Histórias e memórias de uns tempos vividos em Salvador VI. “Parecia
que ele estava ensaiando para desfilar no Sete de Setembro!”
Conforme já foi dito, no ano de 1975, este escrevente foi
arrancado da paisagem sociocultural e humana na qual convivia com os seus mais
próximos, com a promessa de que em Salvador, no Instituto – presídio – dos Cegos,
ganharia as ferramentas de que iria precisar para construir a sua vida de
adulto e pessoa independente; que com elas, ele seria capaz de prover a si e a
aqueles que dele viessem a depender.
Em uma manhã de meados de março daquele ano, ele fora
deixado por sua mãe, aos cuidados daquela instituição quase cinquentenária, onde
ele sobreviveria a saudade, a falta de sua liberdade de ir e vir pela cidade, a
interrupção da interação que já iniciara por sua própria conta e risco. Aquela interrupção
abrupta, saliente-se, influenciou, muito negativamente, na formação do seu
temperamento e no agravamento de sua timidez, sobretudo, no trato com as
pessoas do sexo oposto ao seu.
Pois bem. Ali ele chegara gordo e com aquele apetite; as
roupas institucionais que precisaria vestir dali em diante, mal cabiam o seu
corpo; a comida que lhe fora servida naquele primeiro almoço, sequer aplacou a
fome voraz de um menino que há poucos meses, havia completado quatorze anos.
Em um esforço que fizera, no sentido de fazer chegar a sua
necessidade até a pessoa que supervisionava o refeitório, falou baixinho ao menino
que almoçava ao seu lado:
- Como é o nome dela?
- Professora Maria – respondeu o menino.
O recém-chegado ganhou coragem e arriscou:
- Eu... queria mais...
Para surpresa e vergonha do tímido alagoinhense, o menino, a
plenos pulmões, berrou para a tal supervisora:
- Professora Maria, o novato quer mais!
Como resposta, ela se aproximou e respondeu, retirando o
prato:
- Mais, só em sua casa!
E, de fato, assim foi: apenas quando estava em sua casa, de
férias, ou quando, felizmente, para ali voltara definitivamente, é que pudera
repetir o prato, o quanto fosse necessário para saciar a fome.
Assim transcorreram os dias que sucederam ao que foi acima
descrito. Pouco a pouco este escrevente fora sendo obrigado a se ajustar ao
modo de viver naquela prisão, visto que, como já se apontou, a liberdade tivera
sido a sua companheira, embora ainda não tivesse tanto tempo, pois, logo após a
morte do seu irmão mais velho e, de uma certa forma, aproveitando-se da
prostração que se abatera sobre a sua mãe, ele começara a dar os primeiros,
lentos, tímidos, mas, firmes passos para conquistar a sua autonomia, na medida
em que, de posse de uma bengala improvisada, fizera incursões em busca de se movimentar sozinho, primeiro no entorno
da rua em que morava; depois, foi cuidadosa e cautelosamente ampliando os limites
de tais incursões, até que, no início do ano letivo de 1975, apesar do medo e
da desconfiança de sua mãe, ele já ampliara o espectro de sua independência, ao
ponto de ir e vir para o “Estadual” sozinho, com direito a circular no
comércio, visitar a sua antiga escola, onde estudara todo o primário: o
Brasilino Viegas.
Portanto, o confinamento no Instituto, também lhe arrancou
aquela liberdade, que fora construída em meio as lágrimas choradas pela perda
do seu irmão; irmão que era o seu companheiro de saídas, embora ele não pudesse
sê-lo indefinidamente e, que fora lhe tirado tão precocemente pela morte. A liberdade
dos horários de entrar e sair; de acordar e dormir; de conversar e rir com os
vizinhos, tudo isto lhe foi tirado e, de forma abrupta, um novo regime de
cerceamentos lhe foi imposto, em nome de uma pretensa formação técnica e
escolar que lhe prepararia para a vida. Novas relações precisaram ser
estabelecidas; novas camaradagens se lhe foram impostas; novos comportamentos
lhe foram cobrados; novas regras se lhe impuseram para cumprir.
No princípio, até que se esforçara para se ajustar a todos
aqueles pressupostos que norteavam a vida de todos quantos estudassem em regime
de internato, talvez pensando muito mais à frente, acreditando que de fato, ele
seria devolvido a liberdade da vida cotidiana, pronto para a enfrentar, devidamente
pronto para o embate pela sobrevivência e, até mesmo, imaginou que pudesse
estar pronto para uma carreira, para uma atividade de boa remuneração, afinal,
acreditava ele, seria um técnico; alguém que possuiria uma formação
profissional, que lhe abriria espaço, ao menos para enfrentar a luta por um
espaço mercado de trabalho. Mas, com o passar dos dias e o avançar das coisas,
começou a perceber que nada daquilo se daria, sobretudo consigo. Os primeiros
germes de insatisfação começam a se manifestar naquele menino que, ali chegara
sonhador e pleno de expectativas e, os dias passavam, as semanas avançavam,
enquanto ele: nada percebia que lhe viesse a favorecer.
É verdade que ali ele conhecera a piscina – juntamente com
outros internos, fora mandado para praticar natação na Vila Olímpica do antigo
ginásio do Balbininho -, visitara pela primeira vez a praia, juntamente com os demais confinados; e, claro, fora
matriculado naquilo que se denominava “escola regular”. Aliás, aquela foi a
única expectativa que ele não tivera frustrada, em todo o tempo que permaneceu
recluso naquele estabelecimento de “educação especial”, como ainda hoje é denominada
a prática de segregar alunos cegos em um espaço previamente desenvolvido para
aquele fim.
Imediatamente à sua chegada, este autor fora matriculado no
complexo Escolar carneiro Ribeiro Filho, então funcionando provisoriamente em
um prédio anexo ao Navarro de Brito, situado no Curuzu, em razão de reformas no
seu prédio original, localizado na Soledade. Logo que o fardamento ficou pronto,
ele pôde frequentar as aulas, aliás, já iniciadas há algumas semanas. Isto fez
com que o recém-chegado fizesse gestões junto aos colegas, no sentido de buscar ter acesso ao material já
desenvolvido pelos professores, para que pudesse acompanhar os assuntos
ensinados, sem maiores prejuízos.
Eram quatro os alunos cegos naquela sala de aulas;
acredita-se que mais dois eram de uma série posterior. O certo é que, todos
eram levados e buscados pela kombi do Instituto, dirigida por seu Brás, um veterano e
descontraído funcionário da casa.
Certa vez, em um fim de tarde, enquanto todos o esperavam
para voltar para o Instituto, Cardoso, um dos alunos que dividia a mesma sala
de aula com este garatujador, um dos poucos que possuía uma pasta escolar, digna
deste nome – os demais receberam uma sacola de pano, com o logotipo do internato,
que era ridícula, na qual acondicionava o seu material, composto por reglete,
papel, sorobã e punção -, possuía o hábito de balançar e/ou rodar aquela pasta
de um lado para outro, em um gesto de exibição de seu objeto de posse, que
aliás, era o desejo de todos os demais ter uma tranqueira daquelas...
Entre balançares, rodares e virares, acabou que a tal pasta
batera no pé da orelha de quem ora escreve estas linhas.
De um salto, entre a dor da pancada e a fúria pelo desdém do
exibido, o atingido prendeu-lhe as costas entre os dentes; com uma mão, reteve
os seus braços e, com a que ficou livre, bateu furiosamente nas costas do
infeliz, só largando com a intervenção dos funcionários da escola. Dali há
alguns minutos, ambos estavam se acusando mutuamente diante da direção.
Alguns meninos que enxergavam, que ainda se encontravam no
recinto e, que assistiram ao acesso de fúria daquele que fora atingido pela tal
pasta, foram chamados para contar o que houvera se sucedido, diante da direção.
Um deles descrevera a cena para os circundantes:
- Parecia que ele estava ensaiando para tocar na banda em Sete
de Setembro!
José Jorge Andrade damasceno – 04 de agosto de 2021.
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