Dona Bidôga – entre o ferro de brasas e a lágrima de amor
perdido: uma música
Justina Santos. Mas, ninguém a procurava por este nome. Bidôga,
era como queria ser chamada e, assim, sempre fora chamada, inclusive pelos mais
próximos: pela mãe – Dona Maria -, pela única filha – Ana Cristina(neném) -,
pelas amigas e vizinhas e, como não poderia deixar de ser, pelos filhos destas
últimas.
Conforme era a sua vida, assim o era para uma boa parte das
suas vizinhas: lavadeira de ganho, atividade composta de movimentos que as
levava à beira do rio, para ali, lavar, quarar e enxugar as roupas que as
patroas lhes incumbiam fazer. O penoso trabalho semanal era levado a bom termo,
com pouco sabão e, com remuneração insuficiente para atender as necessidades
intrínsecas de uma pessoa humana, sobretudo, daquelas que, quase sempre, eram o
arrimo da família, fosse ela pequena ou numerosa. Isto as obrigava a ter várias
lavagens de roupas, de forma que as possibilitassem a realização dos “arranjos”,
expressão por elas usada, querendo significar a obtenção do mínimo que pudesse
mitigar as necessidades de alimento, de vestuário, bem como de outras
necessidades repentinamente surgidas, como remédios, por exemplo.
A atividade iniciada à beira do rio, era complementada com o
“passar” e, em ocasiões especiais ‘engomar”, sempre com ferros de passar, que,
nos primeiros tempos e até o fim da década de 1960 – quando elas adquirem os
primeiros ferros elétricos (TUPI) -, eles eram de carvão – também eram
conhecidos como “ferros de brasa”.
Após completar as etapas de seus labores com as “roupas” das
patroas, chegava a hora de fazer a entrega das limpas e trazer as sujas para a
semana seguinte, quando retomariam o labutar cotidiano, levado a cabo por anos
a fio dos seus existires, com o qual proviam suas vidas e as de todos que
tivessem sob o seu encargo.
Mas, havia que se encontrar meios para suportar o peso de
tão grande labor e responsabilidade, visto que, qualquer avaria ou extravio de
alguma peça, as lavadeiras eram obrigadas a ressarcir as patroas, quer com
descontos em seus parcos vencimentos, quer por restituição da peça extraviada
ou avariada, o que, saliente-se, era tarefa quase impossível para aquelas
mulheres que nada tinham de seu, a não ser a sua força de trabalho.
Elas Também precisavam lidar com os “amores’, que, quase
sempre, eram fugazes e fugidios, produzindo melancolias e dores de “amor”, que
levava algumas delas a procurar afogar no copo de pinga ou, a consolarem-se em
músicas que aliviassem os seus “ais”.
Dona Bidôga, inúmeras vezes, valeu-se dos dois artifícios
para prosseguir no seu labor, sem prostrar-se diante da desventura afetiva que
lhe abatera com alguma frequência. Boa praticante da arte de “virar copos”,
algumas vezes sacrificou tal “esporte”, para não perder o amado; outras vezes,
mergulhara fundo no “beber por esporte”, como dizia, a fim de afogar a decepção
que um ou outro amor lhe causara.
Mas, Dona Bidôga também cantava. Principalmente quando o
amado vinha para os seus braços e, claro, quando alguma alegria enxia aquele
peito sofrido de fainas diárias e de labutares constantes.
Ficou na memória deste escrevedor, uma frase que ela cantava,
que muitas vezes vinha aos ouvidos, quando dela se rememorava alguma coisa,
alguma palavra. Muito amiga de mãe e, muitas vezes brigaram ambas, de modo que
a vida de uma e de outra, em vários momentos se imiscuem em tais memórias.
Algumas vezes, se chegou a perguntar se aquela música
existia mesmo, sempre adiando uma pesquisa para ver se de algum modo a
encontraria por aí.
Assim dizia a única frase – que era cantada, ou que ficou
neste rememorar: “A mulher quando chora pelo homem, é mentira pura”.
Hoje pela manhã, decidido a saber se tal música de fato
existira, uma grande surpresa para quem escreve estas linhas: a música existe,
cantada por Ataulfo Alves, música que certamente ela ouvira, em algum rádio, de
algum vizinho mais bem aquinhoado ou, quem sabe, em casa de alguma patroa, no
pouco tempo que lá passava, enquanto entregava a roupa limpa, recebia a roupa
suja e, se fosse remunerada por semana, receberia o seu minguado dinheiro, para
o “arranjo” do sábado.
A música, de fato, tem como título “Mentira Pura”. Mas, a
surpresa está por conta da re(leitura feita por Dona Bidôga, talvez por ouvir
poucas vezes; talvez por não ter podido compreender a complexidade da letra –
complexidade para ela, saliente-se, que além de ter um acesso parcial aos
veículos de execução musical, também estava alijada dos processos de leitura e
escrita.
A poesia de Ataulfo Alves diz no seu refrão “Mulher que
chora/homem que jura/não acreditem não/ é mentira pura”. Na sua simplicidade de
lavadeira e passadeira de ganho, ela simplificou a frase, evidentemente,
descrevendo aquilo que talvez vivesse ou vivenciasse no seu farfalhar diário.
José Jorge Andrade Damasceno
- 19 de julho de
2021.
Massa, Jorge! O lavar roupa na beira do rio vem dos tempos que se carecia de água encanada e os mananciais não tinha se tornado destino de dejetos da cidade.
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