Histórias e memórias de uns tempos vividos em salvador - V.
Um telegrama, o embarque no “Pirulito”
Os dias posteriores ao ribombar dos travesseiros foram de
acomodações das placas tectônicas movimentadas há já algum tempo, mas,
sobretudo, naquela semana iniciada em 22 de agosto de 1976, aliás, o último
domingo da vida do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Como seria de se
esperar, várias reuniões foram feitas entre a direção interna e o grupo de senhoras
abnegadas, caridosas e beneméritas da sociedade soteropolitana, que proviam os
recursos para a manutenção do Instituto de Cegos da Bahia, no sentido de
decidir o que fazer com aqueles insubordinados/mal-agradecidos cegos que provocaram
a hecatombe comportamental, brevemente descrita no arrazoado anterior.
Este escrevedor, embora não houvesse liderado aquela
rebelião de travesseiros – ao contrário, fora mero coadjuvante -, mas, tido
como um dos cabeças, talvez por conta de sua disposição de tudo fazer para
voltar para casa, fora colocado em isolamento, no “horário do silêncio”, tendo
sido colocado em um aposento adaptado em um banheiro sem uso, com direito a
latrina para uso durante a noite.
Tal providência não foi sem razão. Em ocasião não muito
distante daquela, ele fora colocado em isolamento, em um quarto localizado no
quinto andar do prédio, fechado a chave, sem janelas, apenas com um basculante;
para tanto, recebera um penico, a fim de depositar os resíduos líquidos,
vertidos durante a noite. Certo dia, sabe-se lá por qual razão, um outro
resíduo fora ali depositado e, sem querer passar toda aquela noite aspirando o cheiro exalado por aquele produto,
resolveu lançá-lo pelo basculante.
Na manhã seguinte, após o café frugal servido no
estabelecimento de encarceramento de cegos, se dirigira para a Kombi que os
levaria para as escolas.
Sabendo do risco de pisar no seu próprio resíduo, logo tratou
de cuidadosamente se acomodar no banco da frente do referido veículo, enquanto
os outros colegas, como de hábito, passeavam em volta da Kombi, até que o
motorista viesse para os conduzir aos seus destinos.
Ao se aproximar, o jocoso motorista dissera:
- Bora, cegada!
Como se tivesse ouvido um comando de quartel, a turma se
esgueirou para dentro daquele automóvel, se acomodou e, o motorista iniciou o
trajeto.
Quase imediatamente, iniciou-se os “fun, que fedor!” Ao que
seu Brás acrescentou:
- Que pôrra! Quem foi o fila da puta que pisou em merda? Foi
você, Jorge Grande?
- Eu mesmo não, seu Brás! Eu nem daqui saí! Respondeu o
interpelado, com a seriedade de uma estátua de mármore!
Mas, quando fora deixado no Iceia e, transpusera o seu portão,
prorrompera em estrepitosa gargalhada, explosão que, certamente, teria deixado
perplexos os circundantes!
Assim, os dias que completaram agosto e iniciaram setembro,
passaram ainda mais lentamente. No imediatamente posterior a algazarra,
serviram para repercutir a traquinagem e fazer troça da chefe e sua postura
ridícula diante do episódio. Depois, veio a desclassificação no refeitório, um
dos poucos lugares de sociabilidade daquele internato, pois ali, não se fazia
separação dos alunos, conforme o sexo.
Como demonstração de autoridade e, para dar exemplo aos
demais que eventualmente quisessem perpetrar novas rebeliões perturbadoras da
boa ordem da casa, o rebelde deixara de ocupar a primeira mesa – considerada como
de “elite”, juntamente com mais três outras. Este narrador foi tirado da dita mesa
da “elite” – onde todos faziam os seus pratos, embora com limites e, composta
por alunos que “estudavam fora e cursavam o ginásio”, que tinham alguma
desenvoltura no que tange à coordenação motora -e fora inserido na mesa dos que
já encontravam os pratos servidos”, o que significava a retirada de qualquer
possibilidade de manobra para ter um pouco mais de comida no almoço.
Enfim, em uma manhã ensolarada, talvez já fosse setembro,
este rebelado saiu no primeiro turno dos que iriam para a escola – o seu era o
segundo -, com o firme intento de lá permanecer até o fim da tarde, se
configurando mais uma reação àquilo que entendia ser arbitrariedade, perpetrada
pela chefe contra si.
Depois da magra refeição matinal, composta por um caneco esmaltado
de café preto, um terço de uma vara de pão com margarina, vez por outra um pedaço de banana da terra e, um prato daqueles
de servir doce, com um mingau que não era possível saber qual era o seu feitio,
dirigiu-se ao veículo conduzido por seu Brás, abordo do qual fora levado até o
Iceia, onde ficara toda a manhã, merendando fartamente no intervalo, guardando
parte daquela merenda – pão de ovos com mortadela e Nescau – para lhe servir de
almoço ao meio-dia.
E assim, foi. No horário que deveria voltar para o almoço no
Instituto, o rebelde se enfiou na biblioteca da escola, só saindo dali, para
assistir a primeira aula da tarde. Segundo os seus planos, só retornaria ao
final do dia, por não dispor de qualquer alternativa para lançar mão.
Corria a tarde morna e, as aulas fluíam sem tropelias. Logo após
o intervalo, por volta das quinze horas
e trinta minutos, alguém pede licença ao professor; chega até aquele aluno e
diz para sair um pouco, pois o pessoal do Instituto estaria ali. Levanta-se e,
ao chegar no corredor, ouve de alguém que talvez fosse funcionário do Iceia:
- Pegue as tuas coisas. Seu Brás está lá fora.
Entendendo quase imediatamente que o seu plano de alguma
maneira funcionara, fora surpreendido com a presença de sua mãe, logo que
chegou no dito Instituto. Orientado a subir para pegar os seus pertences, que
já estavam arrumados, cerca das dezesseis horas, já deixava para trás aqueles
muros que o mantiveram em regime de reclusão por todo àquele tempo.
Ao descer a Ladeira de Água Brusca, com o objetivo de alcançar
o Largo de Meninos e, na Jequitaia, pegar um transporte que os levasse até a
estação da Calçada, dona Amanda disparou:
- Achei que me chamaram para levar o seu caixão!
Aquela reação tinha um motivo: dona Amanda havia recebido um
telegrama, convocando-a para comparecer com urgência em Salvador, para tratar
de assunto referente ao seu filho, então internado no ICB. Ora, há pouco mais de
dois anos, ela houvera perdido o seu filho mais velho para “aquela doença ruim”,
como dizia, quando se referia ao câncer. E, quando o outro aprontava alguma,
ela vociferava:
- O que era bom morreu. O outro, ficou para me dar trabalho!
Nem precisa dizer que a tal frase fora repetida, naquele
trajeto entre a “jaula de cegos” – como carinhosamente era cognominado o
Instituto – e as imediações da Feira de São Joaquim, de onde mãe e filho embarcaram
em um ônibus que os levara até a calçada.
Mas, para o filho que estava há poucas horas de seu torrão
natal, pouco importava se o seu irmão falecido era preferido em detrimento dele.
O que importava mesmo é que, ele, finalmente, embarcaria no
Pirulito e, ao chegar na estação São Francisco, estaria pisando em um espaço
que já lhe era familiar. No entanto, a viagem foi concluída antes da aguardada
estação, uma vez que a “agulha” estava fechada, o que obrigara o trem a esperar
a sua abertura, para poder prosseguir. Como o lugar onde se dera a interdição
temporária era próximo da moradia de dona Amanda, ela desceu ali mesmo, talvez
a uns trezentos metros do seu modesto lugar de morada.
Ah, quase dez da noite. Que dia maravilhoso foi aquele, dia
que teve um desfecho tão inesperado, quanto diferente do anterior: não dormira
trancado a chave, como dormiriam os sentenciados de grande periculosidade!
https://youtu.be/0Blw9bVFgEA
José Jorge Andrade Damasceno – escrito em sábado, 31 de
julho de 2021; revisto e publicado em domingo, 01 de agosto de 2021.
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