terça-feira, 23 de junho de 2020

Uma memória que não se apaga - 23 de junho de 1974: há quarenta e seis anos partia o meu irmão Antônio carlos, carinhosamente conhecido como Zé Carlos..


José Mário e Zé Carlos – uma despedida entre lágrimas e silêncios – junho de 1974.

Crê-se que a última vez que se falou de José Mário neste espaço, ele fazia a sua primeira incursão na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, nos idos de 1986. Ali, aos vinte e cinco anos completos, ingressava no curso de Licenciatura plena em História, tomando contato com gentes que não eram do seu convívio social, causando alguns estranhamentos – mas não no sentido de conflito e sim, no sentido de confusão de compreensão do seu entorno -, uma vez que o contato com pessoas de formação escolar sólida e, até mesmo gentes que já estavam inseridas no contexto da docência, davam nele uma sensação de não estar necessariamente em um espaço onde tivesse qualquer desenvoltura no trato e no passo do seu início de caminhar pelas sendas da formação acadêmica.
No entanto, se voltará a ele, uns doze anos antes, quando vivenciou um processo que o colocou frente a frente com interrupção precoce de uma vida que mal completara os vinte anos, que o marcara profundamente, ao ponto de achar que também o seu caminhar pela vida se concluiria nos mal completares da segunda década na existência terrena.
Dona Arminda entrara no ano de 1974 envolta em um não infundado mar de temores e, algumas esperanças pouco fundamentadas em uma crua realidade que acabaria por se apresentar para ela, conforme os seus temores. Zé Carlos, o seu filho mais velho, recebia o fatídico diagnóstico de um “bolo” no intestino – conforme ele mesmo dizia -, que demandaria imediata intervenção cirúrgica. Uma hecatombe para a cabeça e para a frágil e instável condição de dona Arminda, uma vez que o tempo que ele passaria internado e o que demandaria para convalescer, faria com que ela reduzisse o ritmo de seu trabalho de lavadeira de ganho, o que, por via de consequência, reduziria os já parcos recursos com os quais ela precisava contar para o atendimento das suas necessidades e as dos filhos que dela dependiam. Considere-se, de outra parte, que tal redução de recursos, seria confrontada com o aumento das necessidades dela e dos seus, impulsionado pela saída de Zé Carlos da sua composição orçamentária, agravando-se com o ingresso de despesas inerentes ao processo pós-operatório, que consistia não só na aquisição de medicamentos, como também de ingredientes para uma alimentação diferenciada e em determinados horários.
Uma tal situação provoca a entrada do primeiro fogão a gás naquela casa, onde o carvão era o principal combustível da cozinha. Importa salientar que o novo artefato de preparo de alimentos, ali estava como algo fora de lugar, sendo utilizado prioritariamente no preparo da alimentação destinada ao paciente em convalescença domiciliar.
Longos quatro meses correram como quem não prestava a atenção ao angustiar-se de dona Arminda, que embora ainda alimentasse vagas esperanças de ter outra vez o seu filho com a saúde recuperada, a angústia era a marca indelével do seu lidar cotidiano, uma vez que era quem mais sabia da difícil condição em que se encontrava o filho, como também, esperava, embora sequer expressasse isto, um desfecho que a privaria do seu primogênito e arrimo, tão presente no labor de ajudá-la a criar os seus outros irmãos.
Aquele vinte e três de junho, um domingo que parecia ser como os outros domingos que o precederam, se erguera como os demais que se seguiram ao retorno de Zé Carlos para casa, após a infrutífera intervenção cirúrgica. Como de costume, seu Augusto fizera a sua alvorada, prenunciando mais uma festa junina, regada a comida, bebida, danças e vivas. Naquele dia se jogara mais um dos jogos da Copa do Mundo, que se realizava na então Alemanha Ocidental.
Após o almoço frugal daquela casa, onde a tristeza insistia em se confundir com a fria temperatura que caracterizava aquela época do ano, José Mário, incompreensivelmente triste, fora para o quarto que até alguns meses antes dividia com o seu irmão então enfermo, onde dormira todo o resto da tarde.
De repente, fora bruscamente acordado com os gritos lancinantes de dona Arminda. Literalmente, era como se fossem os urros de uma fêmea que acabava de ter a cria arrebatada: o seu filho acabara de morrer nos seus braços.
Assustado e, logo compreendendo tudo que se estava passando ali, intentara acorrer para o aposento de onde ouvira o extremamente cortante choro de sua mãe, ele tivera seus passos barrados por alguém.
Parado entre o quarto onde dormia e aquele em que jazia morto Zé Carlos, José Mário irrompeu em um pranto que marcaria a sua despedida do seu irmão, sem que pudesse sequer trocar com ele um até breve...
Até hoje, no momento em que estas linhas estão sendo escritas, correm aquelas lágrimas de dor e de saudade pela perda de Zé Carlos, embora já se tenham passado quarenta e seis anos que tal se vivenciou. Para José Mário, Zé Carlos era o irmão que levava para cortar o cabelo; que o trazia do Brasilino Viegas, fazendo o trajeto pela rua Luiz Viana, no quadro da sua bicicleta; por quem ele brigava com quem mangasse da cegueira do irmão; com quem corria pela casa, até um dia que caíram um sobre o outro e, Zé Carlos batendo os dentes abertos pelas gargalhadas de ambos, deixou-os gravados no ombro de José Mário, como se fora um carimbo para manter viva a sua memória no corpo do irmão.

Professor José Jorge Andrade Damasceno

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