Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador VIII –
Antes da virada da maré, algumas amenidades.
Ainda mal amanhecera e, dona manda levantara, dera café ao
filho e, fazendo o percurso a pé, se encaminhara até a Estação São Francisco,
com o intuito de pegar o Pirulito, que os levaria para a cidade de Salvador. Ali,
ele ficaria interno no Instituto de Cegos da Bahia, conforme acertado
previamente com a última professora itinerante que atuara em Alagoinhas:
Primitiva Sampaio, era o seu nome. Aliás, foi a sua remoção, para acompanhar o
marido que era militar, que acabou por colocar fim na exitosa experiência desenvolvida
no Brasilino Viegas, que permitiu o arranque deste escrevente, na direção da
formação profissional, claro, não sem inúmeros percalços.
Aquela madrugada outonal, se levantara com alguns laivos de
esperança, trazendo aos caminhantes, os seu cheiro de alvorada, o primeiro chilrear
da passarada, indicando que, talvez, ao iniciar a sua trajetória rumo à
maturidade, aquele menino não viesse a esquecer daquele lugar, embora
desprovido de trato urbanístico, que era o espaço que ele conhecia bem; que ele
podia explorar sem sobressaltos; que os cheiros de matos e flores silvestres enchiam-lhe
os pulmões de frescor e, talvez o preparasse para as intempéries que viesse a
enfrentar, naquele caminhar por espaços ainda desconhecidos dos seus pés.
Da viagem no Pirulito, pouco ou nada restou na memória
daquele menino, a não ser os rumores de vendedores de todo o tipo de mercadorias
e, claro, de não haver recursos para provar nenhuma das muitas iguarias
oferecidas a cada parada nas estações. Chegando por fim na estação da calçada,
logo encontraram transporte que os levasse até o Largo de Meninos, de onde
subiriam a pé, rumo ao bem conhecido prédio que ficava em frente à Ladeira de
Água Brusca, que dava acesso à rua São José de Baixo, que seria o destino dos
chegantes.
Portanto, quando voltara ao internato soteropolitano pela
segunda vez, em março de 1975, ainda não se tinha completado o primeiro ano do
falecimento de Zé Carlos, que se dera no junho anterior. Como já se disse, este
escrevente e aquele seu irmão, embora experimentassem os brigares inerentes à
diferença de idade entre eles, tiveram um convívio de boas brincadeiras,
traquinagens e, até mesmo, algumas cumplicidades. O menino era por demais irrequieto
e, algumas de suas travessuras foram ocultadas de dona manda, para evitar
severa surra.
Por sua vez, Dona Manda nunca se recompusera da perda do seu
filho mais velho, que para ela fora um golpe tão rude quanto inesperado, visto
que a repentina aparição de um câncer o levara de maneira assaz precoce. Mesmo
assim, naquela manhã de algum dos dias ensolarados de março, deixara o seu
peralta mais novo, aos cuidados da instituição que, acreditava-se, lhe daria
ferramentas que o tornaria capaz de prover a vida, quando chegasse o momento de
o fazer.
Engolindo o choro, o garoto fora separado das grossas,
ásperas e calosas mãos de sua mãe e, encaminhado
para longe dos seus olhos.
Ele lá chegara em um horário em que os demais internos já
estavam envolvidos em suas rotinas: uns nas escolas regulares onde estudavam;
outros no segundo andar, onde eram desenvolvidas as atividades de alfabetização
de uns e, de apoio escolar para aqueles outros que já estudavam fora, mas no
turno vespertino. Portanto, o garoto ficara só e desolado, podendo desatar o
seu mar de lágrimas mal retidas, para não ferir ainda mais o coração
fragilizado de sua mãe, ou, quiçá, para talvez parecer forte, a si e a ela.
Aliás, conforme disse sabiamente um amigo outro dia, ele que também vivenciara
circunstância parecida, é ali que, literalmente, “filho chora e mãe não vê”.
Pouco a pouco tentara se acostumar com aquele pequeno espaço
de concreto e cimento armado, que, a partir daquele dia, circunscreveria os
seus passos, os seus atos, os seus quereres, dos seus desejares.
Logo alvo da curiosidade dos demais internos, com alguma
dificuldade e outro tanto de má vontade, ele foi respondendo aos que
perguntavam.
Um funcionário antigo, muito bem-quisto e respeitado por
todos, tratou de fazer as apresentações, no sentido de tentar quebrar o ar de
tristeza que marcava o recém-chegado.
A um ele dissera que chegara um colega para com ele “lutar
pernada”; a outro disse que chegara mais um para estudar e conversar... O certo é que, dentro de alguns
dias, já que outro remédio não havia, este garatujador se enturmou, fez as suas
escolhas e, procurou viver a realidade que se lhe apresentava. O frequentar a
escola, certamente, ajudou bastante na consolidação daquele difícil processo.
Sem notícias de mãe ou de casa, seguira o curso das coisas,
até que, enquanto era levado para o Carneiro Ribeiro, ouvira no rádio da Kombi,
uma notícia informando que o deputado Ulysses Guimarães e o senador Orestes
Quércia, importantes dirigentes do MDB Nacional, estavam em Alagoinhas, com o
objetivo de oferecer apoio ao prefeito Judélio Carmo, que acabava de ser
afastado do cargo, por meio de um processo tramitado na Câmara de Vereadores.
Era maio e, só então, ouvira alguma notícia da cidade, que deixara dois meses
antes.
Mas, enquanto o tempo passava, os cursos esperados e
desejados não chegavam e, o garoto velozmente emagrecia – a roupa que em março
era vestida com dificuldade, àquela altura, já estava muitíssimo folgada no seu corpo -, em pelo
menos duas ocasiões, os internos tiveram um dia de festa, música e fartura.
Em uma delas, a mesa fora tão farta, a comida tão abundante,
que os dias posteriores foram lembrados com saudades e lamentos. Não ficou na
memória deste narrador, o que fora efetivamente comemorado. O que ficou e muito
bem nítido, foi o fato de que, pela primeira vez desde que ali chegara, pudera
comer o bastante para saciar a fome, embora não o suficiente para recuperar os vários
quilos já perdidos.
Em outra ocasião, realizou-se uma comemoração coletiva de
aniversários. A comida não foi farta. Mas o dançar e o cantar, talvez tenha
feito esquecer um pouco os muitos ais. Uma das aniversariantes cantara maviosamente
o grande sucesso dos anos sessenta, que fora imortalizado por uma garota
italiana, então com dezesseis anos, Gigliola Cinquetti, notabilizado pelo filme que levava o mesmo título da música,
que, naquele momento, voltava a ser sucesso, daquela vez, em uma versão
interpretada pela cantora Perla: Dio Come Ti amo – Deus como te amo.
Versão original em italiano:
A versão em português:
Ressalte-se que, naquele momento, o garoto que ainda não
completara quinze anos e, que estava em pleno processo de formação, queria
acreditar no amor, decantado nas novelas e nas músicas que brotavam em profusão no rádio e na
televisão e, romantizado na literatura que caíra nas mãos daquele leitor voraz.
No entanto, com o passar do tempo e o correr da vida, este aprendiz de cronista
compreende que é impossível acreditar no amor. A exceção é o amor do Deus Eterno,
que “é Singular, ninguém jamais, pôde explicar”. Aquele é um amor que foge à
compreensão humana, mas que é real, incondicional, impossível de ser medido ou
calculado, independentemente de ser crido ou aceito pelo mundo criado.
No entanto, embora sem a maviosidade e a singeleza daquela
aniversariante, este escrevedor também cantou! Mas, o que? Uma música que
talvez fosse um recado para quem pudesse ouvir, visto que apresentava a instalação
da rebeldia naquele garoto, em forma de letra e de música. Não foi ela
escolhida sem razão. Era cantada magistralmente por Beth Carvalho; era o já
conhecido Jorge Grande quem cantava, com toda a força dos seus catorze anos:
mil e oitocentas colinas, música que estava muito bem colocada entre as mais
executadas no rádio, recém-lançada, mas, já “na crista da onda”, como se dizia
à época.
Ah, é preciso salientar que, os dois intérpretes amadores,
cantaram as suas páginas musicais, à capela e, que as interpretações foram
ouvidas em todo o prédio, pois, a festa fora transmitida em um sistema de som,
distribuído por todos os seis andares do monstruoso edifício.
José Jorge Andrade damasceno – 10 de agosto de 2021.
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