domingo, 8 de agosto de 2021

Nas areias da praia de Jardim de Alá!

Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador VII – Nas areias da praia de Jardim de Alá!

 

Dona “Manda” passara grande parte de sua vida à beira do Rio Aramari – naquela passagem que era conhecida como “Rio do Só bocó”, no mesmo lugar e  época em que fora implantada a estação de captação e tratamento de água da cidade -, lavando as roupas que lhe eram entregues para este fim. Em geral, entre a segunda e a quarta-feira, ela laborava no sentido de lavar, quarar, enxaguar, torcer e estender para enxugar aquelas peças de roupa – desde calças, vestidos, camisas, saias e blusas, até toalhas de banho e de mesa, lençóis de cama e, em algumas ocasiões, eram incluídos  pesados cobertores -, tarefa que exigia grande esforço braçal para a sua realização, o que esgotava aquelas mulheres, muitas vezes mal alimentadas – e, em alguns casos, maltratadas pelos seus companheiros.

Tinha ela dois filhos mais velhos do que este escrevedor. Algumas vezes, eles eram encarregados de tomar conta do irmão traquino. Outras vezes, ela precisava levá-lo consigo para o rio, onde ele “batia água” e fazia outras traquinagens com a meninada de sua idade, além de outras peraltices.

Fora ali, na beira do rio que, além de muitos banhos, ele também ouvia rádio, rádio que, evidentemente, não era seu. Ele mal ouvia o som da música que lhe agradava os ouvidos e, logo saía em busca de se aproximar do aparelho radiofônico, para ouvir melhor. Encontrado o dito, não poderia pegar para perceber o seu formato, o seu tamanho, nem mesmo o seu peso, ou textura da sua caixa: de plástico? De Madeira? E, por quê? Porque o dito estava protegido por sua dona, a salvo dos olhos e mãos indevidas, dentro das suas saias!

Aquela senhora, Era uma das que, do mesmo modo que Dona Manda, mourejavam àquela beira de rio. Uma dentre aquelas tantas que laboravam semanas a fio naquela ribanceira de rio. Este escrevente nunca soube exatamente quem era aquela mulher que muitas vezes lhe franqueava as audições de rádio, sem, contudo, permitir acesso ao aparelho. Dona Isabel, era o seu nome. Mas, havia duas dentre elas que assim se chamavam. Uma, era diferenciada pelo nome do seu companheiro e pai dos seus muitos filhos: “Zabé de Guarda”. Mas a outra?

Bem... Certa vez, ela inquirira ao ouvinte do seu rádio, se ele sabia quem era. Como só ouvia o seu nome com o epiteto que, certamente, ela não gostava, disparou:

- Dona “Zabé Galinha”.

Ao ganhar de dona manda um belo tapa na boca por causa da resposta  inconveniente, a mulher ofendida retrucou:

- “Ele num tem curpa. Só falô porque ouviu”!

Pior do que o tapa na boca, foi ficar sem ouvir o rádio de dona Isabel.

Durante os quase dezessete meses que passara trancafiado naquele internato, por duas ou três vezes este garatujador fora levado para passeios coletivos. Eram ocasiões em que o rupo responsável por gerir o internato preocupava-se em formar uma imagem para a sociedade, no sentido de ser entendido como um lugar em que os cegos eram tratados com todo o cuidado, de modo a deixar a impressão de que estava cumprindo o seu papel, socializando-os e dando a eles uma gama de possibilidades de estudos e lazer.

Mas, tratava-se de uma construção de imagem, visto que, de uma boa impressão social, dependia o fluir dos recursos para o “sustento da obra”.

No momento em que escreve estas linhas, se tem clareza da necessidade que o grupo sentia, procurando envidar os esforços necessários para passar aquela imagem de protetores e bem feitores dos cegos baianos, pois, além de garantir o fluxo de caixa para a instituição, também seria o “passaporte” para um tempo menor no “purgatório” ou, quiçá, para sequer passar por ele. Talvez isto explique o episódio, ocorrido quando o recém-chegado ainda estava gordo e bem tratado.

Certo dia, fora chamado ao quarto andar – onde se dormia e se trocava de roupa. Sem maiores explicações, ele fora orientado a vestir as roupas de casa e, se dirigir até a biblioteca, então no terceiro andar, onde seria entrevistado.

Lá chegando, fora recebido por um jornalista – que até hoje não se sabe de qual dos jornais de Salvador – e, ato contínuo, foi convidado a se assentar à mesa de leituras. Já lá se encontrava um livro em Braille, para permitir ao repórter fazer as fotografias necessárias para demonstrar o cego lendo. E, assim foi feito.

Este narrador não guardou nenhum vestígio da tal entrevista, a não ser o seu movimento de leitura; nem mesmo qual teria sido o livro brevemente lido; nem pergunta feita, nem resposta dada; absolutamente nada ficou. Sabe-se, porém, que a tal entrevista foi publicada, pois, ao chegar de férias no meio do ano, o jornal estava passando de mão em mão, pois fora visto por seu Augusto e, levado pela curiosidade e, talvez por ver estampada a foto do menino que quase não saía de sua casa, ele comprou – ouviu no batalhão onde servia – e trouxe para circular entre os outros vizinhos.

Naquela ocasião, os periódicos de maior circulação em Salvador, eram o Jornal da Bahia, a tribuna da Bahia, o Diário de Notícias e, o mais antigo dentre eles, o Jornal A Tarde.

Mas, voltando ao passeio coletivo. Talvez tenha sido o primeiro que fora realizado, no tempo da chegada deste que ora vos escreve. Logo após o jantar frugal e que sequer mitigava a fome daqueles internos, cuja sopa era tão ruim quanto morna, sopa que de vez em quando permitia encontrar um pedacinho de abóbora, ou era chuchu! um único pedaço de macarrão, todos foram avisados que na manhã seguinte, um sábado, todos seriam levados na praia.

O dia seguinte deve ter demorado uma semana e, quando amanheceu, chovia no Barbalho! Mesmo assim, todos foram mandados para o térreo, para ali aguardar a sua vez de embarcar na Kombi, que, evidentemente, precisaria fazer várias viagens, a fim de conseguir transportar a todos.

Chegados na praia – que este escrevedor só veio saber qual era, depois que de lá saíra -, a surpresa pelo fato de a areia estar seca e o sol aberto.

Tudo transcorria bem. As conversas. Os banhos de mar. Embora acostumado à beira do Rio do Só bocó, logo se percebeu a abissal diferença e, claro, não se arriscou. Procurou vencer a timidez e, entabulou conversas com duas meninas, que, tal como o tímido interlocutor, sentaram-se em lugar que as ondas chegavam o suficiente para molhar, sem precisar fazer incursões mais ousadas. Uma das garotas, era aquela que fazia fruir os desejos de muitos, por ser muito doce, de conversa agradável e voz meiga.

Mas, enquanto procurava abrir espaço para um lançar de bases mais sólidas, quem sabe, para outras conversas, desta vez, mais reservadas, veio uma onda tão forte quando inesperada, que acabou por lançar nas areias quentes, o quase galanteador, com sua conversa, com o seu falar medido, comedido, rebuscado.

Aquele incidente pusera fim ao diálogo com aquela garota, diálogo mal começado, mal estabelecido. A música que insistentemente tocava no rádio – bem no momento que a onda levara para longe o seu ensaiar -, ganhou uma profunda antipatia deste narrador.

 

https://youtu.be/kE0pwJ5PMDg

 

José Jorge Andrade Damasceno – 08 de agosto de 2021. 

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