Quando a Feira era “do pau” e a rádio era “Emissora” –
Alagoinhas 1969-1981.
Prestes a completar cento e sessenta e oito anos de
emancipação político-administrativa, em seu marchar desde o estabelecimento do
núcleo populacional nas proximidades da estação ferroviária aberta ao tráfego
em 1863, trazendo consigo a feira que já funcionava na antiga povoação, até a consolidação
das bases urbanas do município no atual “comércio”, Alagoinhas construiu marcas indeléveis no imaginário dos
seus moradores, que teimam em se manter vivas a despeito dos anos e das
mudanças na configuração espacial da cidade.
Memorialistas, cronistas e poetas que insistiram em descrever
e cantar a cidade “terra da laranja”, trouxeram ao público com leveza e
elegância, muitos elementos espaciais que ficaram entranhados no seu rememorar,
que, em grande parte dos casos, não reste mais do que alguns vestígios em forma
de fotografias e imagens descritas por gente da estirpe de Salomão Barros,
Naylor Bastos, Joanita Cunha, Olívio Paranhos, Roque Costa, Iraci Gama Santa Luzia, Maria Feijó, dentre
outros alagoinhenses que se deram ao trabalho de divagar sobre os “lugares de
memória” que tanto os impressionara.
Alguns destes lugares de memória ainda estão preservados, em
alguma medida, a despeito das precariedades de suas instalações, como é, por
exemplo, o caso da imponente estação São Francisco, em cujas dependências se
encontra o rico acervo da Fundação Iraci Gama.
Por ali, passaram muitos homens e mulheres, ao longo de mais
de cem anos, nos seus diversos afazeres e labores: eram maquinistas, fiscais, bilheteiros,
passageiros demandando os vários destinos atendidos pelas ferrovias que tinham
o seu terminal de passageiros e/ou cargas naquela gare; também vendedores de
lanches e guloseimas, repastos e refrescos; carregadores de bagagens, e tantos
outros transeuntes que circularam naquele espaço de sociabilidade dos tempos auspiciosos
daquela Alagoinhas tornada entreposto ferroviário.
Daquela estação também partia e chegava uma indefinida gama
de mercadorias, parte delas destinada à comercialização na feira livre da
cidade.
Quando aos nove anos incompletos este escrevedor iniciara os
seus lidares com as atividades escolares, também passara a tomar contato com a
já centenária “Feira do pau”, localizado ao longo da Rua Alcindo de Camargo,
estendendo-se até o Largo do Tamarineiro; nas sextas e nos sábados, ela ocupava
todo o muro do grupo escolar Brasilino Viegas, espraiando-se por toda a rua Francisco
Batista, até chegar na frente do prédio do Paço Municipal.
Por ali, precisava passar todos os dias, demandando o
Brasilino Viegas, transitando por um longo passeio que ficava à direita daquele
que ia no sentido do prédio onde eram realizados os cultos da então primeira
Igreja Batista de Alagoinhas. Ao longo do trajeto, logo no início do aludido
passeio, ficava o espaço onde eram comercializadas as aves – galinhas, galos,
pirus – que faziam a sua natural algazarra, alegrando por demais os sentidos do
menino que se encaminhava para a escola. Quando era sexta feira, o trajeto
ficava um pouco mais difícil, visto ser grande o contingente de pessoas a
circular, bem como o era maior o número dos que comercializavam seus produtos,
naquele espaço exíguo, onde também estava instalados os prédios de açougues,
armazéns onde se vendia querosene e cachaça, odores que chegavam ao aguçado
olfato daquele tenro estudante, cuja memória não se apagou, a despeito dos
muitos anos já decorridos.
Nas sextas feiras, o retorno para casa era por dentro da
feira, experimentando farinha, bafando amendoins, camarões sêcos para ser comido
com os muitos punhados de farinha, surrupiados à guisa de “provar”.
Entretanto, aquela movimentada feira escondia entre as suas
barracas de madeira, seus caçuás de farinha, sacas de feijão e capoeiras de
aves diversas,, um de seus braços, que se estendia na direção à rua Teresópolis,
como se fosse pegar o trem que se dirigia ao “Timbó”, como se quisesse alcançar
a distante Propriá.
Esta parte da feira era a afamada “Feira do Pau”, onde as
noites de sexta para sábado e o final dos trabalhos de mercadejar da tarde do
último dia de feira, era brindado com folguedos, bebidas e alegríssimas danças
que varavam a noite, aguardando a chegada do domingo. Os recursos auferidos na
realização da comercialização de frutas,aves de todo o tipo, verduras, carnes,
queijos, farinhas, vários tipos de feijão, além de produtos de época, como
milhos, laranjas e amendoins, abundantes por ocasião dos festejos juninos, em
grande parte, era dissolvido nas biroscas de venda de cachaça e nos espaços
onde as atividades sexuais eram desenvolvidas até o raiar do domingo.
Ali, muitas mágoas de amor foram afogadas em copos e copos
de aguardente; em braços de amantes que muitas vezes sequer conheciam os
amados; nos leitos de há muito conhecidos pelos que a eles recorriam para
abandonar-se ao “amor” alugado por alguns “tostões”, que por sua vez, aqueles “tostões”
aliviavam a fome daquelas que alugavam os tais “amores” e de sua quase sempre
numerosa prole, fecundada, parida e criada ali mesmo, desenvolvendo uma
população quase invisível, sem que porém assim o fosse.
No final dos oitenta, aquela centenária feira acabara por
ser desativada e levada para um lugar “salubre”, onde a “higiene” seria o ponto
alto do lugar onde os alimentos seriam comercializados dali por diante.
Quase concomitantemente à “morte” da Feira do Pau,
Alagoinhas assistia impassível a morte da rádio “emissora”, uma marca da cidade
que não conseguiu se manter viva, a não ser na memória dos seus ouvintes mais
longevos. Locutores como Augusto Saraiva, Lourival de Andrade, Raimundo Rollemberg,
Jorge Oliveira, Aluísio Santana, Célio Machado, Belmiro Deusdete, ocuparam o imaginário de seus ouvintes e fizeram a história da rádio “emissora
de Alagoinhas”, mas não conseguiram construir um legado que fosse duradouro, talvez, sequer um acervo, que
possa um dia ser visitado por quem a conheceu e por aqueles que ao menos,
viessem a conhecer a rádio que falou para a cidade por mais de cinquenta anos.
Assim, este escrevedor é do tempo que a feira era “do pau” e
a rádio era “emissora”.
Professor José Jorge Andrade Damasceno
Me senti provocada nas minhas lembranças da Feira do Pau.
ResponderExcluirTambém eu fiz um dos trajetos descritos indo para Centro Integrado Luís Navarro de Brito, onde completei o atual Ensino Médio. Eu atravessava a Feira do Pau vindo do Teresópolis.
As lembranças vieram a minha mente com sua descrição. No entanto, senti falta da justificativa ao nome da postagem "Feira do Pau". Na verdade, eram duas feiras. A "Feira do Pau" tinha sua característica própria: comércio de Madeiras (popularmente chamadas de paus) bem como, a concentração de marginalizados da sociedade (moradores de ruas,prostitutas, deficientes mentais e outros...)Que ali eram acolhidos. Com esse tipo de coletivo era comum os desentendimentos e de vez em quando "O pau comia".
Texto muito bom, professor. Esses textos memorialísticos são muito instigantes, sobretudo porque nos faz rememorar e perceber as diversas e incríveis semelhanças que há em nossos modos de vida, e neste caso, nessas "feiras do pau" espalhadas por aí.
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