José Mário e Zé Carlos – uma
despedida entre lágrimas e silêncios – junho de 1974.
Crê-se que a última vez que se
falou de José Mário neste espaço, ele fazia a sua primeira incursão na
Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, nos idos de 1986. Ali, aos
vinte e cinco anos completos, ingressava no curso de Licenciatura plena em
História, tomando contato com gentes que não eram do seu convívio social,
causando alguns estranhamentos – mas não no sentido de conflito e sim, no
sentido de confusão de compreensão do seu entorno -, uma vez que o contato com
pessoas de formação escolar sólida e, até mesmo gentes que já estavam inseridas
no contexto da docência, davam nele uma sensação de não estar necessariamente
em um espaço onde tivesse qualquer desenvoltura no trato e no passo do seu
início de caminhar pelas sendas da formação acadêmica.
No entanto, se voltará a ele, uns
doze anos antes, quando vivenciou um processo que o colocou frente a frente com
interrupção precoce de uma vida que mal completara os vinte anos, que o marcara
profundamente, ao ponto de achar que também o seu caminhar pela vida se
concluiria nos mal completares da segunda década na existência terrena.
Dona Arminda entrara no ano de
1974 envolta em um não infundado mar de temores e, algumas esperanças pouco
fundamentadas em uma crua realidade que acabaria por se apresentar para ela,
conforme os seus temores. Zé Carlos, o seu filho mais velho, recebia o fatídico
diagnóstico de um “bolo” no intestino – conforme ele mesmo dizia -, que
demandaria imediata intervenção cirúrgica. Uma hecatombe para a cabeça e para a
frágil e instável condição de dona Arminda, uma vez que o tempo que ele
passaria internado e o que demandaria para convalescer, faria com que ela
reduzisse o ritmo de seu trabalho de lavadeira de ganho, o que, por via de
consequência, reduziria os já parcos recursos com os quais ela precisava contar
para o atendimento das suas necessidades e as dos filhos que dela dependiam.
Considere-se, de outra parte, que tal redução de recursos, seria confrontada
com o aumento das necessidades dela e dos seus, impulsionado pela saída de Zé
Carlos da sua composição orçamentária, agravando-se com o ingresso de despesas
inerentes ao processo pós-operatório, que consistia não só na aquisição de
medicamentos, como também de ingredientes para uma alimentação diferenciada e
em determinados horários.
Uma tal situação provoca a
entrada do primeiro fogão a gás naquela casa, onde o carvão era o principal
combustível da cozinha. Importa salientar que o novo artefato de preparo de
alimentos, ali estava como algo fora de lugar, sendo utilizado prioritariamente
no preparo da alimentação destinada ao paciente em convalescença domiciliar.
Longos quatro meses correram como
quem não prestava a atenção ao angustiar-se de dona Arminda, que embora ainda
alimentasse vagas esperanças de ter outra vez o seu filho com a saúde
recuperada, a angústia era a marca indelével do seu lidar cotidiano, uma vez
que era quem mais sabia da difícil condição em que se encontrava o filho, como
também, esperava, embora sequer expressasse isto, um desfecho que a privaria do
seu primogênito e arrimo, tão presente no labor de ajudá-la a criar os seus outros
irmãos.
Aquele vinte e três de junho, um
domingo que parecia ser como os outros domingos que o precederam, se erguera
como os demais que se seguiram ao retorno de Zé Carlos para casa, após a
infrutífera intervenção cirúrgica. Como de costume, seu Augusto fizera a sua
alvorada, prenunciando mais uma festa junina, regada a comida, bebida, danças e
vivas. Naquele dia se jogara mais um dos jogos da Copa do Mundo, que se
realizava na então Alemanha Ocidental.
Após o almoço frugal daquela
casa, onde a tristeza insistia em se confundir com a fria temperatura que
caracterizava aquela época do ano, José Mário, incompreensivelmente triste,
fora para o quarto que até alguns meses antes dividia com o seu irmão então
enfermo, onde dormira todo o resto da tarde.
De repente, fora bruscamente
acordado com os gritos lancinantes de dona Arminda. Literalmente, era como se fossem
os urros de uma fêmea que acabava de ter a cria arrebatada: o seu filho acabara
de morrer nos seus braços.
Assustado e, logo compreendendo
tudo que se estava passando ali, intentara acorrer para o aposento de onde ouvira
o extremamente cortante choro de sua mãe, ele tivera seus passos barrados por
alguém.
Parado entre o quarto onde dormia
e aquele em que jazia morto Zé Carlos, José Mário irrompeu em um pranto que
marcaria a sua despedida do seu irmão, sem que pudesse sequer trocar com ele um
até breve...
Até hoje, no momento em que estas
linhas estão sendo escritas, correm aquelas lágrimas de dor e de saudade pela
perda de Zé Carlos, embora já se tenham passado quarenta e seis anos que tal se
vivenciou. Para José Mário, Zé Carlos era o irmão que levava para cortar o
cabelo; que o trazia do Brasilino Viegas, fazendo o trajeto pela rua Luiz Viana,
no quadro da sua bicicleta; por quem ele brigava com quem mangasse da cegueira
do irmão; com quem corria pela casa, até um dia que caíram um sobre o outro e,
Zé Carlos batendo os dentes abertos pelas gargalhadas de ambos, deixou-os
gravados no ombro de José Mário, como se fora um carimbo para manter viva a sua
memória no corpo do irmão.
Professor José Jorge Andrade
Damasceno
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