerando isto, grande dádiva dos Céus. E, assim, se dava por muito feliz. Realizada” (FEIJÓ, 1978, p. 19).

 

Parece claro que o perfil acima construído é mesmo da literata alagoinhense,” [...]. Casada, sem filhos, Professora Primária  formada por outro Estado da União,[...]”,  até mesmo no fato de atuar em um mister que, por assim dizer, não escolhera se não pela impossibilidade de exercer o “magistério”, pois, conforme ressalta nas palavras que coloca no trabalho de apresentação de Marta “[...].Nascera mesmo para Professora  Primária, embora achasse ser o complemento dessa honrosa profissão”. 

Para justificar a a opção de contar a sua história de professora primária como o fez, trata de apresentar aquela que será concitada a ouvir o relato, de modo a destoar um pouco de Marta, tanto nos traços corporais, quanto no que tange ao desapontamento com a profissão e/ou com a situação em que está vivenciando no exercício do magistério. Observe-se o modo como Feijó apresenta a interlocutora:

“A outra, Maria Clara — Clarinha na intimidade —, loura natural, bonita, garota de uns 20 anos se muito, descendia de família numerosa, abastada, nortista, mas radicada no Rio fazia muito tempo, sendo ela, carioca de nascimento e caçula na família.  Magra.  Elegante. Inteligente. Amadurecida e, o que é mais importante: de uma cultura e talento muito grandes para uma jovem que, numa supercivilizada metrópole, poderia não se interessar, como o fazia, pelas coisas do espírito.  Estudiosa e sensata.  Completa a garota.  Gostava de festas, mas se não as freqüentasse, não ligava. Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito” Gênero de primeira necessidade” não os considerava.” (Feijó, 1978, p. 19).

 

Em contrapartida ao perfil de Marta que se realizara como “toda Mulher” ao desposar “[...] um colega muito culto, bacharel em Direito, escritor e, sobretudo, muito a amava”, Maria Clara não via nisto um objetivo a perseguir e/ou alcançar. A literata constrói uma personagem de tipo mais contemporâneo ao momento que elabora o seu narrar dos fatos, informando ao leitor que Clarinha jovem e culta, ao contrário de grande parte das suas coetâneas, se interessa pelas “coisas do espírito”. Porém, no campo dos afetos “[...]. Mantinha seus flertes, entretanto, por eles não se interessava muito [...]”.

Passando para as mãos de Marta a tarefa de principiar a conversa com Maria Clara, Feijó ainda apresenta algumas dificuldades para se ausentar da narrativa, visto se fazer confundir com a primeira, enquanto se esforça para realizar a transição. Assim segue o diálogo entre as duas jovens amigas:

 

“— Então, Clarinha, como vai?  Que me conta essa mocidade brejeira e esvoaçante que você traz dentro de si, distribuindo, por onde anda, beleza e simpatia? O coração, esse pássaro feliz, vaporoso?  A profissão, como está?  São tantas as perguntas, que se perdem na conta...” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

Note o leitor que ela já propiciou a resposta ao indagar de Marta, quando mais abaixo descreve as duas banhistas que, propositalmente foi discutida algumas linhas acima. Mas, observe-se a resposta de Maria Clara:

 

“— Ah! minha cara amiga, nem tanto assim a mocidade é brejeira nem distribui beleza, vida, alegria, como você pensa.  Nem tanto!  O coração?  Feliz só na aparência...  Aéreo, vazio é como vive. Embarcação segura ainda não aportou em terra firme, trazendo-lhe o dono e senhor absoluto... Continua disposto a esperar por muito tempo ainda.  Não palpita.  Funciona apenas como o principal órgão da circulação.  E o resto, a nova profissão, por exemplo, quase acabada, destruída, extinta pelas vicissitudes e desenganos.  Não fosse o grande ideal que sempre acalentei pela mesma e tudo estaria terminado, desfeito, morto.  Mudaria logo de vida.  Sem saudades.” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

O que Feijó pretende é, sem dúvidas, construir o ambiente propício para que ela possa assentar o seu rememorar. Ela, na busca por encontrar terreno favorável para a sua construção cênica, como que tateia em busca de assegurar que elaborará uma estrutura narrativa que ao mesmo tempo seja atraente e coerente, na medida em que se trata de uma construção memorialística – embora, como já se disse, ela não use esta expressão – e, como este escrevedor suspeita, mesmo uma construção autobiográfica, sem contudo assumir claramente um tal propósito – conforme também já foi salientado em arrazoados anteriores.

É assim que ela conduz os primeiros passos da interlocução entre as duas professoras, no sentido da demonstração de surpresa de Marta, diante da reação de Clara às suas questões e afirmativas:

 

“— Como assim? — a surpresa sem poder esconder-se no rosto de   Marta.    Você quase recém-formada, minha querida?  Não. Não pode ser possível. Por que esse desânimo? Tão jovem, tão inteligente e cheia de ideal como sempre a conheci?!” (FEIJÓ, 1978, p. 18).

 

E Feijó toma de volta para si a condução da narrativa, talvez para explicar ao leitor que “a outra dá de ombros, parecendo ouvir aereamente as palavras  da amiga e sorriso  de  desdém ensombra lhe  o  semblante  jovem,  arranja a linda barraca multicor, de Marta, porque  Clara — este seu nome — pouco trazia para o banho de mar. Relativamente longe, na Rua e Sarros, zona Norte, residia”. 

 

Desta forma, Feijó, ainda na condução da narrativa, procura aplainar o tablado sobre o qual Marta se assentará para desfiar os muitos rememorares com os quais procurará convencer Maria Clara de que o seu desapontamento com o exercício professoral pode ser mitigado e até mesmo reconsiderado, caso tenha êxito em seu intento de reanimar os já quase naufragados ideais daquela jovem, que foram construídos em torno do “sonho” de fazer carreira no magistério. Assim, mediante a escuta das vicissitudes de uma “professora primária”, que, tal qual ela, também tivera o mesmo “sonho” e enfrentara os mesmos labores seus, em terreno mais árido e árduo de uma cidade do interior, Marta acredita poder prover o remédio para tão precoce desalento.

 

Professor José Jorge Andrade Damasceno – 27 de setembro de 2020.


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