quinta-feira, 22 de outubro de 2020

UM ESCREVEDOR FALA DE MEMÓRIA MUSICAL - IV.

 

Um escrevedor fala de Memória Musical -IV – 1989: do agreste baiano ao sul fluminense.

 

Em mais uma investida no campo da memória musical, o recuo será até o ano de 1989, marcado por diversos eventos políticos e sociais pelo mundo inteiro, sobretudo o maior deles no campo da política brasileira: finalmente a população recuperava o direito de eleger o seu presidente, direito que lhe fora tomado pela força de um golpe, o de 1964. A imprensa, a escola e, afinal de contas, toda a “sociedade civil”, respirara aquela eleição presidencial. Foi também naquele ano que o mundo ocidental viu quase estupefato, o desencadear de uma “revolução” silenciosa, que levou a “queda do muro de Berlim”, como símbolo que fora dos regimes totalitários, que fracassara no seu intento de propiciar alternativas ao capitalismo selvagem que se impunha com toda a força – da persuasão ou das armas -, sobre a maior parte dos habitantes do mundo. Como um efeito cascata, caíra, uma a uma das chamadas “Repúblicas democráticas socialistas”” implantadas no leste europeu após 1945, culminando com o esfacelamento da maior e mais antiga dentre elas – em 1991 -, a “União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”. Talvez, em outro arrazoado, este tema seja mais largamente abordado. O que aqui interessa é contextualizar o episódio que se quer comentar.

Ainda ao principiar daquele ano, Alagoinhas e demais cidades do seu porte, dera posse a novos prefeitos e vereadores, eleitos no ano anterior. Naquele mesmo tempo, Sullivan e Massadas garantia sucesso de suas composições, através de uma diversidade de intérpretes, ritmos e estilos musicais, que tocavam nos milhares de emissoras de rádio – AM e FM – espalhadas por todo o Brasil.

Em meio ao seu processo de formação acadêmica, este autor ainda encontrava um tempo para o rádio e a música, que para ele, funcionava como um repositório das forças que precisava para seguir a sua jornada. Entre as muitas músicas por ele ouvidas, se encontra a de Agnetha Faltskog & Ola Hakansson – The Way You Are -, que, embora em língua inglesa, era muito agradável de se ouvir, mormente pelo conjunto melódico apresentado naquela gravação. O link abaixo é da versão de 1985.

https://youtu.be/wjkQpqFQfN0

Devido às suas condições físicas, econômicas e, por certo, pelas suas características psicossociais, este escrevente experimentou grandes dificuldades no que tange à “arte da conquista”, quando se tratava de quebrar as resistências, ou despertar o interesse das jovens senhoritas, com o fito de ter uma dentre elas como sua namorada. Para tentar driblar algumas daquelas dificuldades, sempre precisou fazer uso de instrumentos que o permitissem ao menos, chegar até a pretendida e, expor a sua perspectiva relacional.

Para tanto, o instrumento mais eficiente que ele tivera à mão e fez uso com algum êxito, foi a sua inseparável máquina de escrever portátil – Olivetti Letera 32. Nela eram datilografados os trabalhos escolares, as atividades avaliativas e seletivas. Também nela eram escritas as cartas. Em tempos em que os Correios gozavam de ampla confiança dos seus usuários, o escrevedor de cartas aguardava com grande ansiedade, a chegada das cartas por ele enviadas até as suas destinatárias e, claro, a volta delas em forma de respostas. O inconveniente estava no fato de que, uma vez vencidas as resistências da jovem cortejada, o namoro, em grande parte, continuava do mesmo modo como foi iniciado: sujeito aos vais-e-vens dos carteiros. Mas, o que fazer, se do modo convencional ele não fora exitoso em qualquer de suas desajeitadas tentativas?

Pois então, só restava procurar ampliar o leque de circulação das missivas, apelando para que lhe escrevessem, partindo para seções de correspondências, comuns em diversos periódicos. É preciso salientar de passagem, que aquelas primeiras jovens contactadas por meio das correspondências, de algum modo, já eram suas conhecidas, com quem já houvera entabulado algum diálogo presencial, sem ter conseguido avançar ao ponto de uma exposição dos motivos que o levara a principiar o papo.

Portanto, a partir do momento em que enviou cartas à seção de “leitores” da revista “Jovem Cristão”, editada pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD), as respostas passariam a vir-lhe ao encontro, mediante a intermediação da revista, que, por sua vez, apresentava à futura correspondente, apenas a pessoa descrita por ela mesma, sem maiores detalhes imagéticos.

Assim, como resultado do envio de uma carta para a referida seção, no primeiro trimestre do ano de 1989, uma avalanche de correspondências chegou ao endereço deste garatujador, procedente de todas as partes do Brasil, por onde circulou a já mencionada revista, cuja capilaridade era bastante complexa, na medida em que podia chegar às mãos de senhoritas assembleianas residentes nos mais distantes pontos cardiais do território, bastando haver ali uma Igreja Assembleia de Deus e, nela, alguém que soubesse e gostasse de ler o periódico editado para o público jovem da denominação, mas, não exclusivamente, é claro. Sistemática e atenciosamente, foram lidas todas as cartas recebidas e, todas elas foram respondidas. Na medida que as conversas se desenrolavam, as afinidades se aproximavam ou distanciavam, promovendo a continuação ou não das conversas; o aprofundamento ou não das trocas missivísticas. Por fim, chegando ao ponto de haver uma redução na circulação das cartas, até ao ponto de se tornar uma correspondência mais assídua, mais amiudada e, mais especial.

Desta maneira, se chegou a uma dentre as correspondentes, que se fez eleger como aquela a quem se dedicaria mais tempo e atenção. Talvez, na mesma medida, a missivista passara a dispensar mais atenção e cuidado no escrever, no decorar, no perfumar as cartas que enviava, de tal modo que passava a ser esperada com mais ansiedade e maior expectativa, a sua resposta, à carta que lhe fora dirigida. Neste vai-e-vem de cartas, fez-se comum o interesse relacional, em um trocar de falas e impressões, abrindo pouco a pouco a possibilidade de um encontro presencial entre aqueles dois jovens, ainda desconhecidos um do outro do ponto de vista pessoal mas, que já se sentiam ligados por meio dos escritos entre eles trocados.

Chega dezembro de 1989 e, com ele, a concretização de um plano arquitetado durante todo o transcurso dos meses a partir dos quais a correspondência tomou outros rumos, que não mais a mera consolidação de uma amizade. Era, pois, o momento de tornar real uma troca de afetos, não mais intermediados pelos Correios, mas, sim, mediante o deslocamento até o Estado do Rio de Janeiro, onde residia a correspondente. Da capital fluminense até a cidade de Resende, localizada no sul do Estado, mais de cem quilômetros ainda precisavam ser percorridos. Tendo lá chegado quase ao fim da noite, ele se acomodou em um hotel, que mais parecia casa de uma antiga elite, talvez de uns 50 anos antes, considerando-se os tempos de prosperidade da região, aos tempos do que se poderia denominar “ciclo do aço”.

Era o último dia do ano, manhã fresca de domingo, sob uma temperatura amena naquele quarto de hotel quase rústico, este escrevente acordara cedo, ainda perguntando a si mesmo, se de fato ali estava, na realidade ou, se não era uma fantasia engendrada pelo seu cérebro. Mas, pensava em contraponto, os ônibus em que viajara até ali, seria também uma invenção fantasiosa do cérebro? Certamente não, dizia, de si para consigo.

Levantara-se e, ao respirar o ar daquela cidade, se enchera de coragem e saíra com o fito de se dirigir ao bairro de Santo Amaro, onde se localizava a igreja frequentada pela jovem e seus pais e irmãos. Ao descer do ônibus e percorrer o trecho que faltava para alcançar o templo da assembleia de Deus, uma música tocava nas casas do seu entorno. Impressionava a este garatujador, o fato de lhe parecer ouvir aquela música pela primeira vez, quando na verdade, o que pode ter ocorrido, é ele ter prestado atenção nela, pela primeira vez, dado ao inusitado do momento que ora vivia: encontrar alguém, com quem ainda não o tivera visto, como de fato ele era, apesar de já lhe ter visto em fotografias.

Naquele dia 31, bem como durante toda a sua estada naquela cidade, a música de Gloria Stefan chegava aos ouvidos daquele forasteiro; parecia que era deliberado. Quer fosse em receptores de rádio que houvesse por perto, quer por outros meios sobre os quais ele não possuía qualquer controle, a música tocava, tocava, tocava...

https://youtu.be/J1x1WGtePSE

 

Professor Jorge Damasceno – 22 de outubro de 2020.

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