Um escrevedor fala de Memória Musical -IV – 1989: do agreste
baiano ao sul fluminense.
Em mais uma investida no campo da memória musical, o recuo
será até o ano de 1989, marcado por diversos eventos políticos e sociais pelo mundo
inteiro, sobretudo o maior deles no campo da política brasileira: finalmente a
população recuperava o direito de eleger o seu presidente, direito que lhe fora
tomado pela força de um golpe, o de 1964. A imprensa, a escola e, afinal de
contas, toda a “sociedade civil”, respirara aquela eleição presidencial. Foi também
naquele ano que o mundo ocidental viu quase estupefato, o desencadear de uma “revolução”
silenciosa, que levou a “queda do muro de Berlim”, como símbolo que fora dos
regimes totalitários, que fracassara no seu intento de propiciar alternativas
ao capitalismo selvagem que se impunha com toda a força – da persuasão ou das
armas -, sobre a maior parte dos habitantes do mundo. Como um efeito cascata, caíra,
uma a uma das chamadas “Repúblicas democráticas socialistas”” implantadas no
leste europeu após 1945, culminando com o esfacelamento da maior e mais antiga dentre
elas – em 1991 -, a “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”. Talvez, em
outro arrazoado, este tema seja mais largamente abordado. O que aqui interessa
é contextualizar o episódio que se quer comentar.
Ainda ao principiar daquele ano, Alagoinhas e demais cidades
do seu porte, dera posse a novos prefeitos e vereadores, eleitos no ano
anterior. Naquele mesmo tempo, Sullivan e Massadas garantia sucesso de suas
composições, através de uma diversidade de intérpretes, ritmos e estilos musicais,
que tocavam nos milhares de emissoras de rádio – AM e FM – espalhadas por todo
o Brasil.
Em meio ao seu processo de formação acadêmica, este autor
ainda encontrava um tempo para o rádio e a música, que para ele, funcionava
como um repositório das forças que precisava para seguir a sua jornada. Entre
as muitas músicas por ele ouvidas, se encontra a de Agnetha Faltskog & Ola
Hakansson – The Way You Are -, que, embora em língua inglesa, era muito
agradável de se ouvir, mormente pelo conjunto melódico apresentado naquela
gravação. O link abaixo é da versão de 1985.
https://youtu.be/wjkQpqFQfN0
Devido às suas condições físicas, econômicas e, por certo,
pelas suas características psicossociais, este escrevente experimentou grandes
dificuldades no que tange à “arte da conquista”, quando se tratava de quebrar
as resistências, ou despertar o interesse das jovens senhoritas, com o fito de
ter uma dentre elas como sua namorada. Para tentar driblar algumas daquelas
dificuldades, sempre precisou fazer uso de instrumentos que o permitissem ao menos,
chegar até a pretendida e, expor a sua perspectiva relacional.
Para tanto, o instrumento mais eficiente que ele tivera à
mão e fez uso com algum êxito, foi a sua inseparável máquina de escrever
portátil – Olivetti Letera 32. Nela eram datilografados os trabalhos escolares,
as atividades avaliativas e seletivas. Também nela eram escritas as cartas. Em
tempos em que os Correios gozavam de ampla confiança dos seus usuários, o
escrevedor de cartas aguardava com grande ansiedade, a chegada das cartas por
ele enviadas até as suas destinatárias e, claro, a volta delas em forma de
respostas. O inconveniente estava no fato de que, uma vez vencidas as resistências
da jovem cortejada, o namoro, em grande parte, continuava do mesmo modo como
foi iniciado: sujeito aos vais-e-vens dos carteiros. Mas, o que fazer, se do
modo convencional ele não fora exitoso em qualquer de suas desajeitadas
tentativas?
Pois então, só restava procurar ampliar o leque de
circulação das missivas, apelando para que lhe escrevessem, partindo para seções
de correspondências, comuns em diversos periódicos. É preciso salientar de
passagem, que aquelas primeiras jovens contactadas por meio das
correspondências, de algum modo, já eram suas conhecidas, com quem já houvera
entabulado algum diálogo presencial, sem ter conseguido avançar ao ponto de uma
exposição dos motivos que o levara a principiar o papo.
Portanto, a partir do momento em que enviou cartas à seção de
“leitores” da revista “Jovem Cristão”, editada pela Casa Publicadora das
Assembléias de Deus (CPAD), as respostas passariam a vir-lhe ao encontro,
mediante a intermediação da revista, que, por sua vez, apresentava à futura
correspondente, apenas a pessoa descrita por ela mesma, sem maiores detalhes
imagéticos.
Assim, como resultado do envio de uma carta para a referida
seção, no primeiro trimestre do ano de 1989, uma avalanche de correspondências chegou
ao endereço deste garatujador, procedente de todas as partes do Brasil, por
onde circulou a já mencionada revista, cuja capilaridade era bastante complexa,
na medida em que podia chegar às mãos de senhoritas assembleianas residentes
nos mais distantes pontos cardiais do território, bastando haver ali uma Igreja
Assembleia de Deus e, nela, alguém que soubesse e gostasse de ler o periódico
editado para o público jovem da denominação, mas, não exclusivamente, é claro. Sistemática
e atenciosamente, foram lidas todas as cartas recebidas e, todas elas foram
respondidas. Na medida que as conversas se desenrolavam, as afinidades se aproximavam
ou distanciavam, promovendo a continuação ou não das conversas; o
aprofundamento ou não das trocas missivísticas. Por fim, chegando ao ponto de
haver uma redução na circulação das cartas, até ao ponto de se tornar uma
correspondência mais assídua, mais amiudada e, mais especial.
Desta maneira, se chegou a uma dentre as correspondentes,
que se fez eleger como aquela a quem se dedicaria mais tempo e atenção. Talvez,
na mesma medida, a missivista passara a dispensar mais atenção e cuidado no
escrever, no decorar, no perfumar as cartas que enviava, de tal modo que
passava a ser esperada com mais ansiedade e maior expectativa, a sua resposta,
à carta que lhe fora dirigida. Neste vai-e-vem de cartas, fez-se comum o
interesse relacional, em um trocar de falas e impressões, abrindo pouco a pouco
a possibilidade de um encontro presencial entre aqueles dois jovens, ainda
desconhecidos um do outro do ponto de vista pessoal mas, que já se sentiam
ligados por meio dos escritos entre eles trocados.
Chega dezembro de 1989 e, com ele, a concretização de um
plano arquitetado durante todo o transcurso dos meses a partir dos quais a
correspondência tomou outros rumos, que não mais a mera consolidação de uma
amizade. Era, pois, o momento de tornar real uma troca de afetos, não mais
intermediados pelos Correios, mas, sim, mediante o deslocamento até o Estado do
Rio de Janeiro, onde residia a correspondente. Da capital fluminense até a
cidade de Resende, localizada no sul do Estado, mais de cem quilômetros ainda
precisavam ser percorridos. Tendo lá chegado quase ao fim da noite, ele se acomodou
em um hotel, que mais parecia casa de uma antiga elite, talvez de uns 50 anos
antes, considerando-se os tempos de prosperidade da região, aos tempos do que
se poderia denominar “ciclo do aço”.
Era o último dia do ano, manhã fresca de domingo, sob uma temperatura
amena naquele quarto de hotel quase rústico, este escrevente acordara cedo,
ainda perguntando a si mesmo, se de fato ali estava, na realidade ou, se não
era uma fantasia engendrada pelo seu cérebro. Mas, pensava em contraponto, os
ônibus em que viajara até ali, seria também uma invenção fantasiosa do cérebro?
Certamente não, dizia, de si para consigo.
Levantara-se e, ao respirar o ar daquela cidade, se enchera
de coragem e saíra com o fito de se dirigir ao bairro de Santo Amaro, onde se
localizava a igreja frequentada pela jovem e seus pais e irmãos. Ao descer do
ônibus e percorrer o trecho que faltava para alcançar o templo da assembleia de
Deus, uma música tocava nas casas do seu entorno. Impressionava a este
garatujador, o fato de lhe parecer ouvir aquela música pela primeira vez,
quando na verdade, o que pode ter ocorrido, é ele ter prestado atenção nela,
pela primeira vez, dado ao inusitado do momento que ora vivia: encontrar alguém,
com quem ainda não o tivera visto, como de fato ele era, apesar de já lhe ter
visto em fotografias.
Naquele dia 31, bem como durante toda a sua estada naquela
cidade, a música de Gloria Stefan chegava aos ouvidos daquele forasteiro;
parecia que era deliberado. Quer fosse em receptores de rádio que houvesse por
perto, quer por outros meios sobre os quais ele não possuía qualquer controle, a
música tocava, tocava, tocava...
Professor Jorge Damasceno – 22 de outubro de 2020.
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